'IMORTAL' DA ABL ABRE MÃO DE MAUSOLÉU E CONFESSA MENTIRA
O Dossiê GloboNews exibiu uma entrevista em que escritor e acadêmico Carlos Heitor Cony confessa que cometeu um pecado contra o jornalismo: "Eu inventava muito."
O jornalista desembarca diante de uma velha mansão em Aldenham, a trinta quilômetros de Londres, para cumprir um ritual que se repetia uma vez por ano.
Como se fosse uma criança que contasse os dias que faltavam para a chegada do Natal, o jornalista – um certo Richard MacPherson – passava o ano contando os meses que faltavam para a chegada de dezembro. Porque, em algum fim de tarde de dezembro, às seis em ponto, o telefone de MacPherson tocaria. Do outro lado da linha, como fazia todos os anos, uma voz gutural convocaria MacPherson para uma entrevista exclusiva, no dia seguinte. Era sempre assim. As florestas interiores de MacPherson entravam em ebulição. Quem o chamava – afinal – era um personagem extraordinário: o "único vidente cego do mundo", um indiano capaz de antever o cardápio de catástrofes, alegrias, lágrimas e glórias que o futuro ofertaria ao planeta nos próximos doze meses. O vidente se chamava Allan Richard Way, um indiano que adotara este nome depois de trocar os incensos de Nova Déli pelo cinza renitente de Londres.
Allan Richard Way não tinha os jornalistas em grande conta. Uma vez, ao notar no tom de voz do repórter uma certa excitação diante da antevisão de uma catástrofe, o vidente cego desabafara:
"Vocês – da imprensa – são uns abutres, mas nós, os astrólogos, não somos feitos de massa melhor…"
O caderno de anotações do único repórter a quem o vidente dava entrevistas guardou as impressões de um daqueles encontros inesquecíveis. Richard MacPherson tinha um texto inspirado:
"Pensava encontrá-lo de bem com a vida – mas não se pode confiar em profetas: eles estão sempre acabrunhados, se não com o próprio drama, com o drama dos outros ( ...) Allan Richard Way afunda um pouco na poltrona de espaldar alto onde sempre se senta quando fala comigo para dar suas previsões. É uma rotina que já completa treze anos, mas, para mim, sempre parece uma novidade, um acontecimento misterioso e excitante, com promessas de surpresas e coisas terríveis. Fomos para o escritório, cuja atmosfera só pode ser definida como mágica. O aposento termina numa espécie de jardim de inverno, com claraboia. Nesse ponto, junto às vidraças, voltado para o céu, está o misterioso siderômetro, o aparelho com que Alan Richard Way perscruta os astros e o infinito. Tapeçarias orientais distribuídas com cuidadosa negligência dão um toque fin de siècle ao refúgio do bruxo de Aldenham. Cada vez que entro naquele aposento, meu olhar se dirige de imediato ao siderômetro. Fico a admirá-lo por algum tempo, como se fosse um totem trazido de alguma civilização distante".
"A catarata que ele operara em 1980 na URSS, com a parapsicóloga Djuna Davitashvili, retornou com força total. Hoje, pode-se dizer que Allan Richard Way é o único grande vidente cego do mundo. Corria, em Londres, o boato de que ele estava morrendo. Mas logo tudo se esclareceu. Fora uma perfídia da parapsicóloga soviética Djuna Davitashvili – que há coisa de três anos operara (infrutiferamente) a catarata do mestre (cirurgia psíquica, é claro). Tremendamente despeitada por Allan Richard Way ter previsto no ano passado a morte de Chernenko e a ascensão de Gorbachev ao poder, Djuna espalhou o boato cruel. A tudo isso, como de resto a todas as outras coisas, o recluso de Aldenham retrucou com um de seus sorrisos irônicos – e também com um comentário cortante: 'Ela é cega e surda como as portas do Kremlin'".
"Como se tivesse previsto (e acho mesmo que previu) a chegada do chá, desviou o olhar inútil para a porta que se abriu lentamente – deixando passar a silenciosa governanta carregando uma bandeja onde percebi, com alegria, a presença de cheirosos muffins. 'Deixe-me descansar um pouco'. Logo tomei meu carro, percorri os vinte quilômetros que separam Aldenham de Edgware pensando em tudo o que ouvira e meditando, mais uma vez, sobre a selva que habitamos. Parece que Allan Richard Way encontra estranho prazer em descobrir, na sintaxe dos astros, a crueza de nossas desgraças, a perenidade de nossa dor".
É ou não uma bela descrição de um encontro com um grande personagem? Acontece que tanto o repórter Richard MacPherson quanto o vidente Allan Richard Way jamais existiram. Ambos foram inventados, na redação da revista "Manchete", pelo hoje acadêmico Carlos Heitor Cony. Durante anos, sempre no mês de janeiro, a revista publicava páginas e páginas com as previsões do suposto vidente cego. As reportagens eram sempre assinadas por MacPherson. Tudo invenção.
Cony confessa este pecado na entrevista gravada para o Dossiê GloboNews.
Vai adiante: diz que, uma vez, estava no Aeroporto de Heatrow, em Londres. Um indiano – com turbante e vasta barba branca – transitava pelos corredores. Cony se aproximou do homem, disse que, ao vê-lo, lembrou-se do pai. Perguntou: "Posso tirar uma foto?". "Claro", respondeu o transeunte barbado. Resultado: a foto do indiano anônimo foi estampada na revista, como se fosse do vidente cego. E assim Allan Richard Way ganhou rosto.
O dono da cadeira número três da Academia Brasileira de Letras (ABL) diz que os jornalistas deveriam "meditar" sobre o fato de o vidente jamais ter sido desmascarado.
Que assim seja.
Tenho a tentação de perguntar a Cony, como se de repente encarnasse o espírito do repórter Richard MacPherson: "Dizei, Allan Richard Way, o que teus olhos cegos enxergam para o Brasil? ". Cony responde: "Sou pessimista". Mas esclarece que cultiva um pessimismo não apenas sobre os destinos brasileiros, mas sobre o futuro da espécie humana. "Não, o homem não merece salvação" – constata, com uma ponta de desolação temperada por oito décadas de irrevogável ceticismo diante de tudo e de todos.
Em outro trecho da entrevista, Cony anuncia que tomou uma decisão provavelmente inédita entre acadêmicos. Resolveu, desde já, que não quer ser sepultado no mausoléu da Academia, no cemitério São João Batista. Disposto a não deixar no ar qualquer dúvida, diz que já incluiu a decisão no testamento.
Aos 89 anos de idade, recém-completados, Carlos Heitor Cony terá toda a obra relançada pela Editora Nova Fronteira. Os primeiros títulos já estão nas livrarias.
Abaixo, um trecho da entrevista:
Com algum bom humor, você escreveu que não considera o cemitério de São João Batista "merecedor da confiança que se deve ter nos cemitérios". O problema é que o mausoléu da Academia Brasileira de Letras – para onde um dia o acadêmico Carlos Heitor Cony será levado, num futuro que a gente espera remoto – fica justamente no cemitério São João Batista – que você detesta. Como é que você vai resolver este impasse? Vai abrir mão desse privilégio acadêmico?
Cony: "Vou resolver da seguinte maneira: podendo morrer, não morro! A morte é uma coisa nojenta. Se morrer, serei cremado. Minhas cinzas serão jogadas num morro em Itaipava, que pertencia ao seminário. Era o Morro do Cruzeiro, porque tinha uma cruz em cima. É um sonho que me persegue muito. Quando queria me isolar, ainda nos tempos do seminário – embora já vivesse isolado da família e do mundo – eu sempre ia a este morro, para ver aquelas montanhas e o açude. Minhas cinzas merecem estar lá. Já deixei em testamento: não quero ir para o mausoléu da Academia Brasileira de Letras!".
Se fosse criança, que pergunta você teria curiosidade de fazer ao adulto Carlos Heitor Cony sobre a vida?
Cony: "Por que é que não morri antes? Se eu tivesse essa possibilidade, é o que perguntaria. E às vezes me pergunto: o que é que estou fazendo aqui? Minha vida – e a dos outros – não tem sentido algum".
Foto: Reprodução
O que é que o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho poderia ter em comum com Neil Gaiman – o escritor e quadrinista inglês?
O texto do discurso que Gaiman fez para os estudantes da University of Arts, na Filadélfia foi lançado há algum tempo em livro, no Brasil. As palavras de Gaiman fazem sucesso entre a rapaziada. O livro chama-se "Erros Fantásticos: O discurso 'Faça Boa Arte' - de Neil Gaiman".
Há uma ou outra "platitude", mas, em resumo, ele diz:
"Eu observava meus colegas, amigos e pessoas mais velhas e via quanto alguns eram infelizes: escutava quando me diziam que não conseguiam mais enxergar um cenário em que fariam o que sempre quiseram, porque àquela altura precisavam ganhar todo mês certa quantidade de dinheiro só para se manterem na posição em que estavam."
"Não podiam fazer o que importava, o que realmente queriam. Isso me pareceu tão trágico quanto qualquer problema no fracasso. Além disso, o maior problema do sucesso é que o mundo conspira para que você pare de fazer o que faz, só porque é bem-sucedido".
"Um dia, ergui os olhos e me dei conta de que tinha me tornado alguém cuja profissão era responder e-mails e, nas horas vagas, escrevia. Passei a responder menos mensagens e descobri, aliviado, que estava escrevendo muito mais (...)."
"A vida às vezes é dura. As coisas dão errado, na vida e no amor e nos negócios e nas amizades e na saúde e em todos os outros aspectos que podem dar errado. Quando as coisas ficarem complicadas, é assim que você deve agir: faça boa arte. É sério (...). Faça o que só você faz de melhor (...). Faça aquilo que só você pode fazer."
"O impulso, no começo, é copiar. Isso não é ruim. Muitos de nós só encontraram a própria voz depois de soar como várias pessoas. Mas a única coisa que só você e mais ninguém tem é você. Sua voz, sua mente, sua história, sua visão (....)."
"Meus projetos que funcionaram foram aqueles dos quais eu estava menos certo (...). Mas qual deve ser a graça de fazer o que você sabe que vai dar certo? E, algumas vezes, o que eu fiz não deu nada certo. Aprendi com elas tanto quanto com as que funcionaram (...). Cometam interessantes, impressionantes, gloriosos, fantásticos erros. Quebrem regras. Deixem o mundo mais interessante por estarem nele."
Como disse, ao longo do discurso há uma ou outra declaração de princípios que pode lembrar aquelas lastimáveis performances de animadores de funcionários de corporações – mas, na essência, Neil Gaiman toca no que interessa: "Faça aquilo que só você pode fazer".
O importante é apostar no incerto, cometer erros "gloriosos".
Thank you, mr. Gaiman.
Eu me lembrei da pregação de Gaiman ao ver um documentário em que o personagem principal é o documentarista Eduardo Coutinho.
Título: "Coutinho - sete de outubro". Ao contrário do que fazia habitualmente, dessa vez o cineasta Eduardo Coutinho fica diante da câmera para dar uma entrevista, conduzida pelo realizador do documentário, Carlos Nader. É como se Coutinho se transformasse em personagem de Coutinho. Bola na rede.
(O depoimento foi gravado quatro meses antes da morte de Coutinho – uma daquelas tragédias que nos deixam mudos).
Lá pelas tantas, Coutinho fala sobre o "prazer indizível" que é fazer um determinado filme num determinado momento num determinado lugar. É como se dissesse que a aventura do cinema precisa – necessariamente – ser pessoal e intransferível. Só assim vale a pena. Não pode ser delegada a outros. Porque outro realizador faria de outra maneira. A regra vale, claro, para documentários – o território que Coutinho elegeu para transitar.
O (belo) depoimento de Coutinho aponta para um caminho: o ato de fazer um filme deve ser revestido de uma devoção quase religiosa. Fazer ou não fazer passa a ser, nos delírios do realizador, uma questão de vida ou morte (a atitude aplica-se não apenas a filmes, claro, mas a qualquer "aventura" do tipo).
Em resumo: "Faça aquilo que só você pode fazer".
Somente Eduardo Coutinho poderia fazer os documentários de Eduardo Coutinho. Não é, óbvio, o único caso de cineasta com marca pessoal, mas o que ele diz, na entrevista, marca uma posição, um tardio mas bem-sucedido "projeto de vida".
É óbvio que noventa e nove vírgula noventa e nove por cento dos terráqueos permanecerão absolutamente indiferentes ao fato de que um filme "x" sairá ou não do papel, mas o realizador precisa criar a ilusão de que aquele filme é indispensável, é indispensabilíssimo – nem que seja para ele mesmo. Pouco importa – aliás – que o resultado seja eventualmente precário ou aparentemente banal. Não é este o "ponto". É o que Coutinho diz, com outras palavras,no depoimento.
A situação pode soar surrealista mas é assim: um personagem anônimo – como os que povoam os filmes de Coutinho – poderia, claro, ser filmado "n" vezes. Não haveria qualquer dificuldade. As situações eram, em tese, perfeitamente "repetíveis" - mas, como princípio, Coutinho se convencia de que tudo teria de acontecer, necessariamente, ali, naqueles trinta, quarenta ou sessenta minutos diante do entrevistado: o desnudamento, as revelações, a confissão. É uma sensação que, a rigor, move todos os entrevistadores.
Coutinho cumpria este mandamento ao pé da letra, diante de personagens anônimos que ia encontrando em apartamentos de Copacabana, morros da zona sul, casebres no sertão. Diz, no documentário, que evitava ouvir figuras públicas ou gente que ele próprio conhecia. Não ia dar certo.
As palavras de Coutinho no documentário soam fortes: resumem a necessidade de quimeras pessoais numa época dominada pela uniformidade mediocrizante.
Já estou soando como crítico de cinema. Não sou. E foi bonito ver a plateia aplaudindo Coutinho no fim do filme.
Palmas para ele. É uma grande lástima que uma carreira que, como ele dizia, começou tarde tenha sido violentamente interrompida. "A morte é uma piada. A vida é uma tragédia. Mas, dentro de nós, mesmo no maior desespero, há uma força que clama por coisas melhores", já dizia Paulo Francis.
Em última instância, "clamar por coisas melhores" é o que faz quem, como Coutinho, apostava numa aventura pessoal. Já é tarefa para uma vida.
Foto: Reprodução/GloboNews
Um marciano curioso que desembarcasse hoje no planeta certamente perguntaria: "Terráqueos, me tirem uma dúvida, por favor: as empreiteiras doam milhões e milhões e milhões e milhões de reais às campanhas de candidatos municipais, estaduais e federais a troco de quê? É só o que eu queria saber: a troco de quê, exatamente? É uma ajuda pura, simples, benemerente e desinteressada?. Terráqueos, me digam! Não posso voltar ao meu planeta sem levar uma explicação! Vim de Marte só para ver se é verdade o que dizem por lá: a Farra das Empreiteiras com o dinheiro público, lá naquele país chamado Brasil, é uma coisa do outro mundo!".
Se fosse possível fazer um resumo drástico de tudo, eu diria que tudo é assim: num belo dia, aos dezesseis, dezessete anos de idade ( mas pode ser aos aos trinta, aos cinquenta, aos setenta...) você descobre, maravilhado, que tudo, absolutamente tudo, todas as paisagens, todos os vozerios, todos os silêncios, todos os jornalistas ( especialmente! ), todos os professores, todas as guerras, todas as glórias, todos os dramas, todos os jornais, todas as rádios, todas as tevês, todos os médicos, todos os engenheiros, todas as pontes, todas as trevas, todas as auroras, todos os rebeldes, todos os brilhantes, todos os medíocres, todos os carreiristas, todos os sonhadores, todos os santos, todos os pulhas, todos os filmes, todas as teses, todas as músicas, todos os livros, todas as secas, todas as correntezas, todas as escolas, todos os vazios, todas as imensidões, tudo, tudo, tudo, todos os terráqueos, tudo não passa de uma imensa, uma tristíssima, uma divertidíssima piada. Intimamente, você faz, então, um juramento, inscrito a ferro e fogo em algum ponto do velho coração: o de carregar, até o último suspiro, a certeza inarredável de que tudo, absolutamente tudo, todas as paisagens, todos os vozerios, todos os silêncios, todos os jornalistas ( especialmente!), todos os professores, todas as guerras, todas as glórias, todos os dramas, todos os jornais, todas as rádios, todas as tevês, todos os médicos, todos os engenheiros, todas as pontes, todas as trevas, todas as auroras, todos os rebeldes, todos os brilhantes, todos os medíocres, todos os carreiristas, todos os sonhadores, todos os santos, todos os pulhas, todos os filmes, todas as teses, todas as músicas, todos os livros, todas as secas, todas as correntezas, todas as escolas, todos os vazios, todas as imensidões, tudo, tudo, tudo, todos os terráqueos, tudo não passa de uma imensa, uma tristíssima, uma divertidíssima piada. Você se declara, então, em estado de prontidão permanente contra todas as empulhações, diz para si mesmo que jamais trairá o juramento e parte - satisfeito e de banho tomado! - para as grandes lutas inúteis do dia-a-dia.
Lá vem o tsunami! Vem chegando, vem chegando....já chegou! Os jornais impressos vão deixar de existir, nas regiões metropolitanas brasileiras, no ano de 2027.
Quem faz a previsão é uma organização dedicada a estudar tendências e, na medida do possível, antecipar o que acontecerá no futuro. Não por acaso, chama-se Future Exploration Newtwork.
O "assustador": a organização prevê que os jornais impressos sumirão do mapa nas grandes cidades americanas já em 2017!
Ou seja: daqui a pouco.
Terminei encontrando um gráfico com estas previsões depois que o amigo @Marcelo Pimentel Lins me passou o link para um jornal digital que acaba de ser lançado em Brasília: o Fato On Line : ( http://www.fatoonline.com.br/ )
A Future Network chegou a fazer um mapa da extinção dos dinossauros de papel:
http://www.futureexploration.net/Newspaper_Extinction_Timel…
( sou da geração de papel, por supuesto. Quando começou a ouvir, tempos atrás, a previsão de que o jornal de papel um dia iria sumir, meu demônio-da-guarda fazia uma expressão de indizível incredulidade e me soprava: "Não dê ouvidos aos apocalípticos! O jornal de papel vai durar décadas!").
Não vai - pelo menos como portador de notícias. Já li em algum lugar que um saída possível para as edições de papel seria circular apenas nos fins de semana. É possível que os jornais impressos sobrevivam, mas com outro formato, completamente diferente - quem sabe, edições com "cara de revista", com reportagens "de fôlego", belos textos, perfis bem produzidos, matérias que não sejam escravas do calendário - em suma: aquela velha receita de que todos falam e ninguém faz!
Não tenho, claro, a pretensão de ficar "pontificando" sobre jornalismo, mas, depois de décadas na janela, tenho uma certeza pétrea: enquanto os "derrubadores" - e não os "levantadores" - de matéria foram maioria nas redações; enquanto jornalista continuar fazendo jornalismo para jornalista - e não para o público - será impossível desviar a caminhada rumo ao cemitério.
Aos leigos: o "derrubador" profissional é aquele jornalista entediado que, diante de um fato que qualquer criança de três anos consideraria interessante, limpa a baba, tenta abrir os olhos semicerrados e pronuncia sentenças tétricas, como: "Isso não é notícia!". Ou: "A "concorrência" já deu". Ou: "Melhor não..." - e todas as variações das sentenças de morte. O derrubador de matéria é uma erva daninha que existe, em menor ou maior grau, em todas as redações do planeta.
Não desconfia, nunca desconfiou, que os jornalistas puro-sangue são e sempre foram aqueles que, até o último respiro, vão sempre encontrar uma maneira interessante de retratar, com fidelidade, os fatos, as histórias e os personagens que, neste exato momento, estão participando da Grande Marcha da Vida - com todas as suas glórias, as suas desgraças, as suas grandezas.
Se eu fosse fazer uma lista de assuntos interessantes que já vi serem jogados por burocratas na lata de lixo jornalístico, provocaria uma crise coletiva de choro entre jornalistas novatos. Fica para depois. Um dia, quando estiver morando num quartinho na zona rural de Solidão - cidade do sertão que nunca visitei, mas que sempre me fascinou pela beleza do nome - , talvez eu me anime a fazer a Lista Negra dos Crimes de Lesa-Jornalismo Cometidos pelos Burocratas. Parece nome de CPI. Pode ser uma boa diversão para matar o tempo naquelas tardes que, em meus delírios, passam lentas em Solidão, Pernambuco.
Não, caríssimos burocratas, não existe história desinteressante. O que existe é jornalista desinteressado - ou entediado ou, simplesmente, incompetente. Ou as três coisas juntas. É uma lei da natureza: jornalistas burocratas sempre produziram, produzem e vão produzir jornalismo chato, gélido, amorfo, cinzento - seja em que plataforma for: em jornal, em revista, em TV.
Pergunta-se: quem, um dia, vai chorar a morte do jornalismo chato? Quem vai derramar lágrimas pelos burocratas?
Meu demônio-da-guarda me sopra, dessa vez com razão: "Ninguém, ninguém, ninguém".
Faço um gesto de concordância para que meu demônio-da-guarda pare de repetir a palavra "ninguém", fecho a cortina do meu circo mambembe - do qual, aliás, ele sempre foi o único espectador -, apago a luz, encosto o portão e vou embora, para bem longe, com uma certeza: não, o jornalismo não é tão importante. Não merece ocupar tanto tempo de nossas aflições. Há outras coisas infinitamente mais importantes - como a poesia, por exemplo. Ou o futebol. Ou a literatura. Ou o cinema.
Acorda, Maiakóvsky:
"Dai-nos, camarada, uma arte nova - nova! - que arranque a república da escória!".
O meu demônio-da-guarda me interrompe de novo e sai repetindo uma adaptação improvisada de Maiskóvsky: "Dai-nos, camaradas, um Jornalismo novo!".
O fantástico é que o tsunami que vem engolindo tudo - jornais, revistas, tevês - pode, sim. produzir novos e belos rebentos, inclusive no jornalismo.
Como dizia Godard, aqui citado outro dia: "É impossível evitar o futuro!".
Que venham, então, as ondas gigantes, para, pelo menos em nossas ilusões esperançosas, tornar azul o que é cinzento!
Trombo, num dessas gavetas virtuais, com um texto que escrevi quando Joel Silveira, o maior repórter brasileiro, morreu. Convivi durante vinte anos com ele. Digo que aquele apartamento na rua Francisco Sá, em Copacabana, funcionou como uma espécie de curso alternativo de jornalismo.
Tema do nosso documentário GARRAFAS AO MAR: A VÍBORA MANDA LEMBRANÇAS - o primeiro produzido e exibido pela Globonews -, Joel era feito de um material que, lastimavelmente, é raro em redações: era um daqueles que acham que jornalista existe não para jogar notícia no lixo, mas para descrever da melhor maneira possível o grande espetáculo da vida - com suas glórias, suas tragédias, seus personagens irrepetíveis.
Quando ele morreu, tentei publicar este texto, uma espécie de obituário, no jornal. Não consegui. Deve ter ido para o lixo.
Vai aqui, como lembrança:
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O que dizer de um grande repórter ?
Diga-se que, numa tarde, sem ter o que fazer num quarto de hospital, ele foi capaz de contar o número de aviões que cruzavam os céus.
A cena, testemunhada pelo abaixo-assinado:
Enrolado num lençol verde para atenuar o frio do ar-condicionado ligado na potência máxima, o ex-correspondente de guerra Joel Silveira descobriu uma maneira originalíssima de combater o tédio que se abatia sobre ele nas tardes infindáveis do quarto 1122 do Hospital dos Servidores do Estado, no centro do Rio, numa das vezes em que esteve internado: resolveu contar quantos aviões passavam no céu.
O quarto 1122 oferece uma bela vista da Ponte Rio-Niterói. Da cama de Joel, era possível enxergar o intenso tráfego de aviões que se dirigiam ao Aeroporto Santos Dumont. “Já contei quarenta e três aviões. Agora, chega” – disse, ao dar por encerrada a apuração de dados aeronáuticos para uma reportagem que, ele sabia, jamais seria escrita.
A contagem de aviões nos céus do centro do Rio foi a última tarefa jornalística daquele que era chamado por Assis Chateaubriand de “a víbora”.
O apelido lhe foi dado pelo chefão dos Diários Associados depois que Joel escreveu uma reportagem recheada de ironias sobre as damas do soçaite paulistano. O título de “maior repórter brasileiro” também acompanhou inúmeras vezes o nome de Joel Silveira – que, aos trinta e dois anos, foi enviado por Chateaubriand para os campos de guerra na Itália,na Segunda Guerra Mundial.
”Fui para a guerra com 32 anos.Voltei com 80.O que a guerra nos tira – quando não tira a a vida – não devolve nunca mais” – diria, pelo resto da vida. Viu o sargento Wolf ser fuzilado por uma patrulha alemã. O texto que Joel mandou para os Diários Associados começava na primeira pessoa : “Vi perfeitamente quando…..”.
Joel Silveira era representante de uma categoria rara: a dos repórteres que dão um toque pessoal e inconfundível ao que escrevem. Passou a vida lamentando não ter abordado Ernest Hemingway que, solitário, bebia conhaque num café da Paris do pós-guerra.”Perdi a chance de pedir uma entrevista. O pior que poderia acontecer era levar um soco de Hemingway- o que garantiria uma bela matéria”. Rubem Braga foi companheiro de Joel na aventura européia durante a guerra.
Com Nélson Rodrigues – de quem foi companheiro de redação em publicações como a Manchete a e Última Hora – Joel tinha relações distantes.
Depois de ficar em silêncio observando Joel datilografar furiosamente um artigo na redação, Nélson Rodrigues soltou uma exclamação: “Patético !”. Dias depois, Joel devolveu o gesto. Diante da mesa de Nélson Rodrigues, bradou : “Dramático !”.
O humor afiado transformou-o em personagem de incontáveis histórias dos bastidores do jornalismo. Sempre que tinha chance, encaixava em seus artigos uma observação contra dois tipos que detestava gratuitamente : os tocadores de cavaquinho e os alpinistas.
“O cúmulo do ridículo – beirando o grotesco – é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”- escreveu, num dos seus livros.
Em outro texto,perguntou: “Pode haver algo mais idiota do que um alpinista ? “.
Depois de consumir quantidades oceânicas de uísque, passou os últimos anos da vida abstêmio.”Já não tenho com quem beber. Meus amigos se foram. Nada é tão triste do que beber sozinho”. Passou os últimos anos declarando : “Sou a maior solidão do Brasil”.
Repórter a vida inteira, dizia que, se houvesse justiça na hierarquia das redações, os donos dos jornais seriam subordinados aos repórteres. Só teve uma experiência como dono de jornal. Publicou, no início dos anos cinqüenta, um jornal, Comício, que reunia um time de primeira : Clarice Lispector, Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Castelo Branco.
Dizia que tinha perdido a conta de quantos livros publicara. Entre os títulos mais conhecidos, estão “A Guerra dos Pracinhas”, “Tempo de Contar” e o autobiográfico “Na Fogueira”.
Resumiu assim uma trajetória iniciada num jornalzinho de escola em Sergipe,em 1935 : “Passei a vida vendo a banda passar. É o que todo repórter deve fazer”. Conheceu pessoalmente dois cardeais que, depois, seriam indicados Papas : João XXIII e Paulo VI. Teve um encontro com Pio XII. Os encontros com os Papas não foram suficientes para transformá-lo em homem religioso . Cético, gostava de repetir o poeta Murilo Mendes : “Deus existe. Mas não funciona”.
Atento aos fatos até o último momento, disse-me, por telefone: “Estou morrendo. É o fim”.
Uma das lições que aprendi: jornalista de verdade é aquele capaz de contar aviões na cama de um hospital.