setembro 30, 2014

DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 2

"O jornalista precisa se vacinar contra o engajamento ideológico. Não é vacina opcional: é vacina obrigatória! É como vacina contra paralisia infantil: todos devem tomar" OU: DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 2

( Depoimento colhido por alunas do curso de jornalismo da Universidade do Povo/ SP e publicado num livro que reúne entrevistas de quinze repórteres brasileiros sobre a profissão:
http://goo.gl/cQQwaB
É longo. Vou republicá-lo aqui, "em capítulos", como uma pequena contribuição a estudantes eventualmente interessados no que diz um quase-dinossauro:
Gravando! ):
Você fala muito que a “frigidez editorial” prejudica o jornalismo. Como ela pode ser combatida?
GMN: "É uma doença terrível na redação: a Síndrome da Frigidez Editorial. Batizei esta doença. Deveria registrar o nome na Organização Mundial da Saúde. O que é esta Síndrome? É a doença do jornalista que, depois de anos de profissão, perde a capacidade de se espantar diante da realidade. Se perde este fogo, o jornalista deve mudar de profissão. Porque passa a ser nocivo ao jornalismo.


Não estou falando de algo abstrato, mas de uma situação real, palpável, comprovável no dia a dia das redações. Cansei de ver em redações um clima de tédio total entre os jornalistas. Se você atravessar a rua, for à padaria e comentar que entrevistou uma velhinha que foi passageira do Titanic, provavelmente os "ouvintes" farão perguntas e se interessarão pelo assunto, enquanto muitos jornalistas dirão, com os olhos semicerrados de tédio: "Ah, mas já faz 100 anos que o Titanic afundou...".
Quando falo de frigidez editorial, estou criticando a atitude entediada. Neste sentido é que faço questão absoluta de não me enquadrar no "universo mental" dos jornalistas. Nesse universo, você corre o risco de se julgar mais importante do que você realmente é. O mundo real é mais interessante do que o mundo dos jornalistas. É o que mostra minha experiência de vida. Cansei de ver, ouvir e encontrar leitores e telespectadores mais interessados pelos fatos do que jornalistas.
Para que possam contribuir com esse "mundo real", os jornalistas têm que ter uma atitude de permanente espanto. Precisam ser "levantadores", não "derrubadores" de matéria. É aí que entra em cena, gloriosamente, a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. Quando criou esta "entidade", Kurt Vonnegut não estava se referindo ao jornalismo, mas essa “santa” deveria ser proclamada padroeira plenipotenciária da nossa profissão. O jornalista precisa manter, em algum ponto de suas florestas interiores, aquela chama, aquela faísca, aquele espanto que se vê no brilho dos olhos de um estagiário - ou de uma criança.
Quando você se guia pelo entusiasmo das pessoas que estão fora da redação, o resultado do trabalho é melhor do que se você se guiasse pelo tédio dos que estão dentro".

Você se dedica muito ao gênero entrevista. Por que se especializou nesse gênero e o que considera importante para desempenhá-lo com eficiência?
GMN: "Gosto de fazer, porque a entrevista é a matéria-prima do jornalismo. Tenho uma crítica seriíssima a fazer ao tom das entrevistas feitas pela imprensa brasileira. São excessivamente congratulatórias, principalmente em televisão. Entrevista deve ser um instrumento de revelação - não de congratulação ao entrevistado! É o que adotei como princípio geral para mim. Não quero ser amigo do entrevistado. Não devo ser. É um pecado capital. Acontece especialmente aqui no Brasil, quando o jornalista entrevista celebridades.
Você pode ver uma coletiva de um presidente americano, por exemplo. O jornalista lá é incisivo e diz: “o senhor mentiu...”. Eventualmente, pode parecer agressivo, mas é o papel da imprensa. E o presidente vai responder!
Outro pecado capital é o engajamento ideológico. O ex-presidente americano George Bush é tão interessante pra mim, jornalisticamente falando, quanto Fidel Castro. Adoraria entrevistar os dois, mas, para ser sincero, conheço jornalistas que se recusariam a entrevistar o Bush, por conta de ideologia. É claro que tenho minhas opiniões políticas, mas lugar de fazer "patrulhagem ideológica" é na urna, no dia da eleição. Não é na redação, sob hipótese alguma.
Quando entrevistei o [general] Newton Cruz, disse a ele, no final da entrevista: “não quero bancar o bom moço, porque o jornalista vive é de sangue. Quero manchete, quero escândalo, quero causar embaraço para o entrevistado, mas quero dizer que, jornalisticamente falando, o senhor me interessa tanto quanto Luís Carlos Prestes, o líder comunista”.
Eu não estava ali pra fazer patrulhagem ideológica em cima do general. Estava atrás de revelações. Com um entrevistado como ele, você consegue informações ricas sobre o regime militar. Mas existem jornalistas que se recusariam a entrevistar o general Newton Cruz, porque ele tinha fama de linha dura.
Meu princípio é o seguinte: antes de pisar numa redação, o jornalista precisa se vacinar contra o engajamento ideológico. Não é vacina opcional: é vacina obrigatória! É como vacina contra paralisia infantil: todos devem tomar.
Outro problema: como passa a vida lidando com o que é extraordinário, o jornalista corre o sério risco de passar a achar que o extraordinário é ordinário. Transforma-se naquela figura triste do “derrubador de matéria”, um bicho que infesta as redações. De maneira grosseira, divido os jornalistas em duas categorias: os bons, os tais “levantadores de matérias”, são aqueles que você pode pautar para falar de uma xícara e eles vão inventar um jeito interessante para escrever a respeito. Os ruins, em geral, são os “derrubadores”.
Repito: faço questão de não me enquadrar no universo mental da média dos jornalistas. Estou fora. Prefiro ser um "pária". O que o jornalista "tradicional" diz é : “Ah, fulano já deu esta declaração não sei onde, não vou dar essa matéria não”. Ou então a frase tétrica:
“A Folha já deu”. Não me interessa se a Folha deu! O bom jornalista vai procurar fazer de um jeito diferente, vai pensar numa maneira de avançar no assunto, vai descobrir um novo personagem, vai contar aquela história de uma maneira mais interessante!
Se Roberto Carlos já deu mil entrevistas, por que na milésima primeira eu não posso tirar algo novo? É preciso ter esta atitude. O jornalista pode até voltar de mão abanando, mas, pelo menos, tentou. Um bom lema é aquela frase de Angie, uma música bonita dos Rolling Stones: "Você não pode dizer que a gente não tentou".
Você já entrevistou muitas personalidades históricas. Qual personalidade não está mais viva e você gostaria de ter entrevistado?
GMN: "Quando fiz esta pergunta a Joel Silveira, uma espécie de guru meu, ele disse: “a entrevista que eu queria fazer era com Hitler. Perguntaria a ele: por que o senhor não insistiu na carreira de pintor? O mundo iria ganhar um pintor medíocre, mas, em compensação, iria se livrar de um dos maiores tiranos da história...”. Joel brincou que, nesse momento, entrariam cinco guardas na sala e o levariam até o cadafalso para matá-lo [risos]. “Mas pelo menos teria feito a pergunta”. Um dos que gostaria de entrevistar seria Hitler mesmo. A princípio, para mim, todo mundo é “entrevistável”.

Posted by geneton at 01:06 PM

RÁPIDA NOTÍCIA SOBRE CINEMA: QUE A LUZ DOS DISSIDENTES BRILHE NAS TELAS DO PLANETA!

Um filme sobre futebol - belo, original, bem fotografado e bem montado- acaba de sair do forno: Campo de Jogo - de Eryk Rocha. Em exibição no FestRio. Vale ver! Ao lançar o filme, esta noite, Eryk Rocha reclamou da "ditadura dos números" no cinema brasileiro. De fato: nem tudo é bilheteria neste planeta. Filmes que - por exemplo - produzem beleza ou inquietação terão sempre um papel fundamental a cumprir. Que a luz dos dissidentes brilhe nas telas!

Posted by geneton at 11:38 AM

setembro 29, 2014

A PEDIDO DE UM GRUPO DE ESTUDANTES, DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - 1

Fui procurado por alunos do curso de Jornalismo da Faculdade do Povo ( São Paulo ). Estavam fazendo entrevistas com trinta repórteres brasileiros. Queriam reunir, em livro, experiências que pudessem ser úteis aos estudantes. Sempre que alguém me pede um depoimento deste tipo, minha primeira reação é perguntar, sinceramente: "Quem? Eu? Pelo amor de Deus!". Mas....termino me rendendo, intimamente, a um argumento: por que não passar adiante, para os que se iniciam na profissão, coisas que a gente viu, ouviu e tentou aprender pelo caminho afora? Qual é o problema? É a "vida aos outros legada" - de que falava o belo poema de Carlos Drummond de Andrade. Sempre achei risível a pretensão descabida de jornalistas que se julgam mais importantes do que realmente são - mas juro solenemente, em nome de Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, que não é o meu caso. Feita esta ressalva, encarei o questionário.
( O depoimento, colhido pelas alunas Jessyca Tamyres dos Santos e Daniela Gualassi, virou um extenso capítulo de um livro, organizado pela professora Patrícia Paixão:
http://goo.gl/cQQwaB
É longo. Vou republicá-lo aqui, "em capítulos", a partir de hoje - como uma pequena contribuição a estudantes eventualmente interessados no que diz um quase-dinossauro ) :


Gravando!
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Você é formado em Jornalismo, mas já trabalhava na área quando começou a faculdade. Sentiu alguma diferença entre teoria e prática?
GMN: "Quando comecei o curso de Jornalismo, na Universidade Católica, já tinha experiência em redação, porque comecei a trabalhar no Diário de Pernambuco dois anos antes de fazer vestibular. Mas alguns professores não tinham esta experiência. Usavam, por exemplo, livros europeus sobre jornalismo que traziam organogramas que simplesmente não existiam nos jornais locais, como o próprio Diário.
Eu chegava ao jornal pelas duas horas da tarde. Recebia das mãos do chefe de reportagem as pautas e saía com o fotógrafo na Kombi de reportagem. Voltava para a redação no final da tarde e escrevia tudo correndo. A prática era assim, bem diferente da teoria que eu ouvia na sala de aula.
Sempre quando me perguntam sobre a necessidade de diploma de Jornalismo, digo que ninguém ficou mais burro por estudar. Vá fazer faculdade, então! O que deve ser discutido é a natureza do que se ensina na faculdade. Porque, em alguns casos, em seis meses numa redação você aprende mais do que em quatro anos numa faculdade. Talvez pudesse ser criada uma especialização de um ano. Um estudante de Medicina, para aprender a operar, tem de passar cinco anos na faculdade. Agora, para informar que “a presidente Dilma Rousseff assinou ontem um convênio no Recife para evitar enchentes”, não é preciso tanto tempo assim. Pelo amor de Deus, não é!
A técnica jornalística é simples. Depois de tantos anos frequentando redações, digo o seguinte: os jornalistas mais qualificados são os que investem por conta própria em si mesmos. Saiu a coletânea de textos de Paulo Francis, por exemplo? Encontrou os livros de Gay Talese? As reportagens de Joel Silveira? Uma antologia de Rubem Braga? As matérias de Elio Gaspari ? Vá lá, compre e leia. Tenha curiosidade. Garimpe na Internet. Vá ver o filme Todos os homens do presidente [de Alan Pakula]. Não dá para ficar esperando sentado as coisas caírem no colo. Não espere que o planeta vá ficar dando tapinhas de reconhecimento nas suas costas. Pelo contrário. Aliás, é preciso aprender a conviver também com a rejeição profissional. Faz parte do circo. Já vi matérias minhas serem jogadas no lixo em série, uma atrás da outra. Já fui profissionalmente assassinado por editores.
Estou usando uma linguagem de tabloide sensacionalista inglês para dramatizar uma situação, mas é verdade: já fui profissionalmente assassinado. Fui abatido a tiros "n" vezes. Minha relação com o Jornalismo, então, é totalmente acidentada. Pode soar pretensioso, mas não é: prefiro ser um dissidente. Em qualquer situação, não apenas no Jornalismo, sempre preferi os dissidentes, os outsiders, os rejeitados. Em 98% dos casos, são mais interessantes do que os "aderentes". Viva a dissidência!
Se ser Jornalista é jogar notícia no lixo, estou fora. Não me enquadro neste “universo mental”. Prefiro imaginar, ingenuamente, que o jornalismo pode ser vívido, interessante, luminoso. Não há assunto desinteressante. O que há são maneiras desinteressantes de contar o que aconteceu. Ou seja: desinteressante é o jornalista. Não é a vida. Se eu pudesse escolher e se ainda houvesse tempo, talvez, até, eu preferisse criar cabras em Santa Maria da Boa Vista. Mas, feitas as contas, eu sei, no íntimo, lá no fundo, que, a essa altura do campeonato, minha maneira de fazer algo minimamente útil é exercer o jornalismo com devoção. Quando eu sentir a tentação de virar um burocrata derrubador de matéria, aí sim, prometo sair de cena, desaparecer do mapa e pegar o primeiro ônibus para Santa Maria da Boa Vista. Nunca estive em Santa Maria, mas o nome, pelo menos, é bonito".

Percebemos que o Geneton da TV é diferente do Geneton que escreve. Como é essa relação entre as duas mídias?
GMN: "É completamente diferente. Não estou fazendo charme, mas não sou uma pessoa de televisão. Não sou mesmo. Nunca fui e nem quero ser. Há até uma incompatibilidade física. Sou a figura menos “fotogênica” do mundo (é um eufemismo para dizer: bicho feio desgraçado!). Não falo para a câmera. Falo para o entrevistado. Não consigo narrar um texto com naturalidade. Prefiro, claro, usar as belas vozes de Sérgio Chapelin ou Cid Moreira para ler os textos que escrevo. Neste sentido, entendo quando, em TV, coisas que fiz foram para o lixo. Sou uma coleção ambulante de impropriedades televisivas. Considero-me, definitivamente, um jornalista de imprensa escrita. Quando digo “escrita” estou falando de livro, jornal, revista, blog, seja o que for. Eu me sinto mais à vontade escrevendo textos. Talvez a TV tenha suprido a minha frustração de não ter feito cinema. Tento, então, em TV, fazer uma câmera, uma luz, um enquadramento diferenciado. Dirijo-me ao entrevistado e não ao público, o que é um absurdo, porque eu deveria em algum momento me dirigir aos telespectadores, mas não sei. Sem falsa modéstia: não é meu veículo".

Você teve uma experiência em Paris estudando cinema. Como isso influenciou diretamente seu trabalho?
GMN: "Nessa época, eu trabalhava na sucursal do Estadão no Recife. Estava bem. Era solteiro. Tinha “casa, comida e roupa lavada”. Ainda assim, resolvi pedir demissão e ir para Paris. Pensava em passar três meses. Terminei me matriculando em um curso de cinema, uma espécie de pós-graduação na Universidade de Paris I-Sorbonne. Mas vi que não tinha vocação acadêmica para aquilo.
Fiz um projeto de tese intitulado Cinema e subdesenvolvimento: o caso brasileiro, nome bem pomposo. A ideia era discutir como o Brasil, um país subdesenvolvido, poderia criar um cinema esteticamente desenvolvido, como o Cinema Novo, por exemplo. A tese foi aceita. Eu, como “bom selvagem” vindo do Terceiro Mundo, tinha, claro, aquela ânsia de filmar logo, pegar uma câmera, tentar ingenuamente abalar as telas com meus filmecos de curta-metragem. Mas esbarrava nos professores franceses, com aquela coisa teórica demais na sala de aula. O professor começava com Aristóteles, Platão, até chegar num take de Hitchcock [cineasta inglês Alfred Hitchcock] . Vi que não teria paciência para aquilo. Frequentei só o primeiro ano.
Uma coisa marcante foi o encontro com Glauber Rocha. Meses antes de morrer, ele foi a Paris fazer uma exibição privada do filme A Idade da Terra para os críticos franceses. Um amigo meu, que também estudava cinema, Marcos de Souza Mendes, perguntou a Glauber se poderia ir à exibição do filme. Quis saber se poderia levar mais alguém, um amigo estudante de cinema. Era eu. Glauber disse que sim. Quando chegou o dia da exibição, lá estávamos nós, os dois brasileiros que estudavam cinema em Paris. Duas cenas foram inesquecíveis. A primeira cena foi Glauber Rocha falando em voz alta, em francês, no hall do cinema, com aquele sotaque nordestino: “Eis aqui a juventude brasileira estudando cinema em Paris!”. E aqueles críticos de cinema francês olhando pra gente. Quando acabou a exibição, dentro da sala, Glauber se virou para nós, ficou tocando o dedo indicador da mão esquerda no dedo indicador da mão direita e perguntando: “Fizeram as ligações? Fizeram as ligações?”. Queria saber, na certa, se a gente tinha entendido o que um filme radical como Idade da Terra poderia significar como ruptura da linguagem cinematográfica. Só este dia já valeu a viagem para Paris. A contribuição do cinema para a minha carreira jornalística foi no sentido de tentar ser original na hora de captar uma imagem. É uma influência indireta da experiência toda que vivi em Paris".

Você já foi editor-chefe, mas sempre deu um jeito de exercer a função de repórter. Assim como o Joel Silveira, você faz opção pelo “mundo exterior”?
GMN: "As experiências que a gente tem no início da carreira marcam pelo resto da vida. Assim que entrei no Diário, fui fazer reportagem. Meu lugar, como repórter, era na rua. Se tivessem me escalado para fazer outra coisa, provavelmente, hoje eu seria um editor, por exemplo. Mas, desde então, para mim, jornalismo virou sinônimo de reportagem. Tudo que eu fiz fora da reportagem considero como enorme perda de tempo. Fui um dos poucos casos de jornalista que “rasgou dinheiro” - por abrir mão de cargo de chefia. Não tinha nem tenho vocação nenhuma para ser chefe. Mas me ofereceram cargos de chefia. Já fui editor-chefe do Fantástico por anos, por exemplo, mas não me interessa ser chefe. Meu negócio é ir para a rua, entrevistar alguém. Ficar numa redação trancado, discutindo o futuro da humanidade? Never. Estou fora!".

Posted by geneton at 01:06 PM

setembro 21, 2014

OBSERVAÇÕES INÚTEIS SOBRE O ESTADO GERAL DAS COISAS - 2

1. Passei 4 minutos contemplando a parede, em busca de inspiração. Fracassei. A única coisa que me ocorreu foi: "A Terra é um equívoco giratório!". Que coisa...
2. Fato: tudo o que já se criou de interessante foi contra o senso comum. É pena que, no fim, a Grande Conspiração da Mediocridade domine tudo, sempre.
3. A fórmula secreta da felicidade : aprender a conviver com fracassos. Não existe coisa melhor. Isso só é possível depois dos quarenta.

4. Demorou, mas descobri: o nome científico do homem é EFOC (Equívoco Feito de Osso e Carne). Vou mandar um informe para a Organização Mundial da Saúde, a OMS,em Genebra.
5. Estatística: comecei a ouvir rádio às 09:10:35. Uma repórter falava em "o óculos" - assim, com o artigo "o" no singular. Parei de ouvir às 09:10:38. Não posso dizer que não tentei.
6. Comecei a ler jornal,ontem, às 10:10:20. Um texto falava em "encarar de frente". Parei de ler às 10:10:25. Não posso dizer que não tentei.
7. As coisas estão cada vez mais previsíveis: já sei que,ao chegar ao inferno, vou encontrar, logo na entrada, alguém cheirando uma taça de vinho.
8. As coisas estão cada vez mais previsíveis: já sei que, quando chegar ao inferno, vou encontrar 10 BBBs pulando e gritando
"uh-ru!".
9. Cálculos: quando tinha 17 anos, eu não confiava em ninguém com mais de 30. Hoje, não confio em ninguém com menos 35. Nem com mais.Tenho 58.
10. A TV é um eletrodoméstico metido a besta. A geladeira é mais útil e, principalmente, mais silenciosa. Uma salva de palmas para Dona Frigidaire !

Posted by geneton at 01:16 PM

setembro 20, 2014

UM QUARTO DE SÉCULO DE ELEIÇÕES DIRETAS PARA PRESIDENTE! LONGA VIDA ÀS URNAS!

Parece incrível mas já faz um quarto de século que o Brasil voltou a ter eleição direta para Presidente. Vinte e cinco anos! Ainda bem!
A primeira eleição depois do fim do regime militar, como se sabe, aconteceu em 1989 ( quem acompanhou há de se lembrar dos embates entre candidatos: Leonel Brizola, Lula, Mário Covas, Ulysses Guimarães, Fernando Collor - o improvável vencedor....).
Aqui, lembranças de um país em que eleição direta para presidente era apenas um brilho nos olhos do comandante da oposição:


Quando, no dia 17 de janeiro de 1976, o operário Manoel Fiel Filho foi morto sob tortura nas dependências do II Exército, em São Paulo, o deputado Ulysses Guimarães, presidente do MDB e, portanto, chefe da oposição, estava no Recife.
O “Doutor Ulysses” – era assim que todos o chamavam – tinha feito uma tumultuada viagem a Caruaru, no agreste do Estado, para participar de uma espécie comício fora de época. Não deu certo.
Por ordem do Ministério da Justiça, o governo de Pernambuco mandou avisar que estavam proibidas reuniões políticas em praça pública. Assim, o tal comício foi transferido, às pressas, para um ambiente fechado – um auditório que ficou superlotado.
Eu me lembro de que Ulysses Guimarães, um orador que produzia frases de efeito em série, levou o auditório ao delírio ao lançar o nome do senador Marcos Freire como candidato das oposições ao governo de Pernambuco.
Todos sonhavam com uma eleição direta em 1978. Não houve eleição direta em 1978: os governadores só voltariam a ser escolhidos pelo voto do povo em 1982. ( Tempos depois, ao entregar ao país uma nova Constituição, ele diria: “Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades”). As ruas do centro de Caruaru ficaram povoadas de guardas, equipados com armas e cães.
De volta ao Recife, depois da aventura em Caruaru, o “Doutor Ulysses” estava se preparando para embarcar para Sergipe quando estourou a notícia de que o presidente Ernesto Geisel tivera uma reação surpreendente diante da morte do operário: decidira punir, com demissão, o comandante do II Exército, general Ednardo D`Ávila.Havia, obviamente, uma crise militar no ar.
Repórter da sucursal Recife do jornal “O Estado de S.Paulo”, fui convocado, às pressas, para embarcar no avião que, dali a minutos, levaria o Doutor Ulysses para Aracaju, a próxima parada do périplo nordestino.
Fiz a primeira abordagem ainda no corredor do Aeroporto. O Doutor Ulysses leu,com ar grave, o telex que eu lhe entregara, com informações sobre a demissão do comandante do II Exército. Disse que falaria a bordo.
Depois do embarque, pegou um jornal para ler. Vi perfeitamente quando, ao tentar atravessar os parágrafos de um editorial, Doutor Ulysses tropeçou – e caiu gloriosamente nos braços de Morfeu. Pegou no sono, sem largar o jornal.
Desde então, uma dúvida incendiária passou a agitar minhas florestas interiores : para que servem, realmente, os editoriais dos jornais, além de provocar um desabamento incontrolável das pálpebras de quem os lê ? Sono,sono, sono.
Quanto à declaração: raposa, o Doutor Ulysses sentiu a gravidade do momento. Quando acordou, me pediu que o procurasse depois do pouso. Lá embaixo, iria falar.
Uma multidão o aguardava no aeroporto. O homem escapou. Durante a coletiva, ninguém tocou no assunto da demissão do general. Fiz a pergunta, porque já estava, literalmente, “correndo contra o relógio”. Doutor Ulysses respondeu com frases cuidadosas.
Disse que o MDB não tinha prevenção contra militares. Fez questão de lembrar que o partido já tinha sido presidido por um general reformado, o senador Oscar Passos. Ou seja: o comandante da oposição pisava em ovos, porque sabia que, em época de crise militar, o terreno estava minado. O homem não queria, ali, atiçar a fúria do Olimpo verde-oliva.
Ao deixar a sala onde dera a entrevista coletiva, na Assembléia Legislativa de Sergipe, Doutor Ulysses apertou minha mão e cochichou, no meu ouvido, uma frase que, até hoje, não sei se foi uma queixa ou um cumprimento: “Você soltou o seu petardo !”.
De madrugada, quando chegou ao hotel, Ulysses foi cercado de novo pelo matilha de repórteres que seguiam seus passos – o locutor-que-vos-fala, inclusive. Topou falar, à beira da piscina deserta. Disse que temia que, se houvesse uma crise, a oposição poderia ser levada a recorrer a “soluções de força”.
Horas depois, ao sair do hotel bem cedo, em direção ao aeroporto, Doutor Ulysses pediu à recepção que um dos repórteres – que também estavam hospedados ali – fosse chamado. O recepcionista ligou - aleatoriamente - para um dos quartos dos "rapazes da imprensa".
Um colega, a serviço do Jornal do Brasil, foi acordado. Ouviu,então, um apelo do Doutor Ulysses: por favor, ele pedia, retirem do texto da entrevista a expressão “soluções de força”. O pedido foi retransmitido a todos os repórteres. Assim foi feito.
Nem faz tanto tempo: o Brasil era um país em que o comandante da oposição enfrentava, literalmente, cães no meio da rua.
Não se podia promover aglomeração política em praça pública.
Não se votava nem para governador. O que dirá para Presidente da República ?
(tempos depois do entrevero em Caruaru, cães avançariam sobre o comandante do MDB em Salvador. Lá, ele pronunciaria a frase célebre: “Baioneta não é voto! Cachorro não é urna!”).
Independentemente de qualquer coisa, é sempre bom saber que, já há quase três décadas, o país vive numa democracia em que cenas como aquelas - o presidente do partido da oposição se refugiando num auditório para escapar dos cães da polícia – só teriam lugar num roteiro de ficção.
Então: às urnas, cidadãos !
E “atenção para o refrão” : numa democracia, independentemente de coloração ideológica, a única coisa que não se pode tolerar é a intolerância com adversários. Ponto.
Longa vida às urnas !

Posted by geneton at 12:16 PM

setembro 19, 2014

CENA SURREALISTA: O DIA EM QUE A POLÍCIA FEDERAL ESTEVE NO ENCALÇO DO LOCUTOR-QUE-VOS-FALA. MOTIVO: UM FILME DE ARNALDO JABOR ( E OUTRAS ANOTAÇÕES SOBRE OS VERDES ANOS )

Descubro, por acaso, num escaninho virtual qualquer, um texto que me foi pedido, faz alguns anos, sobre o Diário de Pernambuco.
Trata de uma época "braba": o início dos anos setenta. É inacreditável, mas a Polícia Federal perdia tempo querendo saber por que um repórter escreveu um sinal de reticências! Ressuscito o texto. Ei-lo:
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Se eu fosse supersticioso, teria me recusado terminantemente a sair da maternidade: nasci numa sexta-feira 13, num beco sem saída. A história tinha tudo para dar errado. Para dizer a verdade, deu. Mas continuo tentando. Não custa nada.


( O grande Paulo Francis disse uma vez que, se tivesse a capacidade de falar cinco minutos depois de nascer, teria inspecionado a paisagem ao redor e perguntado: "Quem disse que eu queria vir para esta joça? ". Faço minhas as palavras do bebê Francis ).
Posso dizer, sem medo de errar, que sou um zagueiro-central frustrado, cuja maior façanha foi marcar um gol de bicicleta, numa pelada na praia do Janga, durante um fulminante contra-ataque, num dia azul de verão de Olinda. O gol foi prontamente anulado por um banhista que passava pelo local.
Fora dos gramados, começo a escrever em jornal aos treze anos de idade, no início de 1970, no suplemento “Júnior” - que circulava aos sábados, no Diário de Pernambuco.
Inocente como todo zagueiro-central amador,cometo o pecado mortal de de tentar imitar o estilo bombástico de David Nasser em “O Cruzeiro”. Os leitores infanto-juvenis resistiram bravamente ao trauma provocado por meus artigos. O suplemento era dirigido por Fernando Spencer e por D. Loydes Marques dos Reis, a famosa “Tia Lola”, a quem devo agradecimentos, pelo incentivo nos verdes anos.
Depois, passei três anos na reportagem geral do Diário de Pernambuco. As lições que a gente aprende no início da profissão são, provavelmente, as mais importantes, porque ficam para sempre.
Adquiri ali, nos meus primeiros tempos na redação do Diário, uma crença que me acompanha até hoje: a reportagem é a função mais importante e mais fascinante do Jornalismo. É claro que, sem editores, os jornais não iriam para a rua. Mas, sem repórteres, as notícias não chegariam às redações.
Carrego comigo – nítidas – outras tantas lembranças: o intenso barulho das máquinas de escrever, principalmente no início da noite, hora em que os repórteres e editores começam a “correr contra o relógio”.
A morte das máquinas de escrever decretou uma estranha lei de silêncio nas redações. Hoje, a aparente assepsia das redações contrasta com aquela sinfonia desafinada que aprendi a ouvir, ali, nos primeiros anos da década de setenta.
As cenas que guardo na lembrança encheriam páginas e páginas de um livro que,certamente, jamais escreverei, porque espero estar sempre ocupado em busca de boas histórias e bons entrevistados – que são os outros, não eu. Não me julgo ,sinceramente, um personagem tão interessante. Não sou.
De qualquer maneira, eu me lembro do Dr. Antônio Camelo – na época, superintendente do Diário de Pernambuco, homem que a redação encarava com reverência – me chamando à sala que ele ocupava, no segundo andar, para dar uma missão àquele repórter iniciante: queria que eu fizesse uma reportagem “completa” sobre as condições de funcionamento do hospital psiquiátrico da Tamarineira. “Vá lá, entre sem dizer que é repórter, diga que tem uma irmã internada lá, faça qualquer coisa, mas volte com a matéria!”.
Com a petulância típica dos adolescentes, eu disse “pode deixar”. De fato, entrei sem me anunciar como repórter. O fotógrafo ficou acompanhando tudo à distância. Consegui falar com os internos. Ouvi queixas sobre a qualidade da comida servida. Disseram-me que o feijão vinha com pedra.
Voltei ao hospital – dessa vez, já na condição declarada de repórter. Procurei a direção. Ouvi que o cardápio dos pacientes era um primor de variedade : um dia peixe,em outro frango,em outro carne. Que história era aquela de reclamações?
Volto para a redação do Diário. Graças à missão que me fora dada por “Doutor Camelo” (era assim que todos o chamávamos), aprendi, na prática, uma lição fundamental na vida de qualquer jornalista: há sempre duas verdades - a "verdade oficial" e a "verdade dos fatos".
Nem sempre o que os porta-vozes oficiais dizem é verdadeiro. Se eu tivesse ouvido apenas a direção do hospital, teria voltado para a redação certo de que o serviço oferecido aos pacientes era digno de um hotel de cinco estrelas. Mas, misturado aos internos, pude constatar que existia o outro lado da moeda.
O Brasil vivia os chamados “anos de chumbo”. O início dos anos setenta nem sempre era um época divertida para um candidato a jornalista. Eu me lembro de ter visto chegar à redação do Diário de Pernambuco comunicados da Polícia Federal avisando, por exemplo, que estavam vetadas quaisquer referências, comentários, entrevistas ou notícias sobre a proibição de uma peça de teatro escrita por Chico Buarque – “Calabar“.
A divulgação de notícias sobre discursos pronunciados por Dom Hélder no exterior também estava vetada.
Uma cena que vivi na redação do Diário ilustra o tamanho da escuridão: publiquei, numa coluna que eu assinava no caderno “Domingo” – em formato tabloide – um ligeiro comentário sobre o filme “Toda Nudez Será Castigada”, dirigido por Arnaldo Jabor a partir de uma peça de Nélson Rodrigues.
O filme, premiado no exterior, acabara de ser proibido pela censura. Lá pelas últimas linhas do comentário, eu falava da proibição e dizia que era “uma pena”. O artigo terminava com reticências.
Bastou para que dois agentes da polícia federal fossem enviados à redação do Diário, no início da tarde da segunda-feira, à procura do autor de tão perigoso comentário. Eu não estava. Procuraram pelo editor do caderno “Domingo”. Era João Alberto – na época, cronista social já famoso. Lá se foi João Alberto para a Polícia Federal, para tentar explicar ao superintendente o que queriam dizer aquelas reticências.
Quando cheguei à redação, fui chamado para a “sala do Doutor Camelo”. Lá estavam João Alberto, Gladstone Vieira Belo (na época,editor-chefe) e o próprio Doutor Camelo discutindo o caso das reticências. ( Eu estava em início de carreira. Tinha dezessete anos de idade. Começara a trabalhar como repórter, no Diário, aos dezesseis - em agosto de 1972 ).
Os três, a bem da verdade, me tranquilizaram: disseram que não era a primeira vez que tais problemas ocorriam. Não seria a última. Que eu continuasse o meu trabalho. Mas João Alberto não escapou de ouvir uma bronca do superintendente: para o policial, era uma “irresponsabilidade” um mero estudante - que nem tinha entrado no curso de Jornalismo ainda - ter uma coluna assinada no Diário de Pernambuco.
Hoje, a cena parece surrealista: mas houve um tempo em que a Polícia Federal gastava pessoal e gasolina em busca de um estudante que escrevera um sinal de reticências no Diário de Pernambuco! O ano: 1973. Quanto desperdício, quanto surrealismo, quanta alucinação!
Fragmentos de lembranças vão passando agora diante de mim, como um filme que fosse exibido aos pulos.
Eu me lembro de ter visto Luiz Gonzaga,o “Rei do Baião”, sentado no fundo da redação do Diário. O que ele estaria fazendo ali? Não me lembro. Mas sei que aproveitei a chance para fazer uma entrevista que foi publicada no domingo seguinte.
Ou Alceu Valença sentado na ante-sala da redação, empenhado na tarefa de divulgar a música “Vou Danado pra Catende” – que seria apresentada num festival de música da TV Globo.
Ou Gilberto Freyre, o Mestre de Apipucos, interrompendo uma entrevista para consultar no dicionário o exato significado de um adjetivo. Virou-se para mim, perguntou :“Viu como consulto dicionários ?”. Vi, sim. Se o gênio Gilberto Freyre se dava ao trabalho de consultar dicionários,o mínimo que eu poderia fazer era tentar um dia ler o Dicionário Aurélio da primeira à última página.
Ou o escritor de livros infantis Malba Tahan ditando para mim, na sala de Gladstone Vieira Belo, aquelas que seriam suas últimas palavras. O escritor viera ao Recife para fazer conferências. Depois de deixar o prédio do Diário de Pernambuco, foi para um Hotel em Boa Viagem – onde morreu de um enfarte fulminante.
Jornalista faz humor até em situações dramáticas. Eu me lembro de que alguém fez circular pela redação uma lista de “inimigos públicos” que eu deveria entrevistar – na esperança de que acontecesse com eles o que aconteceu com o escritor.
O que um repórter iniciante vive na redação do jornal que o acolhe é fundamental para o aprendizado profissional. Sem exagero : os anos que passei na redação do Diário de Pernambuco valerão sempre para mim como um curso intensivo.
Anos depois, li um conselho de um editor inglês : “Quando estiver ouvindo presidentes e ministros,líderes sindicais e empresários,iogues e delegados de polícia,o repórter deve sempre perguntar a si mesmo : Por que será que estes bastardos estão mentindo para mim ? “.
Sem saber, eu já tinha aprendido essa lição quando saí da redação do Diário para tentar fazer uma reportagem
no Hospital da Tamarineira.
A lição ficou . A verdade pode ter várias faces. O repórter deve desconfiar sempre. Não custa nada perguntar intimamente: afinal de contas, "por que será que estes bastardos continuam mentindo para mim ?".
PS: Ah,sim. Confesso: é claro que as reticências eram uma ironia.

Posted by geneton at 12:18 PM

setembro 16, 2014

O MENINO QUE TINHA HORROR DE MATEMÁTICA E SONHAVA EM SER JOGADOR DE FUTEBOL FUGIA DOS PROFESSORES COMO SE FOSSE UM PEQUENO RICHARD KIMBLE - O INOCENTE INJUSTAMENTE PERSEGUIDO NA SÉRIE "O FUGITIVO"

( OU: PEQUENA LISTA DE LEMBRANÇAS DESPERTADAS POR UM LIVRO QUE FAZ UM INVENTÁRIO DE ANÚNCIOS DE REVISTA DOS ANOS SESSENTA E SETENTA: "A ALMA DO NEGÓCIO" - DE ALBERTO VILLAS )
É tiro e queda. Os textos de Alberto Villas, jornalista que trocou a camisa de editor de TV pela de cronista da memória, conseguem produzir um efeito instantâneo em quem lê: abrem as comportas de uma incontrolável torrente de lembranças.
Agora mesmo, as páginas de "A Alma do Negócio" acabam de me teletransportar para o bairro de Nossa Senhora do Rosário da Torre, no Recife dos anos sessenta / setenta.

Parece que estou vendo a barraquinha que vendia drops Dulcora na calçada do Cinema da Torre. A trilha sonora dos filmes na tela ganhava, sempre, a contribuição do barulho produzido, na plateia, por mãos infantis retirando o plástico que envolvia os drops multicoloridos. Lá na tela, Elvis Presley cantava uma canção que falava em Acapulco.
Guardei na memória uma cena de outro filme - de que jamais me esqueci: um equilibrista caminhando sobre uma corda estendida sobre uma queda d´água. A plateia prendia a respiração: e se ele caísse? Não caiu. Não consegui descobrir que filme foi aquele - o do equilibrista.
Também no Cinema da Torre, certamente embalado pelos drops Dulcora, vi a plateia inteira torcendo para que Steve McQueen escapasse dos guardas nazistas em "Fugindo do Inferno". A plateia batia os pés no chão, num ritmo cadenciado que acompanhava o tema principal da trilha sonora do filme - uma espécie de marcha militar.
"A Alma do Negócio" - que acabo de ler "de um folego só" - vai atiçando as lembranças.
Eu me lembro de contemplar, maravilhado, a jarra cheia de Q-Suco de cor vermelha, num canto da geladeira, na cozinha de minha casa. Devia ser de morango. O líquido avermelhado banhava a garganta seca do menino que acabara de chegar da rua, onde disputara uma pelada épica - certamente sonhando que era um jogador do Sport Club do Recife dando dribles fantásticos diante do Estádio da Ilha do Retiro lotado.
Todo sujo de poeira, o menino levava bronca da mãe. Não deveria estar estudando? Deveria, sim. Mas o apelo de uma bola Dente de Leite rolando por uma rua sem asfalto era irresistível. Eu precisava entrar em campo.
A bronca tomou dimensões bíblicas no dia em que o menino resolveu, não se sabe por quê, usar um anel dourado que achara no fundo de alguma gaveta em casa. O anel caiu do dedo numa disputa de bola. Horas e horas de busca, para aplacar o desespero da mãe, se revelaram inúteis. Por algum mistério, a areia engoliu para sempre aquele anel - herança preciosa de algum antepassado do ramo materno da família.
Em nome da fidelidade aos fatos, devo confessar, cabisbaixo, que, na infância, fui um zagueiro terrivelmente medíocre. O sonho de atuar no Estádio da Ilha do Retiro se esfumaçou, é claro.
Por que me lembrei agora destes sonhos extraviados e de anéis perdidos na areia ? A culpa é deste "A Alma do Negócio" - atiçador de memórias.
Eu me lembro de ter recebido de presente do meu avô uma bicicleta Monark chamada Brasiliana 65. Meu avô, José Rodrigues Leite, era uma figura "mítica" na minha infância, porque morava longe. Vivia em Salvador, na Bahia. Quando foi visitar os netos, no Recife, nos inundou de presentes. O meu foi inesquecível: a Brasiliana 65.
Um dia, ao desfilar pela rua, certamente a uma velocidade que desafiava a prudência, a bicicleta foi atingida por um Aero Wills, dirigida por um vizinho. Escapei sem ferimentos. Mas, assustado, meu pai tratou de despachar a bicicleta para a fazenda, no interior. Passei a ver a Brasiliana 65 apenas nos fins de semana.
Por que me lembrei da saga do menino que perdeu a bicicleta? Culpa de "A Alma do Negócio".
Eu me lembro perfeitamente da TV Máscara Negra que minha mãe comprou. A tela era pequena. A TV podia ser transportada de um cômodo a outro, sem atropelos. Ali, eu via meus herois desfilando na programação da tarde: Batman, Nacional Kid, Roy Rogers.
De noite, eu via O Fugitivo. Era meu ídolo absoluto. Torcia para que o fugitivo - o doutor Richard Kimble, injustamente acusado de um crime - não fosse capturado pelo tenente Philip Gerard. Parece que estou vendo: o perseguidor Gerard exibia, sempre, uma feição dura, contrita, implacável. Não ria.
Passei a considerar meus algozes particulares - todos os meus professores de matemática, por exemplo - como réplicas acabadas do tenente Gerard. Tinha certeza de que eram.
Em meus pesadelos, meus professores ( os seja: meus tenentes Gerard ) viviam me perseguindo - com um livro de equações e fórmulas matemáticas indecifráveis nas mãos. Eu, no papel de um mini-Richard Kimble, fugia pelas vielas noturnas do Recife para escapar do terror de ter de estudar matemática.
Por que ressuscitar agora meus pesadelos matemáticos? Culpa de "A Alma do Negócio".
As histórias de Além da Imaginação tiravam o sono do menino. Havia sempre personagens que pertenciam a "outra dimensão". Ou seja: já tinham morrido há tempos, mas, por algum motivo, reapareciam no seriado. A lembrança da trilha sonora lúgubre só reforçava o medo do menino, mergulhado na escuridão do quarto.
Por que diabos fui me lembrar dos personagens de Além da Imaginação? Culpa de "Alma do Negócio".
Faça o teste: é inevitável que este livro desperte, em quem lê, uma viagem fascinante pelo que passou - mas ficou na lembrança.
O Villas cronista consegue fazer uma feliz combinação entre lembrança pessoal e lembrança histórica. Aqui, ele retoma esta fórmula, inesgotável - entre lembranças de anúncios, renascem as memórias de família, memórias de Minas, memórias de infância, memórias de juventude, memórias de hoje, memórias do Brasil.
Faz bem. Afinal, memória nunca foi "coisa de museu". Feitas as contas, a memória é, desde sempre, a velha e bela força que move cada um de nós.
( Texto da apresentação do livro recém-lançado pela Editora Globo )

Posted by geneton at 12:18 PM

setembro 13, 2014

A NOVA PRAGA VAI SE ESPALHANDO PELAS TEVÊS: UM "ÓTIMO DIA", UMA "ÓTIMA TARDE", UMA "ÓTIMA NOITE"....

Uma mera observação sobre o Estado Geral das Coisas: desde as mais priscas eras, a saudação corrente nestas terras é "bom dia", "boa tarde", "boa noite". Expressões simples, sóbrias, diretas, corteses, irretocáveis, universais.
De uns tempos para cá, uma praga vem se disseminando pelas tevês. Os ouvidos mais atentos já devem ter notado que os tradicionalíssimos e tão bem educados "bom dia", "boa tarde" e "boa noite" começaram a ser substituídos pelos artificialíssimos, irritantes e descabidos "um ótimo dia", "uma ótima tarde", "uma ótima noite". ( Dá para imaginar o francês substituindo o "bonjour" ou o inglês trocando o "good morning", "good afternoon" ou "good night" por alguma coisa coisa? Não, não dá. )

Diante da nova praga, há apenas três palavras a serem ditas: Deus do céu....
E, antes que seja tarde, uma ótima noite para todos.
Neste exato momento, meu demônio-da-guarda me sopra, desesperado, no ouvido: Deus do céu, Deus do céu, Deus do céu....
De resto, não, ninguém precisa de "um ótimo dia", "uma ótima tarde", "uma ótima noite": um bom dia, uma boa tarde, uma boa noite já são mais do que suficientes para todos, em todos os lugares.
( nestas horas, me lembro do meu mestre, o grande repórter e saudosíssimo Joel Silveira. Quando algum apresentador dizia, em tom supostamente simpático mas na verdade impositivo, algo como "não saia daí", Joel tinha a tentação de se levantar imediatamente da cadeira e dar uma volta na sala, só para ter o gosto de não cumprir a "ordem" emanada da TV. É o prazer de dizer, só por pirraça: "Que história é essa de "não saia daí"? Eu saio, sim! Quer ver?... ". Não, o apresentador não ia ver. Mas Joel saía ).

Posted by geneton at 01:20 PM

setembro 11, 2014

O DESTINO DE TODOS NÓS: "UM MISTERIOSO CRUZAMENTO DE FORTUNA E INFELICIDADE". ( PALAVRAS DE ERNESTO SABATO, EM DIÁLOGO COM JORGE LUIS BORGES. DISSE TUDO. NADA A COMENTAR )

ERNESTO SABATO: "O Xul Solar fez os horóscopos dos meus dois filhos e durante muitíssimos anos eu resisti em conhecê-los. Sempre tive medo do futuro, porque no futuro, entre outras coisas, está a morte"
JORGE LUIS BORGES: "Eu penso que, assim como a gente não pode se entristecer por não ter visto a Guerra de Tróia, não ver mais este mundo tampouco pode entristecer"
ERNESTO SABATO: (...) "Eu nunca quis vê-los (os horóscopos). Sabe que foram se cumprindo?"
JORGE LUIS BORGES( com assombro) : "E como são ? O que pressagiavam?"
ERNESTO SABATO (com uma voz íntima, quase para dentro) : "Um misterioso cruzamento de fortuna e infelicidade. Isso, Borges, isso".
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(trecho de "BORGES/ SABATO:DIÁLOGOS" ( Editora Globo, 2005)

Posted by geneton at 01:21 PM

setembro 10, 2014

CENAS DE BASTIDORES: PEGAR OU NÃO UM AUTÓGRAFO DO "HOMEM MAIS ODIADO DA AMÉRICA"?

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Depois de negociações via fax com a direção do presídio de segurança máxima, consigo uma entrevista com um dos assassinos mais célebres da história dos Estados Unidos – o homem que matou o pastor Martin Luther King. ( Aos que nasceram ontem: Martin Luther King é herói da luta contra a segregação racial ).
O assassino chama-se James Earl Ray. Cumpria pena de prisão perpétua numa penitenciária em Memphis, Tennessee. Chegou a ser chamado de "o homem mais odiado da América".
Uma pequena odisseia precede o encontro. Somos obrigados a fazer uma lista minuciosa de todo o equipamento que estamos conduzindo (fios, microfones, baterias).
Depois, o guarda nos ordena que deixemos numa caixa todas as cédulas, moedas e talões de cheque que tivermos nos bolsos. O dinheiro é trancafiado num cofre. Vai ser devolvido na saída. Motivo: evitar que se faça qualquer pagamento ao prisioneiro em troca da entrevista.
Por fim, passamos - eu e o cinegrafista Hélio Alvarez - por pelo menos cinco portões que isolam os detentos do resto do mundo. O próximo portão só se abre quando o anterior se fecha. Cercas eletrificadas completam o aparato.
Penso comigo: é tecnicamente impossível escapar desse inferno. James Earl Ray chega para a entrevista mascando chicletes. Os olhos azulíssimos são espertos.
O homem é articulado: fala bem, concatena com clareza suas idéias. Faço a pergunta que ele com certeza ouve há anos: você matou Martin Luther King? A resposta é sucinta: “Não”. Mas as provas são conclusivas: as impressões de James Earl Ray estavam no rifle usado para matar King em abril de 1968, na varanda de um hotel de Memphis.
Martin Luther King tinha um sonho: acabar com o preconceito racial. James Earl Ray tinha um rifle.
Termina a entrevista. Tenho em mãos um exemplar do livro que James Earl Ray publicou sobre o caso.
Vacilo intimamente: devo ou não pedir um autógrafo ao assassino? Confesso que minha porção fútil venceu. Peço que ele autografe o livro sobre o assassinato.
James Earl Ray me deseja, por escrito, “os melhores votos”.
Resisti até hoje a vender o livro num desses leilões exóticos que povoam a Internet.

Posted by geneton at 01:22 PM

setembro 09, 2014

JOEL SILVEIRA: "O TURISTA É DE UM RIDÍCULO SEM PAR. DE BERMUDAS, CHEIO DE MÁQUINAS PENDURADAS NO PESCOÇO, SUANDO EM BICAS, É ROUBADO A TODA HORA EM RESTAURANTES..."

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Joel Silveira, o maior repórter brasileiro, faria aniversário agora em setembro - mas saiu de cena há sete anos. Tive a sorte de conviver por duas décadas com este mestre do jornalismo. Os vinte anos de convivência com ele renderam o documentário "Garrafas ao Mar: a Víbora Manda Lembranças", produzido pela Globonews. Pretendo, um dia, reunir em livro as horas e horas de conversas gravadas com este jornalista que - de fato - tinha um texto literário ( ou Joel terá sido um escritor que sabia fazer jornalismo? ). As duas hipóteses estão corretas. Aqui, direto de nossos arquivos não tão implacáveis, uma de nossas entrevistas:


Eis a víbora:
esparramado numa poltrona na sala deste apartamento na rua Francisco Sá, quase no limite entre Copacabana e Ipanema, Joel Silveira acompanha com um certo ar de enfado o telejornal da TV a cabo. O peso dos oitenta e três anos é visível no olhar mortiço.
O aparente cansaço diante do desfile de horrores planetários e provincianos no telejornal não impede o velho repórter de soltar imprecações contra – por exemplo – o Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Quando o presidente FHC aparece no no vídeo, Joel não resiste :
- É o tipo do presidente que sabe falar mas não sabe dizer .Fala mas não diz. Nunca vi falar tanto, sobre qualquer assunto. Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola. Tenho a impressão de que todo dia, ao acordar, logo de manhã,Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta : “Por favor,qual é o mote de hoje ?”. O assessor diz -por exemplo- “indústria siderúrgica”. E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo. Um dia depois, muda de mote. Assim por diante, até o fim dos tempos.
Não foi por acaso que Joel recebeu de Assis Chateaubriand o título de “víbora”: um de seus esportes prediletos sempre foi destilar veneno e ironia em doses industriais.
Em artigo que entrou para a história do jornalismo brasileiro, pintou,com palavras elegantes e irônicas, um retrato devastador das grã-finas paulistas, na década de quarenta.
Num país em que tantos títulos são injustamente atribuídos, o rótulo inventado por Chateaubriand para definir Joel é um exemplo de justiça. Além do apelido de “víbora”, Joel carrega também um título que o acompanha há décadas – o de “maior repórter brasileiro”.
Se algum entrevistador fizer menção a este título honorífico, Joel balançará a cabeça como se estivesse contrariado com o possível exagero, mas, na hora de dormir, quando for trocar confidências com o travesseiro, terá de admitir que a homenagem não soa de forma alguma despropositada.
Pouquíssimos repórteres já cultivaram, como Joel, uma paixão tão inabalável pela reportagem. Nunca quis ocupar os cargos –eventualmente bem pagos – que se ofereciam, tentadores, na retaguarda das redações. Sempre fez a opção preferencial pelo “mundo exterior” . Porque desde cedo aprendeu que a boa reportagem precisa ser caçada na rua,feito touro bravio.
Faz mea culpa quando se lembra dos períodos de tempo que extraviou na retaguarda das redações,como burilador de textos escritos por outros repórteres :
- Os chefes mandavam que eu transformasse cinco laudas em dez linhas. Tinha de cumprir a ordem. Eu deveria ser preso: já fui assassino de textos alheios.
Poucos terão –como Joel - um texto que reúne com tanta maestria Jornalismo e Literatura. A nossa víbora descreveu assim a cena que viveu depois de sair do Palácio do Catete,no Rio de Janeiro,ao fim de uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas :
"Lá para a meia-noite,entrei no Danúbio Azul,um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas,desde que existem mundo e manhãs de abril".
Pergunta-se : em que jornal ou revista se leem hoje textos dessa qualidade ? A resposta é um silêncio ensurdecedor.
Joel pode exercer aqui e ali um lirismo que já rendeu páginas memoráveis, mas nunca abandonou o gosto pela maledicência. Adora falar mal de da fauna humana – aí incluídos personagens perfeitamente inofensivos,como, por exemplo, os alpinistas, os turistas e os tocadores de cavaquinho.
É pura implicância. Cheio de certeza, constata :
-“O cúmulo do ridículo, beirando o grotesco, é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”....
Adiante ,pergunta,a sério:
-Pode existir coisa mais idiota do que um alpinista ? Por que é que eles não pegam um avião, meu Deus do céu ? Por que não vão de helicóptero ? Pra que subir naquelas montanhas,se eles poderiam ver tudo da janela de um avião,no maior conforto ?
Provoco a víbora. Quero saber quem ele não levaria sob hipótese alguma para uma ilha deserta,se fosse condenado a passar o resto da vida isolado do mundo :
- Eu não levaria João Gilberto de forma nenhuma,com aquele violãozinho, uma coisa horrorosa. Aliás, o melhor talvez fosse deixá-lo numa ilha deserta,sem violão! Assim,eu poderia ir embora. Não entendo o fenômeno João Gilberto: é um dos mistérios que minha inteligência não consegue alcançar. Eu até me esforço para entender tanta idolatria, porque, como sou repórter, gosto de saber das coisas. Mas confesso que não consigo.
Joel nunca morreu de amores por um ex-colega de redação que entraria para a galeria dos brasileiros notáveis do Século Vinte :
- Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues. Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação. Gosto da peça “Vestido de noiva”, mas a verdade é não nos entrosávamos. Uma vez, eu estava escrevendo alguma coisa - escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo. De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção, fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: “Patético !”. Em seguida, foi embora, em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever. Depois,disse,simplesmente : “Dramático ! ”. Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – “patético” e “dramático”.
Depois de seis décadas de jornalismo, que outros tipos a víbora Joel incluiria na galeria nacional do ridículo,além dos tocadores de cavaquinho gordos e alpinistas ?
- Eu incluiria o turista numa Galeria Internacional do Ridículo. Porque o turista é de um ridículo sem par. De bermuda, cheio de máquinas penduradas no pescoço, suando em bicas, é roubado a toda hora nos restaurantes. Ridículo é também o velho que quer parecer moço- aquele que pinta cabelo, rebola e faz uma operação plástica por mês.
Joel vai fazendo confidências nesta tarde em Copacabana. Diz, por exemplo, que ouviu uma confissão de fraqueza de um dos maiores cronistas já surgidos no Brasil, Rubem Braga - um amigo do peito que até hoje lhe dá saudade. Os dois – Joel e Braga – foram correspondentes de guerra na Europa. Joel resolveu dar de presente a Rubem Braga um exemplar de um livro clássico de Stendhal – “O Vermelho e o Negro” . Semanas depois, Braga confessa a Joel que não conseguira de forma alguma passar da página noventa e dois do livro. O motivo :
- Rubem me disse que tinha interrompido a leitura porque o livro tinha personagem demais. E ninguém ficava parado....
Joel confessa que nunca conseguiu chegar ao final de “Os Irmãos Karamazov”, a obra-prima de Dostoievski. Agnóstico, alista-se entre os que concordam sem vacilar com o que disse o poeta Murilo Mendes :
-Deus existe,mas não funciona.
Cinco da tarde. É hora de dar um descanso ao guerreiro. Depois de tanta pergunta, peço que a víbora responda a um mini-interrogatório.São apenas cinco as dúvidas que quero tirar. É claro que ele aceita a proposta. Lá vai:
1
GMN : Quem foi a celebridade mais idiota que o senhor conheceu ?
Joel : “Deus me perdoe, mas foi o Papa Pio XII. Fui a uma audiência com ele no Vaticano.Diante do nosso grupo, ele disse :”Brasileiros ? O português é uma bela língua. “Sabia” é do verbo saber. “Sábia” é uma mulher inteligente.”Sabiá” é um pássaro”. Que idiotice!”.
2
GMN : Se fosse escrever uma autobiografia,que fato vexaminoso o senhor faria questão de esconder ?
Joel : “Uma vez,em Roma, depois da guerra,vi Ernest Hemingway tomando conhaque sozinho num bar que ele costumava freqüentar. Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo.Fui ao banheiro remoendo a dúvida. Quando voltei, ele já tinha ido embora. É um dos meus grandes fracassos profissionais. O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway. Nesse caso,pelo menos o lead estaria garantido”.
3
GMN : Se o senhor fosse nomeado ditador de Sergipe, qual a primeira providência que tomaria ?
Joel : “Proibir a entrada de João Gilberto no Estado. Já seria um bom começo.Não existe nada tão chato quanto a Bossa-Nova”.
4
GMN : Qual a cena mais grotesca que o senhor já testemunhou ?
Joel : “Não precisa ir longe.Basta desembarcar num boteco qualquer do Rio numa noite de sábado. Repito: não existe nada mais grotesco do que um sujeito barrigudo e suado tocando cavaquinho”.
5
GMN : De quem o senhor não compraria um carro usado ?
Joel : “Não quero parecer ranzinza, mas alguém pode me dizer para que servem os alpinistas ? Por que aqueles idiotas não pegam um avião para olhar as montanhas do alto, em vez de tentar a subida ridiculamente amarrados em cordas ?. Eu jamais compraria um carro de um alpinista. Não se pode confiar em seres que não têm senso de ridículo”.
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(Entrevista gravada em 2002)

Posted by geneton at 01:24 PM

setembro 08, 2014

"QUE IMPORTA RESTAREM CINZAS, SE A CHAMA FOI BELA E ALTA? " - PERGUNTAVA O POETA QUE QUERIA ELEIÇÃO DIRETA PARA ESCOLHA DE MINISTROS E ADORAVA LER ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DOS JORNAIS.

AQUI, CINCO VERSOS E VINTE E TRÊS RESPOSTAS DE MARIO QUINTANA - QUE SAIU DE CENA HÁ VINTE ANOS, EM 1994:
1. “Ai de mim/ Ai de ti, ó velho mar profundo/ Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios”.
2. “A vida é um incêndio/ nela dançamos, salamandras mágicas/ Que importa restarem cinzas/ se a chama foi bela e alta?/ Em meio aos torós que desabam/ cantemos a canção das chamas!/ Cantemos a canção da vida/ na própria luz consumida...”
3. “Um poema como um gole d’água bebido no escuro/ Como um pobre animal palpitando ferido/ Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna/ Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema/ Triste/ Solitário/Único/ Ferido de mortal beleza”
4. “Da primeira vez em que me assassinaram/ perdi um jeito de sorrir que eu tinha/ Depois, de cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha...”

5. “Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!/ Ah! Desta mão, avaramente adunca,/ Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!”
-------
GMN: Qual deve ser o primeiro compromisso da agenda da vida de um poeta?
QUINTANA: "O primeiro compromisso deve ser: não parar de poetar. Não parar de viver intensamente"
GMN: O senhor diz que gosta de fazer projetos a longo prazo, para “desafiar o diabo”. Que último desafio o senhor lançou?
QUINTANA: "O último desafio foi uma viagem – gorada – a Paris. O próximo, já em execução, é aprender a falar inglês. Eu era apenas tradutor de francês da Editora Globo. Aprendi, sozinho, a língua inglesa numa gramática, para traduzir. Mas apenas lia o que estava escrito, sem saber a pronúncia. Agora, estou lidando com um curso de inglês da Inglaterra por meio de fitas cassete. O primeiro tradutor de Virginia Woolf no Brasil fui eu. A tradução foi bem recebida pela crítica".
GMN: O escritor Erico Verissimo dizia que “Quintana é um anjo que se disfarçou de homem”. O senhor tem algum reparo a fazer à observação?
QUINTANA: "Tenho. Sempre desejei ser exatamente o contrário: uma espécie de diabo"
GMN: Qual a grande compensação que a poesia dá a quem a escreve?
QUINTANA: "Minha grande compensação é ter, às vezes, conseguido pegar a poesia nuinha em flor. Mas é difícil! (ri)"
GMN: Críticos já notaram que o senhor tem uma preferência especial pelas reticências. É verdade que prefere as reticências aos pontos finais?
QUINTANA: "Considero que as reticências são a maior conquista do pensamento ocidental, porque evitam as afirmativas inapeláveis e sugerem o que os leitores devem pensar por conta própria, após a leitura do autor"
GMN: O senhor diz que, ao escrever, “pergunta mais do que responde”. Qual a grande pergunta que o senhor não conseguiu ver respondida até hoje, aos oitenta e dois anos?
QUINTANA: "O essencial é a gente fazer perguntas. As respostas pouco importam"
GMN: Se a poesia, segundo suas palavras, “é uma loucura lúcida”, todo bom poeta deve ser necessariamente louco, ainda que lúcido?
QUINTANA: "Creio que é na Bíblia que foi escrito que todos nós temos um grão de loucura. O poeta deve ter esse grão de loucura, mas não necessariamente estar num grau de loucura"
GMN: O senhor já se confessou simpático à restauração da monarquia no Brasil. A notícia de que será promovido um plebiscito para decidir se o Brasil deve ser monárquico ou republicano anima-o? Que cargo gostaria de ocupar no Brasil governado por um Rei?
QUINTANA: "É claro que nenhum! Eu não desejaria ser o Poeta da Coroa. A melhor receita para fazer um mau poema é fazê-lo de encomenda"
GMN: Além de poeta, o senhor é tradutor de obras clássicas, como vários volumes de Marcel Proust. Que semelhança pode existir entre o trabalho de tradução e o ofício da criação poética?
QUINTANA: "Há sempre uma diferença entre tradução literal e tradução literária. Creio que a tradução de um autor é, nada mais, nada menos, a estreia desse autor na literatura da língua para a qual ele foi traduzido. Daí, a responsabilidade enorme de traduzir um Proust, um Voltaire, gente assim"
GMN: O senhor já chegou a trabalhar simultaneamente na preparação de cinco livros. Em algum momento da vida se sentiu tentado a deixar de escrever?
QUINTANA: "Sempre estou escrevendo, em prosa e em verso.Venho trabalhando em quatro livros.Cinco é demais! Nunca pensei em deixar de escrever, porque é a única coisa que sei fazer na vida".
GMN: Qual o grande medo do poeta Mario Quintana hoje?
QUINTANA: "Tenho medo de dizer"
GMN: O senhor, segundo notou o autor de um artigo publicado pela revista ISTOÉ, "nada tem: nem casa, nem mulher, nem dinheiro, nem família". Tanto desapego foi escolha pessoal ou aconteceu à revelia do que o senhor desejou ?
QUINTANA: "Catastrófico o autor, para mim desconhecido, dessa coisa publicada na ISTOÉ. O certo é que elas não tiveram tempo...E agora, no fim da picada, acho preferível a solidão sozinho à solidão a dois. Quero a solidão sozinho!"
(Enclausurado num quarto de hotel em Porto Alegre, Mario Quintana tinha uma mania: escrever a mão textos que, só depois, eram datilografados pela secretária Mara Cilaine, guardiã do poeta)
GMN: O senhor já declarou que "o proletário é um sujeito explorado financeiramente pelos patrões e literariamente pelos poetas engajados". Em algum momento, o senhor acreditou que a poesia poderia mudar o mundo ?
QUINTANA: "Para mudar o mundo, caberia ao poeta candidatar-se a vereador, a deputado ou a outro cargo assim- e não fazer poemas que as classes necessitadas não têm tempo de ler. Ou não sabem ler. É verdade que Castro Alves influiu na abolição da escravatura. Mas acontece que Castro Alves era genial. Já nós temos apenas algum talento...."
GMN: O senhor é autor de uma sugestão original: a nação lucraria se pudesse escolher livremente os ministros - e não apenas o presidente. De onde nasceu essa constatação ?
QUINTANA: "Não me lembro de ter feito tal sugestão. Mas agora gostei! O povo poderia influir mais diretamente no Executivo - que não ficaria só com o presidente e seus amiguinhos..."
GMN: O senhor escreveu que a poesia é a "invenção da verdade". Conseguiu inventar todas as verdades que queria através da poesia ?
QUINTANA: "O que meu cérebro lógico pensa não é exatamente o que pensa a parte não lógica do cérebro. Além da mera geometria euclidiana, existe a geometria não-euclidiana. Isso parece meio confuso, mas me faz lembrar uma verdade que escrevi um dia: a poesia não se entrega a quem sabe defini-la".
GMN: Aos oitenta e dois anos, o senhor é otimista ou pessimista diante do destino do homem neste fim de século?
QUINTANA: "Sou otimista. Há mais liberdade de expressão e mais comunicação. Não há, como nos meus tempos de menino, aquela proibitiva divisão entre as faixas etárias"
GMN: Num livro lançado há exatamente quarenta anos, Sapato Florido, o senhor escreveu que “os verdadeiros poetas não leem os outros poetas. Os verdadeiros poetas leem os pequenos anúncios dos jornais”. Qual foi, então, o melhor anúncio que o senhor já leu?
QUITANA: "Não sei se foi o melhor, mas o mais divertido foi este: “Alugam-se duas salas para mulheres bem-arejadas”. Ler os pequenos anúncios, em todo caso, é pôr-se em contato com as necessidades do povo"
GMN: Saber que “o voo do poema não pode parar”, como o senhor diz em “O Vento e a Canção”, é um consolo para quem escreve?
QUINTANA: "Para quem escreve, saber que o voo do poema não pode parar é sinal de que a vida continua deslizando, apesar dos solavancos"
GMN: O poema “No Meio do Caminho”, escrito por Carlos Drummond de Andrade no final dos anos vinte, foi ridicularizado e bastante criticado quando surgiu. O senhor, no entanto, incluiu o poema entre os que gostaria de ter escrito. De que maneira o senhor reagiria às críticas que foram feitas ao poema?
QUINTANA: "Quando alguém pergunta a um autor o que é que ele quis dizer, um dos dois é burro..."
GMN: Se "os caminhos estão cheios de tentações", qual a grande tentação do poeta Mario Quintana hoje ?
QUINTANA: "Os caminhos continuam cheios de tentações. Mas.....cabem,aqui, reticências...."
GMN: Os jovens poetas sempre esperam ensinamentos dos mais experientes. Se um poeta de vinte anos pedisse um conselho a Mário Quintana, que resposta o senhor daria a ele ?
QUINTANA: "Que ele não exigisse conselho de ninguém - e seguisse o próprio nariz"
GMN: Quem - ou o quê - atravanca o caminho do senhor hoje ?
QUINTANA :"Ah, a popularidade!"
GMN: E sobre a Academia Brasileira de Letras ? (N: Quintana foi derrotado nas três vezes em que tentou entrar para a Academia). O senhor não quer dizer nada ?
QUINTANA: "Não. Nem para dizer que não pretendo falar"
(Entrevista gravada em 1988 )

Posted by geneton at 01:24 PM

setembro 07, 2014

DA SÉRIE PEQUENAS DÚVIDAS ESTÚPIDAS E DESIMPORTANTES: POR QUE SERÁ QUE UMA SUPERMODELO COMO GISELE BUNDCHEN ANDA NA PASSARELA COMO SE FOSSE UM BONECO DO CARNAVAL DE OLINDA OU UMA MARIONETE DESCONTROLADA?

Dúvida de um leigo absoluto em matéria de desfiles de moda: em nome de todos os santos, alguém poderia esclarecer o que quer dizer aquele andar de Gisele Bundchen na passarela? O que é aquilo? Defeito físico? Falta de coordenação motora? Trauma de infância?
Não se discute aqui a beleza da chamada "super-modelo". Deve haver um fundo de razão no boato de que ela é a mulher mais bela do mundo. Pode ser. Deve ser. Parece simpática, além de tudo. O problema das celebridades é a obrigação de dar entrevistas.


Sou insuspeito para falar, porque desde que me entendo por gente vivo importunando a paciência alheia em busca de declarações que mereçam ir para o papel. Em verdade, vos digo: noventa por cento das celebridades - especialmente, as que não precisam cultuar os prazeres da leitura - passam a vida pronunciando obviedades. Podem-se incluir nesta lista modelos, jogadores de futebol, atrizes, atores, cantores etc.etc.
As modelos vivem a um milímetro do vexame quando abrem a boca. Faça-se uma pesquisa na imprensa nacional dos últimos dez anos. O nível das declarações de modelos como Gisele Bundchen é digno de um estudante secundarista relapso. Uma alma caridosa poderia dizer: mas quem disse que elas deveriam saber falar ? Basta que desfilem. Que assim seja.
Mas aí uma dúvida devastadora invade a alma dos leigos: em nome das vítimas do tsunami, alguém poderia explicar o que é que faz uma supermodelo multimilionária se mover numa passarela como se fosse um boneco do carnaval de Olinda? É verdade que ganha cachês de milhares de dólares para balançar o esqueleto como se fosse uma marionete descontrolada?
Jamais vi um desfile de moda. Faço, desde já, um juramento: pretendo morrer sem ver. Não me faz a menor falta. Assim como milhões de observadores, guardo para mim o que penso daquela troupe de estilistas de roupinha preta e cabelo arrepiado. Um amigo - vou logo avisando que culto, bem preparado, viajado e nem de longe preconceituoso - gosta de exclamar quando cruza com um desses seres: "Ah, meu Deus do céu, só de pensar que a mãe passou nove meses gestando esta peça...".
Em nome dos bons costumes, seres civilizados, como este rabiscador de irrelevâncias, não dizem em voz alta o que realmente acham do Estado Geral das Coisas. Uma das conquistas da civilização, aliás, é a capacidade de dissimular opiniões (*). Mas caio na tentação de citar o que disse o britânico Paul Johnson sobre os estilistas em resposta a uma pergunta que lhe fiz:
GMN: O senhor diz que a moda é uma conspiração de costureiros para ver até onde eles podem forçar as mulheres a fazer macaquices. A moda é um sintoma da decadência?
Paul Johnson: “Não há nada de novo nesse fenômeno.A “alta moda de Paris” existe desde 1850 : é um século e meio de vida. Os estilistas –principalmente porque, na maioria, são homossexuais - sempre transformam as mulheres em macacas. Acham que as mulheres aceitarão o que eles fazem".
O "politicamente incorreto" Paul Johnson - que vive dizendo com brilho o que tanta gente pensa mas não diz - pode ter matado a charada: por detestarem o sexo feminino, os estilistas querem, no fim das contas, transformar modelos em macacas nas passarelas. Ou alguém já viu alguém andar na rua com uma daquelas roupas ridículas? Aviso aos navegantes: não sou eu que estou dizendo. É Paul Johnson. Apenas estou concordando.
Ainda assim, resta a dúvida primal: em nome das chagas de Jesus Cristo, alguém pode dizer em português claro o que é que faz uma supermodelo tão bonita quanto Gisele Bundchen andar com um pé na frente do outro, como se estivesse querendo provar ao guarda de trânsito que não bebeu?
O que é aquilo? O que quer dizer? Deixo no ar minha dúvida. Não é só minha. É de milhões de terráqueos que, como eu, certamente se orgulham de jamais, em tempo algum, ter pousado as patas num desfile de moda. Never, never, never, por todos os séculos e séculos, amém. É só ver o nível mental, o elenco de interesses e a compulsão exibicionista dos que, com as exceções de praxe, fazem, frequentam e badalam este lamentável aglomerado de cabeças-de-vento.
"Fashion Week". Quá-quá-quá. Nós, aqui do extremo oposto da escala animal, agradecemos penhoradamente pelas boas risadas que estes convescotes nos proporcionam sempre que aparecem na TV. Quá-quá-quá. Nunca se fez tanto humorismo involuntário na face da Terra.
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(*) Por falar nas virtudes da discrição: não por acaso, o inglês típico - habitante de um terra reconhecidamente civilizada - é capaz de testemunhar as maiores aberrações sem externar qualquer sinal de espanto. Vi uma vez, no metrô de Londres, um homem entrar num vagão, num sábado à noite, vestido de freira. Diga-se que não era carnaval. Os passageiros, todos, fizeram de conta que não estava acontecendo nada de incomum. Ninguém levantou a vista dos tabloides. Somente este selvagem brasileiro se deu ao trabalho de dar uma olhada discreta para o homem-freira - que reagiu com um sorriso cúmplice. Eu queria ver se não estava tendo uma alucinação visual. Duas estações depois, o homem-freira sumiu na multidão. Não incomodou nem foi incomodado. A indiferença é o suprassumo da civilização.

Posted by geneton at 01:24 PM

setembro 04, 2014

UM ( LONGO! ) RELATO SOBRE O DIA EM QUE GERALDO VANDRÉ FINALMENTE RESOLVEU FALAR

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O compositor Geraldo Vandré completa setenta e nove anos neste mês de setembro de 2014 de braços dados com um grande companheiro: o silêncio. De 1973 para cá, só deu uma longa entrevista para a TV. Tive a sorte de ser o "perguntador". A entrevista foi ao ar na Globonews, em 2010. Vai aqui o relato completo sobre o dia que o Grande Mudo quebrou o mutismo. O texto, feito originalmente para o G1, é longo. Ganhou um ou outro acréscimo. Que fique guardado, também, em alguma prateleira virtual deste Grande Bazar Facebook.
( Eis uma das grandes e inestimáveis maravilhas da Internet: os textos já não precisam passar pela mão de trituradores que, com sangue escorrendo pelo canto da boca e uma tesoura enferrujada nas mãos, passam a vida inteira jogando no lixo das redações o que os pobres dos repórteres conseguiram apurar. Bye, bye, texticidas ):

O “DECÁLOGO” DE GERALDO VANDRÉ NA PRIMEIRA ENTREVISTA QUE GRAVA PARA A TV DESDE O INÍCIO DOS ANOS SETENTA:
1.”EU ESTOU EXILADO AINDA – ATÉ HOJE, NÃO VOLTEI”
2.”ARTE É CULTURA INÚTIL. CONSEGUI SER MAIS INÚTIL DO QUE QUALQUER ARTISTA.SOU ADVOGADO NUM TEMPO SEM LEI”
3.”PROTESTO É COISA DE QUEM NÃO TEM PODER”
4.”NÃO EXISTE NADA MAIS SUBVERSIVO DO QUE UM SUBDESENVOLVIDO ERUDITO”
5.”NÃO SOU MILITARISTA. TAMBÉM NÃO SOU ANTI”
6.”NÃO TENHO O QUE CORRIGIR EM NADA DO QUE FIZ. TENHO ORGULHO”
7.”RARAMENTE ME ARREPENDO DO QUE FAÇO”
8.”A LOUCURA É A AVIAÇÃO. A MAIOR LOUCURA DO HOMEM É VOAR”
9.”O QUE EXISTE É CULTURA DE MASSA. NÃO É CULTURA ARTÍSTICA BRASILEIRA. NÃO HÁ ESPAÇO PARA A CULTURA ARTÍSTICA”
10.”NUNCA FUI MILITANTE POLÍTICO. NUNCA PERTENCI A NENHUM PARTIDO. NUNCA FUI POLÍTICO PROFISSIONAL”
Um dos mais duradouros silêncios da Música Popular Brasileira foi quebrado num fim de tarde de domingo no Clube da Aeronáutica, no Rio de Janeiro.
“Demorou uma eternidade”, mas Geraldo Vandré, o grande mudo da MPB, resolveu falar diante de uma câmera de TV.
Desde que voltou para o Brasil, no segundo semestre de 1973, depois de quatro anos e meio de exílio, Geraldo Vandré mergulhou num mutismo quase absoluto.
O compositor e cantor que entrara para a história da MPB dos anos sessenta como autor de canções como “Disparada” (em parceria de Théo de Barros) e “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”/Caminhando” , parecia ter se especializado em provocar espantos em série no público.
Primeiro espanto: numa declaração feita na volta do exílio, anunciou que, a partir dali, só queria fazer “canções de amor e paz”. O Jornal do Brasil registrou outras declarações de Vandré: “Eu desejo, em primeiro lugar, integrar-me à nova realidade brasileira. Isso é um processo que demanda paciência e tranquilidade de espírito – que espero encontrar aqui, nessa nova realidade”.
Segundo espanto: ao contrário do que se esperava, não houve novas canções de “amor e paz”. Vandré sumiu. Nada de shows, nada de entrevistas, nada de excursões. Nada, nada, nada. Recolheu-se a um país que parece ter um só habitante: o próprio Geraldo Vandré.
O Vandré pós-exílio não lembrava em nada o compositor que arrebatara o público no Festival Internacional da Canção de 1967. Entoados por Vandré diante de um Maracanãzinho superlotado, os versos de “Caminhando” ( “vem/ vamos embora/que esperar não é saber/quem sabe faz a hora/não espera acontecer”) saíram daquele palco para entrar na história: viraram uma espécie de hino de protesto contra o regime militar.
Sob uma vaia de fazer tremer as estruturas do ginásio, o júri deu o prêmio à “Sabiá”, a parceria de Chico Buarque com Tom Jobim. Mas o público foi seduzido pelo tom incendiário dos versos de “Caminhando”. Pouco depois, desabava sobre o país o Ato Institucional número 5 – que dava poderes absolutos aos militares. Vandré partiu para o exílio. A música “Caminhando” foi proibida.
O terceiro espanto viria anos depois: para surpresa geral, descobriu-se que Geraldo Vandré compôs uma peça sinfônica em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira. Sim, era verdade. Vandré não apenas compôs a declaração de amor à FAB como cultivou uma relação próxima com a Aeronáutica. Vive sozinho em São Paulo. Quando vem ao Rio, para visitar a mãe nonagenária, hospeda-se no hotel do Clube da Aeronáutica, nas proximidades do aeroporto Santos Dumont.
De vez em quando, faz aparições fugidias. Virou lenda. O mutismo deu origem a lendas de todo tipo. Vandré teria sido torturado na volta ao Brasil. Teria, simplesmente, “pirado”. Teria feito um acordo secreto com os militares. E assim por diante. A lenda mais estapafúrdia dizia que ele teria sido castrado ! O silêncio, claro, só servia para alimentar o mistério. Como acontece em casos assim, a fantasia toma o lugar dos fatos.
O que há de certo é que ele foi, sim, constrangido a gravar um depoimento no Aeroporto de Brasília, em 1973. A gravação foi exibida à noite, na TV. Por onde andaria este filme ? Fiz uma primeira busca. Voltei de mãos vazias. Vandré tem lembrança de que agentes da Polícia Federal participaram da operação. Não há registros do filme nem na Polícia Federal em Brasília nem no Arquivo Nacional. Faço uma tentativa no Centro de Documentação da Rede Globo. Nada. Com quem estará o filme ? O que se sabe é que uma empresa de Brasília - uma produtora que, entre outras atividades, fazia filmes para órgãos do governo – foi contratada para gravar o depoimento de Vandré, no aeroporto. O cinegrafista escalado pela produtora para a gravação foi Evilásio Carneiro.
Igualmente, as imagens de Geraldo Vandré cantando “Caminhando” no Maracanãzinho estão desaparecidas. Restou o áudio da performance. Lá, é possível ouvir o pequeno discurso que Vandré, elegantemente, fez em defesa de Chico Buarque e de Tom Jobim, crucificados pelas vaias do público. “A vida não se resume a festivais”, diz, antes de começar a cantar “Caminhando”.
Houve, obviamente, uma ruptura profunda entre o Vandré de antes e o Vandré de depois do exílio. O próprio Vandré nos deu uma explicação : disse que perdeu a motivação e a razão para cantar porque aquele Brasil de 1973 já começava a viver um processo que ele chama de “massificação”. Num país em que a “cultura artística” foi engolida pela “cultura massificada”, não haveria lugar para o que ele fazia.
Depois de quatro meses de insistência, a produtora de TV Mariana Filgueiras terminou convencendo o Grande Mudo da MPB a falar. O mérito de ter derrubado o muro de silêncio que Vandré ergueu em volta de si deve ser creditado, portanto, à capacidade de insistência da produtora. É algo que ocorre com incrível frequência em TV: a responsável pelo furo de reportagem fica nos bastidores. C´est la vie. Mas fica feito o registro.
( O amigo Cláudio Renato Passavante, repórter afiado, ficou com os olhos brilhando quando eu disse a ele que Vandré iria falar. Fez questão de ir ao local da entrevista, para testemunhar, na condição de "olheiro" privilegiado, a aparição do homem. Depois, num blog, reproduziu, com incrível fidelidade, o que tinha ouvido. A reação entusiasmada de Cláudio Renato mostra que os anos que dedicou à chamada "cozinha da redação" não sufocaram o repórter que ele sempre foi ).
Vandré marcou o encontro para as cinco da tarde do domingo, doze de setembro de 2010 – justamente o dia em que completava setenta e cinco anos de idade. Nasceu em setembro de 1935 em João Pessoa, Paraíba.
O autor de pelo menos uma obra prima indiscutível – “Disparada” – escolheu o fim de tarde do domingo em que fazia aniversário para produzir um novo mistério – um, entre tantos outros que passou a cultivar desde que saiu de cena: o Grande Mudo decidiu, finalmente, que iria falar diante de uma câmera de TV. Por quê ? É provável que o fato de estar fazendo aniversário tenha pesado.
Para minha surpresa, o Grande Mudo estava solícito, falante, acessível. Aceitou sem reclamar os pedidos para caminhar no saguão do Clube de Aeronáutica diante da câmera do cinegrafista Ricardo Carvalho.
Quando a entrevista terminou, Vandré se recolheu a um quarto do Hotel da Aeronáutica. Cinegrafista improvisado, captei a cena com minha DVCAM: Vandré se afastando em direção à escadaria que dá acesso aos quartos. Estava sozinho. Terminava assim o domingo em que completava setenta e cinco anos.
Não imaginei que um dia iria testemunhar esta cena - o cantor que um dia incendiou o país com seus versos de alta combustão estava ali, solitário, no dia em que fazia aniversário, depois de ter quebrado, diante de mim, um silêncio que se estendeu por décadas.
Quem se lembra da última entrevista concedida por Vandré para uma TV ? Havia um tom ligeiramente melancólico na cena solitária protagonizada por Vandré no saguão do hotel, a caminho da ala dos hóspedes. Nada de grave. Os domingos à noite não são sempre assim ?
O que importa é que Geraldo Vandré deu sinal de vida. Eu estava lá para testemunhar a cena. Estava fazendo minha pequena parte no circo de horrores geral: “produzir memória”, não deixar que as palavras se desfaçam no vento. Afinal, o que diabos um repórter pode fazer de útil, além de “produzir memória” ? Pouquíssima coisa. Quase nada.
Quando Vandré sumiu na penumbra do corredor do hotel, dei por cumprida minha missão – o depoimento tinha sido devidamente colhido. É hora de passá-lo adiante.
Eis o que o Grande Mudo falou no dia em que quebrou o silêncio:
A pergunta que todos gostariam de fazer é a mais simples possível: o que foi que aconteceu com Geraldo Vandré ?
Vandré : “Ficou fora dos acontecimentos (ri). Ficou fora dos acontecimentos. Acho melhor para ele. Tenho outras coisas para fazer. Estudei leis. Quando terminei meu curso de Direito aqui no Rio e fui me dedicar a uma carreira artística, já sabia que arte é cultura inútil. Mas hoje consegui ser mais inútil do que qualquer artista. Sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil do que isso ? Quando entrei na escola, para estudar, era a Universidade do Distrito Federal. Quando saí, era Universidade do Estado da Guanabara. Hoje, é Uerj, no Maracanã”.
Você se animaria a fazer uma temporada comercial,em teatros ?
Vandré : “Tenho uma prioridade: fazer a minha obra de língua espanhola. É uma obra popular. Além de tudo, o que quero fazer, antes de cantar canções populares no Brasil, é terminar uma série de estudos para piano, música erudita com vistas a composição de um poema sinfônico. Porque aí já é a subversão total. Não existe nada mais subversivo do que um subdesenvolvido erudito”.
O fato de a música “Caminhando” ter se tornado uma espécie de hino de protesto provoca o quê em você hoje: orgulho ou irritação ?
Vandré: “Estou tão distante de tudo. Mas não tenho o que corrigir em nada do que fiz. Tenho muito orgulho de tudo o que fiz. Protesto é coisa de quem não tem poder. Não faço canção de protesto. Fazia música brasileira. Canções brasileiras. A história de “protesto” tem muito a ver com a alienação denominatória, é o “protest song” norte-americano, a música country. Há algumas coincidências. Não concordo com a denominação “música de protesto”. Fiz música popular brasileira”.
Você teve uma divergência artística com os tropicalistas – entre eles, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Hoje, você ainda considera ruim a música que eles faziam na época ?
Vandré : “Com essa pergunta, eu me lembrei de uma reposta que o próprio Gil deu uma vez. Fiz uma pergunta a ele. Não me lembro qual foi. E ele disse: “Ah, faço qualquer coisa. Uma tem que dar certo”. Eu não faço qualquer coisa”.
Mas você mudou de opinião sobre os tropicalistas ou não ?
Vandré: “Parece que eles continuam na mesma. É o que me parece. Eu estou distante de tudo – não só do Tropicalismo como de tudo praticamente que se faz do Brasil”.
Em que país vive Geraldo Vandré ?
Vandré: “Vive num Brasil que não está aqui. Geraldo Vandré vive no Brasil. Eu até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a maioria dos brasileiros. A quase totalidade dos brasileiros não vive mais no Brasil. Vive num amontoado”.
Como é este Brasil de Geraldo Vandré ?
Vandré : “É o antes – de quarenta anos atrás. O país que o Brasil era quando fiz música para o Brasil não era este país de hoje. Não existia este processo de massificação. Dentro da minha própria carreira – profissionalmente falando – houve uma mudança ali no Maracanãzinho. Ali, houve a passagem do que eu fazia para um público de um teatro de setecentas ou no máximo mil e duzentas pessoas para um ginásio com trinta mil pessoas. E a televisão direto no ar. Já foi a massificação”.
O Brasil de quarenta anos atrás era melhor do que o Brasil de hoje ?
Vandré: “Eu fazia música para aquele país”.
E por que não fazer música para o Brasil de hoje ?
Vandré: “Porque o país é outro. O que existe é cultura de massa. Não é cultura artística brasileira. Não há praticamente espaço para a cultura artística. Se você considerar os outros autores, eles fazem coisas de vez em quando. Não têm uma carreira como tinham antigamente – nem Chico Buarque nem Edu Lobo, ninguém. A carreira que eles têm é uma carreira hoje muito segmentada”.
Você se considera, então, uma espécie de exilado que vive dentro do Brasil ?
Vandré: “Estou exilado até hoje. Ainda não voltei. Eu estou exilado e afastado das atividades que eu tinha até 1968 no Brasil. Eu me afastei. Não retornei”.
Por que é que você resolveu se afastar totalmente da carreira artística naquela época ?
Vandré: “Naquela época, já era assim: já era como hoje. Quando voltei, o Brasil já estava num processo de massificação em que o público para quem eu tinha escrito e para quem eu tinha composto praticamente já não existia, aquela classe média de quatro anos e meio antes. Estava muito confuso tudo.Fui esperando, fui vendo outras coisas. Isso foi de mal a pior – cada vez mais. Para você ter uma ideia: quando terminei o curso de Direito no Rio e me mudei para São Paulo, em 1961, para fazer uma carreira artística, não existia bóia-fria em São Paulo. Hoje, São Paulo é a terra do bóia-fria: todo mundo amontodo nas cidades. Vão aos campos para plantar e para colher e depois voltam para a cidades. Quando fui para São Paulo, a cidade tinha quatro milhões de habitantes. Hoje, são dezesseis milhões de amontoados. É um genocídio. Tiraram todo mundo dos campos para produzir e exportar…”
A decisão de interromper a carreira,então, foi – de certa maneira – um protesto contra o que você via como “massificação” da sociedade brasileira ?
Vandré: “Não. O que houve foi muito mais uma falta de motivo, uma falta de razão para cantar. Protesto,não: falta de razão, falta de porquê. Estou fazendo o que acho que devia fazer”.
O que é que chama a atenção do Geraldo Vandré no Brasil de hoje ? Que manifestação artística desperta interesse ?
Vandré: “A miséria aumentou. Se você pegar a letra de “Caminhando” – ” pelos campos, as fomes em grandes plantações/pelas ruas marchando indecisos cordões/ ainda fazem da flor seu mais forte refrão/ e acreditam nas flores vencendo o canhão” -, hoje é mais ainda. Hoje, as ruas estão muito mais cheias de indecisos cordões. O processo de massificação destruiu praticamente a urbe brasileira”.
Você se animaria a fazer uma canção como “Caminhando” hoje ?
Vandré:”Não existe isso. A gente nunca faz uma canção como uma outra. Aquela é uma canção. Cada uma é uma.A gente faz independentemente de animação. Quando decide fazer, faz”.
Você diria que o Brasil é um país ingrato ?
Vandré : “Não. De forma alguma. São coisas que ocorrem. Guerra é guerra.Não perdi (ri). Eu me lembrei agora de um poema muito bonito de Gonçalves Dias que aprendi com meu pai: “Não chores, meu filho, não chores/ Viver é lutar/ A vida,meu filho, é combate/é luta renhida/ que aos fracos abate e aos bravos só pode exaltar”.
Quando você se lembra hoje do Maracanãzinho inteiro cantando “Caminhando” que sentimento você tem ?
Vandré: “Aquilo foi muito bonito, muito bonito. Pena que eu não posso ver o VT. Estão guardando o VT não sei para quê.Quero ver o VT. Lá na sua estação eles devem ter. Procure lá. Consegue o VT para ver!” ( olhando para a câmera).
Você tem saudade daquela época ?
Vandré : “Saudades….Saudades…Um pouco. Mas também há tanta coisa para fazer que não dá muito tempo de sentir saudade”.
Você vive de quê hoje ? Você recebe direitos autorais ?
Vandré: “Nunca dependi de música para viver. Sou servidor público. Hoje, estou aposentado como servidor público federal”.
Você deixou de receber direitos autorais ?
Vandré: “Pagam o que querem. Não existe controle. Não existe critério. Se nós tivéssemos direito de autor, teríamos os direitos conexos, direitos de marcas, patentes, propriedade industrial. É um assunto complexo. Mas aí não seríamos subdesenvolvidos“.
Você foi o único grande nome daquela geração que não voltou aos palcos – entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque…
Vandré: “Eu não voltei. É uma boa pergunta: por que não voltei? Não mudou tudo ? Mas será que mudou ?As razões pelas quais me afastei continuam preponderantes no que que se apresenta como realidade brasileira”.
Se você fosse escrever um verbete numa enciclopédia sobre Geraldo Vandré qual seria a primeira frase ?
Vandré: “Criminoso (ri)”.
Por quê ?
Vandré : “O que você chama de governo ainda me tem como anistiado por haver cantado as canções que cantei. Fui demitido do serviço público por causa das canções. O que se apresenta como governo no Brasil até hoje cobra impostos sobre o “corpo de delito” que foram as canções que fiz. Deu para entender agora ? “.
Você foi punido pelo governo da época, perdeu o emprego público…
Vandré: “Fui demitido. Depois, retornei. Briguei, briguei, briguei..”
Em algum momento, você foi considerado “criminoso”…
Vandré: “Fui demitido por causa da canção. E essa canção que foi mltivo de minha demissão até hoje é…Voltei por força de um despacho dado com fundamento na Lei de Anistia, como se eu fosse criminoso. Anistia é para criminoso – condenado por sentença transitada em julgado, se ele aceitar. Porque ele pode não aceitar. Aceitar a anistia significa aceitar-se criminoso, beneficiário de anistia”.
Você acha que a grande injustiça foi esta : em algum momento você ser considerado um criminoso ?
Vandré: “Injustiça não é a palavra…”
Você teria cometido um “delito de opinião” …
Vandré: “Não. Era subversão mesmo, sob certos aspectos, porque não havia nada mais para fazer naquele instante. Não me lembro. Mas as Forças Armadas, propriamente ditas, entenderam muito melhor do que a sociedade civil. Nunca tive nenhum problema com as Forças Armadas propriamente. Sempre houve uma consideração e respeito entre nós”.
Hoje, você nega que tenha sido em algum momento um antimilitarista nos anos sessenta ?
Vandré: “Nunca fui antimilitarista. Nunca assumi tal posição. Fui lá e falei o que queria dizer, numa canção que foi dita e cantada no Brasil diante de todo mundo. A canção foi cantada para os soldados, também”.
O grande equívoco sobre Geraldo Vandré foi este : achar que você era antimilitarista ?
Vandré : “Não houve, na realidade, um grande equívoco. Houve uma grande manipulação porque, quanto mais proibido, mais sucesso fazia; mais se vendia; menos conta se prestava. É uma questão muito séria”.
Qual foi a última manifestação artística que despertou o interesse e a curiosidade de Geraldo Vandré no Brasil ?
Vandré: “Passei quatro anos e meio fora do Brasil. Quando voltei, havia uma coisa muito importante que era o Movimento Armorial. Havia o Quinteto Armorial e a Orquestra Armorial. A sonoridade era muito condensada. O resultado era importante. Para mim, foi a coisa mais importante que aconteceu nos últimos tempos. Não me lembro de outra coisa que tenha ido além daquilo”.
E da produção recente, alguma coisa chamou a atenção do Geraldo Vandré ?
Vandré: “Nada. Tiririca (ri). Dizem que vai ser o deputado mais votado de São Paulo. Está bom ? “.
Você disse, numa discussão na época dos festivais: “A vida não se resume a festivais”. Hoje, tanto tempo depois dos festivais, qual é o principal interesse do Geraldo Vandré ?
Vandré : “São as outras coisas que não estão nos festivais. Minha vida funcional – de que cuidei até me aposentar; as minhas relações com a Força Aérea, o meu projeto de fazer estas gravações na América espanhola…Tenho muita coisa para fazer”.
Outro grande nome que se celebrizou como opositor do regime militar na música brasileira foi Chico Buarque de Holanda. Você acompanhou o que ele fez depois ?
Vandré: “Chico teve um caminho diferente do meu. Não chegou a parar. Produziu muito durante aquela época em que eu estava fora. Chico ficou aqui. Saiu e voltou, saiu e voltou. Passei quatro anos e meio fora. Quando voltei, fiz uma tentativa de apresentação num programa de televisão. Não vem ao caso qual, mas não gostei do que aconteceu: o jogo de pressões que se fez em volta. Recuei. Depois, passou-se um tempo. A própria Globo queria fazer um festival. Chegaram a me procurar. Não tive interesse em participar”.
O que é que a produção de Chico Buarque significa para você ?
Vandré: “Chico é uma pessoa muito talentosa, muito importante. Um grande artista”.
Você perdeu o contato com todos os seus companheiros de geração na música ?
Vandré: “Nunca fui muito enfronhado no meio artístico. Fazia minhas coisas. Voltava para minhas atividades extramusicais”.
É verdade que você ficou escondido na casa da família Guimarães Rosa antes de ir para o exílio ?
Vandré: “Eu saí de circulação. Depois que o tempo foi passando, as coisas vão ficando claras: as Forças Armadas propriamente ditas não tinham nada contra mim. Não tomaram nenhuma iniciativa contra mim. Quando fecharam o Congresso Nacional, no dia 13 de dezembro de 1968, eu estava indo para Brasília para fazer um espetáculo.Evidentemente, suspendemos o espetáculo. Vim de carro – guiando – até São Paulo. Eu estava à mão das Forças Armadas….Nunca deixei de estar. Mas claro que algo poderia acontecer: ao andar à toa pela rua, eu poderia de repente encontrar um “guardinha de trânsito” que quisesse fazer média. Há sempre alguém que quer tirar proveito de situações assim. Para evitar, saí de circulação. Durante um tempo, estive na casa de Dona Aracy (viúva de Guimarães Rosa – que tinha morrido meses antes). Fiquei lá porque, quando vinha para o Rio, como não tinha casa aqui, sempre ficava na casa de amigos e de pessoas conhecidas”.
Por que você tomou esta decisão tão drástica – de interromper uma carreira de tanto sucesso ?
Vandré: “Decidir sair do Brasil naquele ano de 1968. (N:Os mesmos agentes que prenderam Caetano Veloso e Gilberto em São Paulo,em dezembro de 1968, tentaram prender Geraldo Vandré. Mas, avisado por Dedé, à época mulher de Caetano Veloso, Geraldo Vandré conseguiu escapar a tempo) Eu tinha uma programação para fazer fora do Brasil. Tinha um contrato com a televisão Bavária,na Alemanha, para fazer um filme sobre Geraldo Vandré. Fui fazer. Passei um ano e meio pela Europa. Depois, voltei para o Chile – para onde eu tinha ido do Brasil. Havia muitos brasileiros lá ainda. De lá, fui para o Peru. Ganhamos um festival em Lima em 1972 com uma canção que era a única não cantada em espanhol. Era cantada em “brasileiro” mesmo. O Brasil não conhece a canção.Chama-se “Pátria Amada Idolatrada, Salve, Salve – Canção terceira”.
Você se lembra da letra ?
Vandré : “Eu me lembro. É uma canção que foi feita para ser cantada por um homem e uma mulher. Existe de caso pensado – coincidentemente – uma confusão de sentimentos entre a ideia da pátria e a ideia da mulher amada.O homem canta: “Se é pra dizer-te adeus/ pra não te ver jamais/Eu – que dos filhos teus fui te querer demais-/no verso que hoje chora para me fazer capaz da dor que me devora/quero dizer-te mais/ que além de adeus/ agora eu te prometo em paz levar comigo afora o amor demais”.
E a mulher, cuja imagem se confunde com a noção da pátria, responde:
“Amado meu sempre será quem me guardou no seu cantar/ quem me levou além do céu/além dos seus/e além do mais/ amado meu/ que além de mim se dá/não se perdeu nem se perderá”.
Os dois cantam juntos um para o outro. É um contraponto”.
Você foi constrangido a gravar, em 1973, um depoimento em que negava que fosse militante político. Qual foi o peso deste depoimento na decisão de Geraldo Vandré de interromper a carreira ?
Vandré: “Nunca fui constrangido a declarar que não tive militância política. Nunca tive militância político-partidária. Nunca pertenci a nenhum partido. Nunca fui político profissional. Não fui obrigado a dizer que não era militante. Nunca fui militante político. Nesta contemporaneidade em que estamos, eu me lembrei de um professor de Filosofia que dizia: “O homem é um animal político”. Sou uma qualidade de animal político que não depende de eleição. Vamos estudar a diferença entre política e eleição ?”.
Que lembrança você guarda deste depoimento ? Você foi levado para uma sala do aeroporto de Brasília e gravou um depoimento em que – de certa maneira – renegava ….
Vandré (interrompendo) : “É um assunto que ficou muito confuso. Não me lembro exatamente. Gostaria de ver a declaração…”
Você gravou o depoimento quando voltou do Chile…
Vandré: “Gostaria de ver, porque houve montagens. Era gravação. O que foi para o ar não sei”
O depoimento criou espanto na época, porque – de certa maneira – era você negando a militância política…
Vandré: “Nunca fui militante. Se engajamento político é pertencer a um partido, nunca pertenci a nenhum. Nunca fui engajado politicamente”.
Você obrigado a gravar este depoimento ? Fazia parte do acordo para voltar para o Brasil ?
Vandré: “Queriam que eu fizesse uma declaração. Não me lembro o que foi que disse. Mas eu disse coisas que poderia dizer. O que eu disse era verdade. Não disse nada que não tenha querido dizer. A TV Globo deve ter isso. Procure lá…”
A gente procurou e não encontrou….
Vandré: “Pois é: somem com tudo. Que loucura essa…Por quê ? Veja se acha o vt do Maracanãzinho. É o que tem Tom Jobim. É o mesmo vt. A minha parte sumiu. Por quê ? Fizeram uma retrospectiva do Festival. Botaram o Festival no Maracanãzinho- Tom,Chico, todo mundo, Cynara e Cybele. Mas,na hora de botar o Geraldo Vandré, usaram um filme feito na Alemanha, em que eu estava de barba. Não é certo”…
Talvez tenham recolhido o filme…
Vandré: “Para mim, é muito difícil acreditar que a TV Globo tenha se desfeito do filme. Não acredito. Devem estar guardando muito bem guardado”
Só para esclarecer este episódio sobre o depoimento que você gravou quando voltou do exílio : que lembrança exatamente você tem ? Quem pediu a você para gravar este depoimento ?
Vandré: “Aquelas declarações foram feitas para uma pessoa que se me apresentava como da Polícia Federal. Fiz um depoimento aqui. Depois, disseram que eu tinha de ir para Brasília. Cheguei ao Brasil no dia 14 de julho. Dois meses depois, apareço como se estivesse chegando em Brasília. Aquilo foi uma manipulação. O depoimento foi gravado antes. Gravaram-me descendo do avião em Brasília. Tudo muito manipulado. É esta a história dos vts: normalmente, temos esta doença. Estou falando aqui. O que vai ser mostrado vai ser uma seleção que a estação vai fazer. Não vai ser o que estou dizendo. Isso é muito sério”.
Para encerrar o assunto: o depoimento teve um peso na decisão de interromper a carreira ? Você ficou incomodado com aquilo ?
Vandré: “Não. Eu estava chegando e vendo como estavam a coisas.Não tinha menor noção da realidade. Tive de passar por um processo de adaptação no retorno ao Brasil”.
O grande mistério que existe sobre Geraldo Vandré durante todas essas décadas é, afinal de contas, o que aconteceu com ele depois da volta do exílio: você foi maltratado fisicamente ?
Vandré: “Não.Não”
Se você tivesse a chance hoje de se dirigir a uma plateia de jovens num festival,o que é que você diria a eles ?
Vandré: “Vamos ter de dar um tempo aí, não é ?…” (rindo)
Um “tempo” de quantos anos ?
Vandré: “Não sei. Agora, vocês vão votar para presidente, deputado, senador. Estão ocupados com outras coisas. Estou por fora”.
Que papel você acha que vai caber a Geraldo Vandré na história da música popular brasileira moderna ?
Vandré: “Nunca fiz este tipo de avaliação”.
Que papel você espera ter ? Você se acha suficientemente reconhecido ?
Vandré: “Obtive o reconhecimento que procurei e quis”.
Você em algum momento se arrepende de ter interrompido a carreira ?
Vandré: “Não. Porque raramente me arrependo das coisas que faço. Calculo bem, reflito bem, meço bem : quando faço é para ficar feito mesmo. Não existe arrependimento não”.
Para efeito de registro histórico: você, primeiro, não se considera antimilitarista…
Vandré: “Não…”
Segundo: você não foi maltratado fisicamente durante o regime militar…
Vandré: “Não…”
Terceiro: você disse o que quis no depoimento que você foi forçado a gravar quando voltou do exílio…
Vandré: “E em quarto: há o Quarto Comando Aéreo Regional…Tenho uma canção para o “exército azul”, a Força Aérea…(ri e exibe o brasão da Aeronáutica, impresso numa espécie de cartão de visita que traz, no verso, a letra de “Fabiana“). A aviação é muito bonita. A loucura é a aviação. Porque a maior loucura do homem é voar. Conhece loucura maior do que esta ? Não existe”.
Como é que surgiu a fascinação de Geraldo Vandré pela aviação ?
Vandré: “Desde pequeno, desde criança”.
Você gostaria de ter sido aviador ?
Vandré: “É. Não fui aviador militar. Não sou piloto, mas – de certa forma – sou aviador, porque me ocupo de assuntos da aviação. Uma coisa é aviador, outra é piloto. Você pode ser piloto, co-piloto, rádio navegador, mecânico de bordo, médico aviador. Há vários caminhos – não necessariamente tem de ser piloto…”.
O fato de você ter composto uma música em homenagem à Força Aérea criou um certo espanto. Hoje, você se hospeda em hotéis da Aeronáutica, como este. Nós estamos num ambiente militar…
Vandré :”Relativamente, porque este é um instituto de direito privado…”
Houve alguma mudança na postura do Geraldo Vandré ou não em relação às Forças Armadas ?
Vandré : “O que houve foi o reconhecimento de uma parte da sociedade que nunca tinha tido oportunidade de saber realmente quais eram as minhas posições”.
Em que situação Geraldo Vandré voltaria a um palco hoje ?
Vandré:”Depende de onde. Tenho uma programação na qual investo meu tempo e minhas energias : gravar um disco no exterior, num país de língua espanhola. É minha prioridade. Depois, vou ver minha programação para o Brasil. Escrevi umas trinta canções originalmente em “americano de habla hispânica”. Quero gravar num país de música espanhola, com músicos de lá. Minha prioridade comercial é esta. Para o Brasil, por ora, o projeto é a canção da Força Aérea mesmo – e um projeto sinfônico. A canção se chama Fabiana porque nasceu na FAB – em sua honra e em seu louvor”.
Você, hoje, então prefere compor peças sinfônicas ?
Vandré: “Tenho estudado música. Compus uma série de estudos para piano – aproveitando da técnica de uma jovem pianista de São Paulo. Mas a música ganhou outras dimensões. Passou a ser física e matemática. Ritmos do coração. Fica mais complicado,mas, para mim, é música”.
Você tem planos de gravar a música que você fez em homenagem à FAB ?
Vandré: “Claro. Já fizemos uma apresentação numa festa da Força Aérea em torno das comemorações da Semana da Asa, em São Paulo, com um coral de trezentos infantes. Uma coisa muito bonita. Com o tempo, vamos ver quais são alternativas que se colocam”.
Você declarou algumas vezes : “Geraldo Vandré não existe mais….”
Vandré ( interrompendo) : “Não, não declarei. Eu disse que ele não canta no Brasil comercialmente. Apresentei uma canção para a Força Aérea do Brasil. Não canto comercialmente no Brasil porque os problemas todos que tive de enfrentar resultaram de especulações comerciais: vendas clandestinas, câmbio negro, tudo isso. Quanto mais se proibia,mais se vendia. A sociedade, às vezes, tem essa doença”.
Você canta “Disparada” hoje, em casa ?
Vandré : “Não. Faz tempo que não pego num violão. Tenho de voltar a estudar”.
Que instrumento, então, você toca ? Piano ?
Vandré :”Não. Não sou pianista. Toco de improviso alguma coisa”.
Pelo menos duas músicas que você compôs são conhecidíssimas até hoje: “Disparada” e “Caminhando”.
Vandré ( interrompendo) : “Pelo menos duas…”
Se você fosse escolher uma, que música você escolheria como típica da produção de Geraldo Vandré ?
Vandré: “Disparada” é mais brasileira, tem uma forma mais consequente com a tradição das formas da música popular : a moda de viola. “Caminhando” já é mais urbana. É uma crônica da realidade. É a primeira vez que fiz uma crônica. Deu no que deu. A realidade não estava muito querendo ser…”
Retratada…A obra-prima de Geraldo Vandré qual é ?
Vandré: “Todas são iguais. Para mim, são todas iguais. Isso de obra-prima é uma questão de seleção e de predileção do público, os meios de comunicação e os chamados formadores de opinião”.
Mas você deve ter uma predileção pessoal…
Vandré: “Não tenho. É tudo igual mesmo”.
As peças sinfônicas você compõe como ?
Vandré : “As melodias, algumas harmonias…Para escrever em notas convencionais, preciso da escrita de pessoas que estão muito mais afeitas a esta tarefa do que eu.Eu levaria anos para escrever uma partitura. Jamais escreveria como alguém que faz parte de uma orquestra, lê e escreve na hora, à primeira vista. Hoje,estou dedicado a preparar um poema sinfônico cuja abertura coralística será a Fabiana, a canção que fiz para a Força Aérea”.
Você hoje se animaria a fazer um espetáculo para o público brasileiro ?
Vandré :”Não.Para o público brasileiro, só uma coisa muito especial”…
Em que situação você voltaria a se apresentar no Brasil ?
Vandré: “Chegamos a cogitar de fazer uma apresentação da Fabiana no Clube de Aeronáutica. É um dos projetos de que chegamos a nos ocupar. Mas até agora as coisas ficaram postergadas, porque o clube vai entrar em reforma. Vêm aí as Olimpíadas Militares. O clube vai ter de se adequar”.
Qual é a grande inspiração que você tem para compor essas peças sinfônicas ? O que é que motiva você a compor ?
Vandré: “Nunca dependi muito da palavra inspiração. Escolhia os temas. O fundamental para mim é a memória que tenho do que ouvia no cancioneiro popular, as músicas de desde a minha infância”.
O público brasileiro ainda vai ter chance de ver Geraldo Vandré cantando “Caminhando” e “Disparada” no palco ?
Vandré: “Isso é profecia. Não sou profeta”.
O que é que levou você a fazer uma música em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira, você, que era tido nos anos sessenta como antimilitarista ?
Vandré: “Era tido. Por quem ? Isso deveria ser perguntado para os que a mim me tinham como antimilitarista.Não sou militarista. Mas também não sou anti. Todos os países soberanos do mundo têm suas forças armadas. O que é que devemos fazer com as nossas ? Entregá-las para outras pessoas ? Vamos fazer isso ? Acho que não!
Chamo de “Fabiana” porque nasceu na FAB. Costumamos dizer assim: uma servidora da FAB é “fabiana”. A letra diz : “Desde os tempos distantes de criança numa força,sem par, do pensamento teu sentido infinito e resultado do que sempre será meu sentimento/todo teu/todo amor e encantamento/vertente.resplendor e firmamento/ Como a flor do melhor entendimento/a certeza que nunca me faltou/na firmeza do teu querer bastante/seja perto ou distante é meu sustento/ De lamentos não vive o que é querente do teu ser no passado e no presente/Do futuro direi que sabem gentes de todos os rincões e continentes/que só tu saber do meu querer silente/porque só tu soubeste, enquanto infante, das luzes do luzir mais reluzente pertencer ao meu ser mais permanente”.
O refrão é, coincidentemente, um contraponto de “vem/vamos embora/ que esperar não é saber” : “Vive em tuas asas todo o meu viver/ meu sonhar marinho / todo amanhecer”.
Termina a entrevista. Já são quase sete da noite. O Grande Solitário da MPB caminha em direção à escadaria que dá acesso à ala de hóspedes do hotel que funciona no Clube da Aeronáutica. Parte sozinho. Vai em companhia do único habitante do Brasil que Geraldo Vandré criou para si: o próprio Geraldo Vandré.

Posted by geneton at 01:25 PM

setembro 03, 2014

O DESABAFO DO MESTRE EDUARDO COUTINHO: CEM MIL REAIS PARA FAZER UM CURTA É CASO DE POLÍCIA...

A quem se interessa por cinema-documentário: dirigido por Rená Tardin, "Coutinho Repórter" traz um interessantíssimo depoimento do mestre Eduardo Coutinho.
Ao final, Coutinho se refere, com alguma irritação, aos que, hoje, querem cem mil reais para filmar "um curta". "Não merecem fazer cinema: têm de ir para a cadeia..." - diz, irritado.
"Cem mil reais para fazer um filme" - diz Coutinho - é coisa do tempo do Laboratório Líder, uma época em que tudo era feito com película. Tudo era mais caro e menos acessível. Hoje, celulares filmam imagens em alta definição. Não é exagero dizer que há curtas em que o custo se aproxima do zero.
Descontado um ou outro exagero provocado pela irritação, o desabafo de Coutinho chama a atenção para um fato intrigante:

de vez em quando, jornais noticiam que projetos de documentários foram autorizados a captar milhões e milhões pela Lei Rouanet. A conclusão inevitável: tais estimativas parecem ser absolutamente irreais ou, no mínimo, delirantemente estratosféricas.
O "mundo real" - território, aliás, em que se movem os documentários - não é tão inflacionado, num planeta dominado por câmeras HD e por facilidades técnicas antes inacessíveis.
Eduardo Coutinho fala:
http://goo.gl/HPFKLX

Posted by geneton at 01:29 PM

setembro 02, 2014

JOÃO CABRAL DE MELO NETO E O REPÓRTER : UM FESTIVAL DE VEXAMES, DESENCONTROS E CONFUSÕES

Já se disse que o melhor jornal é aquele que jamais chega ao conhecimento do leitor. O que acontece nos bastidores de uma reportagem pode ser tão interessante quanto o que sai nas páginas dos jornais. Se os jornais publicassem tudo o que se fala numa redação(ou, pelo menos, tudo o que os repórteres vêem mas não escrevem), nossa imprensa certamente não mereceria o julgamento que um dia Paulo Francis fez :
- “Nossa imprensa : acadêmica, empolada, previsível, chata. Meu Deus, como é chata”.
Ponto. Parágrafo.

Minha pequena coleção de entrevistas com o super-poeta João Cabral de Melo Neto foi marcada por desencontros, vexames, incidentes e mal-entendidos - sem maior gravidade, mas suficientes para fazer ruborizar qualquer tímido que se preze.
Lá vai o repórter, à caça de autor de versos imortais, como os de "Morte e Vida Severina" - um retrato definitivo da saga dos severinos castigados pela miséria. Um trecho:
"— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca".
( aqui, os versos, musicados por Chico Buarque:
http://goo.gl/3mfW71 )
Vexame 1. Cenário : saguão do Aeroporto Internacional dos Guararapes. Ano: 1973. Dou meus primeiros passos como repórter, no Diário de Pernambuco. O chefe de reportagem me despacha para o Aeroporto. Missão : cobrir a chegada do mais ilustre dos poetas pernambucanos. O diplomata João Cabral vivia no exterior, na época. Lá fomos nós, em busca da celebridade . O único problema é que o fotógrafo não sabia que João Cabral era pernambucano. Assim que o poeta desembarca, o fotógrafo o convoca a posar em frente a um painel turístico que mostrava uma imensa foto do Recife. A pose em frente ao painel provaria que o poeta esteve na cidade...Pouco à vontade, o poeta concorda em posar. Lá pelas tantas, o fotógrafo quer saber se o poeta por acaso já conhecia a capital. João Cabral responde com algum som inaudível.
Vexame 2. João Cabral aceita receber o repórter na casa do irmão, à beira-mar, em Olinda. Horário da entrevista: onze da manhã. O repórter chega vinte minutos atrasado. Formalíssimo, João Cabral nem parece estar de férias. Aparece no portão metido numa impecável camisa de manga comprida abotoada até a gola. Primeira frase que pronuncia : “Você chegou com uma pontualidade nada britânica...”. O repórter quase estreante procura, em vão, um buraco no chão para se esconder. Não encontra. Entre mortos e feridos, todos se salvam : a entrevista segue adiante.
Vexame 3. De volta ao Brasil depois de se aposentar da carreira diplomática , João Cabral escolhe o Rio de Janeiro como endereço . O repórter que, anos antes, cometera o pecado de chegar com uma “pontualidade nada britânica” telefona em busca de uma nova entrevista. Quem sabe, agora consiga fazer uma entrevista sem incidentes. João Cabral se desculpa : “Vamos marcar outra hora... Minha mulher morreu ontem”. Já não tão estreante, o repórter procura de novo um buraco no chão para se esconder – em vão. Um silêncio que parece durar uma eternidade se instala nos dois lados da linha telefônica. O que dizer numa situação dessas ? Nada. Meus pêsames. Desculpe. Eu sinto muito. Socorro !
Vexame 4. O homem marca a entrevista: vai receber o repórter em casa - um apartamento na Praia do Flamengo. Por coincidência , o jornal O Globo marca, para a mesmíssima hora, uma sessão de fotos de João Cabral com Ferreira Gullar . Os dois poetas aguardam a chegada do fotógrafo do jornal. Aperto a campainha . “Pode entrar” . Cabral e Gullar vão para a janela do apartamento . A vista, ao fundo, é bela. Fazem pose. Ficam olhando para as minhas mãos, à espera de que eu saque a máquina fotográfica . Pensam que eu sou o fotógrafo que estavam esperando. Mas não tenho máquina nenhuma . Carrego apenas meu gravador . “Não quer fazer a foto agora ? “.Dois dos maiores poetas brasileiros estavam ali,diante de mim,à espera da impossível foto. Não, não quero, não sei , não posso fazer. Deve ter havido algum engano. Nunca fui fotógrafo em minha vida. Um buraco no chão, pelo amor de Deus !
Desfeito o equívoco, os dois desistem de esperar pelo clique de minha máquina inexistente. Cinco minutos depois, o fotógrafo (o verdadeiro) desembarca no apartamento. Os dois voltam a posar na janela. Livre da tarefa, João Cabral finalmente dá a entrevista pedida pelo locutor-que-vos-fala.
Lá pelas tantas, diz :
“A coisa simples que quero fazer com minha poesia não é uma coisa boba. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. É difícil traduzir as coisas de que falo de uma maneira acessível a todo mundo. Minha luta é esta : tentar exprimir uma coisa mais complexa na linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso”.
O poeta – um dos maiores que o Brasil já teve – confessava que o gosto do fracasso não lhe era estranho. Devo ter pensado, com meus botões : fracasso ? Se depender do meu histórico de fracassos nos bastidores das entrevistas com João Cabral, sou mestre nesse assunto.

Posted by geneton at 01:31 PM