O último tripulante do Enola Gay, o avião que jogou a bomba atômica em Hiroshima, na segunda Guerra Mundial, morreu aos noventa e três anos, neste final de julho, nos Estados Unidos. Vai ser enterrado no dia cinco de agosto.
Vasculho os arquivos das andanças deste repórter. Eis o relato de um encontro com o homem que participou diretamente de um ato devastador - que dividirá para sempre as opiniões:
Eis um dos cavaleiros do apocalipse: um homem colhe peras no pequeno pomar que cultiva no jardim de casa, num subúrbio de São Francisco, Califórnia. Oferece-me a fruta. “É boa e doce”. Faz sol. O azul escancarado do céu só é maculado pelo rastro deixado por um avião a jato.
Enquanto saboreia a pera que acabou de colher, ele se dirige, a passos lentos, para uma cadeira na beira da piscina. Os raios de sol acentuam a brancura dos cabelos ralos. O pomar em casa e o conforto sugerido pela piscina podem dar a impressão de que o homem que colhe peras é um milionário. Não é. O homem que colhe peras é apenas um militar aposentado.
A biografia deste octogenário não seria diferente da de tantos outros veteranos de guerra se ele não tivesse levantado voo, na madrugada de seis de agosto de 1945, a bordo do Enola Gay – o avião que conduzia a primeira bomba atômica usada numa guerra. Ao embarcar no Enola Gay, Van Kirk entrou para a História – para o bem e para o mal.
Os que criticam o uso da arma atômica chamam os militares que participaram do ataque de mensageiros da morte. Os que encontram uma justificativa histórica chamam-nos de guerreiros da paz. A polêmica durará séculos.
A missão que Theodore Van Kirk cumpriu em 1945 mudou a história da humanidade. Todos os superlativos já foram usados para descrever a enormidade do ataque nuclear a Hiroshima. “Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra” - diz Bob Greene, autor do livro-reportagem “Duty: a Father, His Son and The Man Who Won The War” - um jornalista que, desde criança, era fascinado pela Missão Hiroshima.
Que fantasmas povoam hoje os dias calmos do homem que colhe peras no pomar?
Se ele não tivesse embarcado para a Missão Hiroshima , certamente não teria o descanso dos seus dias de aposentadoria quebrado pela impertinência de repórteres que o procuram para tirar velhas dúvidas.
É o que faço agora. Van Kirk nos recebe - a mim e ao cinegrafista Sherman Costa - com um sorriso largo, uma pergunta bem-humorada (“Vocês conseguiram chegar? Pensei que tinham ficado presos no engarrafamento!”) e a disposição de abrir o armário onde se escondem os fantasmas de Hiroshima.
Pergunto se ele levou algum objeto pessoal quando embarcou no voo histórico. Van Kirk me surpreende com a resposta: o único “objeto pessoal” que ele levou a bordo do avião que carregava a bomba atômica foi uma Bíblia. Se precisasse de conforto espiritual durante a Missão, poderia recorrer àquela pequena relíquia familiar:
- A única peça pessoal que carreguei comigo foi uma Bíblia – que eu tinha recebido de minha mãe e de meu pai. Era pequena. Cabia no bolso. Durante o voo, eu me lembro de ter tocado a Bíblia com a mão. Mas não cheguei a ler nenhuma passagem. O exemplar da Bíblia não tinha meu nome, nada que pudesse identificar quem eu era. Se o avião por acaso fosse derrubado em território inimigo, os japoneses não poderiam me identificar pela Bíblia. Terminei perdendo-a, tempos depois.
Além do pequeno exemplar da Bíblia, Van Kirk carregava consigo uma pistola automática – que poderia ser usada numa situação extrema:
- Não havia rifles a bordo. Mas cada um de nós tinha uma pistola automática, calibre 45. Carreguei uma comigo, na missão rumo a Hiroshima. Se fôssemos derrubados sobre território japonês, poderíamos usar as pistolas para nos proteger ou – Deus nos livre – para destruir a nós mesmos, se necessário (Van Kirk evita a palavra “suicídio”). Mas, se algo desse errado na missão, a cena seria tão catastrófica que teríamos pouca chance de usar as pistolas.
Van Kirk orgulha-se de ter contribuído para o fim da guerra. É um fato histórico indiscutível. O uso das armas atômicas – primeiro, em Hiroshima e depois em Nagasaki - obrigou o Japão à rendição incondicional. Se o Japão continuasse em guerra, seria invadido por terra. O número de mortos poderia ter sido maior do que o causado pelas bombas – dizem os estrategistas. Mas o preço do uso das armas atômicas foi altíssimo. O horror causado pelo cogumelo atômico jamais se dissipou. Calcula-se que cem mil pessoas tiveram morte instantânea, nos dez segundos seguintes à explosão. As cicatrizes deixadas pelas explosões atômicas vão atravessar os tempos.
Que tipo de pensamento terá passado pela cabeça de Van Kirk quando ele viu Hiroshima pela primeira vez, ainda a bordo do Enola Gay?
Van Kirk faz uma pausa, reconstitui o cenário do apocalipse:
- Era um dia perfeitamente claro. A gente podia ver a cidade a milhas de distância. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a de que nossa missão tinha sido bem sucedida: nós tínhamos encontrado a cidade, cumprimos os horários previstos, tudo estava perfeito. O primeiro pensamento que tive depois da explosão da bomba foi de alívio. Porque aquilo era algo que tinha exigido um treinamento que durara meses. O segundo pensamento que tive foi: a guerra acabou!
A História dos tempos de guerra não é feita apenas de ordens militares grandiosas e decisões sem rosto. Há sempre alguém que cumpre as ordens. As decisões tomadas no Salão Oval da casa Branca pelo Presidente dos Estados Unidos podem exigir - por exemplo – que um grupo de militares entre num avião de madrugada, invada o espaço aéreo japonês, mire numa cidade lá embaixo e abra as comportas para que seja lançada, naquele alvo povoado por homens, mulheres e crianças, a arma mais mortífera já concebida pelo homem - uma bomba atômica.
O avião Enola Gay levanta voo da ilha de Tinian, no Oceano Pacífico, às 2 e 45 da manhã de seis de agosto de 1945 rumo a Hiroshima, com doze homens – e uma bomba atômica a bordo. A bomba explode às 9h16. Cem mil pessoas morrem instantaneamente na explosão. O número de vítimas chegaria a 145 mil no final de 1945.
“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastaram até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas seiscentos leitos e todos já estavam ocupados”, diria o jornalista americano John Hersey em "Hiroshima", texto clássico sobre a hecatombe.
“Nuvens de fumaça, próximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um céu silencioso ter causado tanta destruição (...) Zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos.”
A Missão Hiroshima foi o momento mais grave vivido por Van Kirk. Mas, para decepção dos fanáticos por guerra, ele constata:
- A guerra é mais interessante na TV do que na vida real. Guerra pode significar cinco minutos de extrema atividade – e um ano de monotonia....
Não havia lugar para monotonia a bordo de um avião que voava rumo ao Japão para cumprir uma missão que – não é exagero dizer - entraria para a História da humanidade:
- Havia a possibilidade de a bomba explodir no avião, o que seria desastroso. Poderíamos ter problemas no motor. Nós estávamos preparados para o pior – que, felizmente, não aconteceu. Não estávamos preocupados com os japoneses durante o voo em direção a Hiroshima, porque sabíamos que eles não tinham como nos alcançar naquela altitude – confessa Van Kirk. – Mas sabíamos que nosso avião seria atingido por ondas provocadas pelo deslocamento de ar, depois da explosão. Disseram-nos que, depois da explosão, iríamos sofrer o impacto. Houve até especulações sobre o risco de a explosão atingir o nosso avião. De volta à base, cheguei a ouvir de um dos cientistas o seguinte: “Quando vocês partiram para a missão, pensei que aquela seria a última vez que eu os veria....”. A turbulência durou pouco. O voo de volta pôde continuar.
O calor que se espalhou por Hiroshima e Nagasaki era o de “mil sóis”. Seres humanos “se desintegraram sem deixar qualquer vestígio”. O inferno se instalou na terra. O grande paradoxo é que tanta destruição foi cometida, em última instância, em nome da paz – para acabar com a guerra. O Japão se rendeu. A Segunda Guerra Mundial acabou ali. Mas Hiroshima e Nagasaki entraram para sempre na História como provas de que o homem é tecnicamente capaz de destruir a vida sobre a terra. Basta tomar a decisão.
“Os cientistas tinham dito que a temperatura no centro da explosão seria mais forte que a do sol – diz Van Kirk. Quando a bomba explodiu lá embaixo, nós já estávamos nos afastando de Hiroshima. Não havia janelas na parte traseira do avião. Usávamos equipamentos para proteger nosso olhos. Ainda assim, pudemos ver um clarão parecido com o de um flash fotográfico numa sala escura. Hiroshima estava inteiramente encoberta por uma fumaça negra e por poeira. Não se via a cidade. A nuvem que se formou tinha várias cores: eram tons de cor púrpura, rosa, branca – todos os tipos de cores".
A visão era bonita? – pergunto ao navegador.
“Não se pode chamar algo assim de belo. Era algo mais horrível do que bonito”.
Adiante, ele aprofunda a descrição:
- Minha primeira reação, ao ver as primeiras imagens de Hiroshima, foi de surpresa: como aquilo tudo pôde ser feito com apenas uma bomba? Aquilo reforçou a nossa certeza de que não havia meio de os japoneses resistirem a uma arma daquele tipo. O Japão iria se render logo depois.
O que é que a palavra Hiroshima significa para este homem?
“Para mim, Hiroshima significa, hoje, a ressurreição de uma cidade que foi destruída”, diz Van Kirk. “Hiroshima é também a prova de que o homem pode corrigir seus erros. Não é que a bomba atômica tenha sido um equívoco. O bombardeio foi perfeitamente legítimo como ato de guerra. A população de Hiroshima é hoje devotada à paz. É uma mensagem que vai para todo o mundo”.
Que resposta o navegador do Enola Gay dá, hoje, aos críticos da Missão Hiroshima, gente que condena o uso de armas atômicas?
- Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento específico e qual a alternativa que existia ao uso da bomba. O que aconteceu é que a bomba salvou vidas. Se não tivéssemos jogado a bomba, a guerra não teria terminado em agosto. Teria se estendido por um, dois meses. Durante este período, o Japão estaria exposto a um horrível bombardeio – com grande perda de vidas. Embora tenha havido uma horrível perda de vidas em Hiroshima – e também em Nagasaki – a alternativa seria pior : basta levar em conta o número de vidas que teriam sido perdidas se a guerra continuasse.
Ao contrário do esperado, o Japão não se rendeu depois da explosão da bomba em Hiroshima. Os Estados Unidos decidem, então, lançar uma segunda bomba atômica. O alvo era a cidade de Kokura. Mas, como a cidade estava encoberta por nuvens, a bomba foi jogada em Nagasaki. O Japão finalmente se rende. O documento da rendição incondicional é assinado no dia 2 de setembro
Pergunto se Van Kirk já teve pesadelo com Hiroshima:
- Nunca. Há quem me critique pelo fato de eu nunca ter tido pesadelo com a bomba atômica. Mas devo dizer que não tive. Porque acho que o que fizemos em Hiroshima foi apropriado.
Faria tudo de novo?
- Eu faria – diz Van Kirk , sem titubear. – Faria tudo de novo, se as circunstâncias que a gente tinha ali se repetissem: um conflito que se estendia por anos, com muita matança, com feridos, com o país inteiro em estado de guerra, não apenas as Forças Armadas. Mas creio que as circunstâncias não se repetiriam. Não acredito que nenhuma outra guerra dure mais que uma semana ou duas.
Se tivesse tido a chance de falar aos habitantes de Hiroshima momentos antes do lançamento da bomba, o que Van Kirka diria a eles?
- Eu diria: lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade. É um ato necessário. Vocês não aceitaram os termos da rendição incondicional – que nós oferecemos. O resultado é este.
Aos que dizem que o ataque a Hiroshima é discutível porque atingiu indiscriminadamente alvos civis, Van Kirk responde que não: Hiroshima era a sede das instalações militares japonesas encarregadas de defender o país em caso de invasão. Havia na cidade pelo menos cem “alvos militares”. Mas a população civil pagou o preço.
Van Kirk acha absurda qualquer comparação entre o ataque atômico ao Japão – um ato de tempos de guerra – e, por exemplo, o ataque dos "soldados" de Bin Laden ao World Trade Center. O sentimento antiamericano, aguçado na era Bush, deu margem a comparações desse tipo.
- Quando vi o ataque ao World Trade Center me perguntei: que tipo de gente pode fazer algo assim? É algo que não consigo imaginar: que eles tenham achado que algo de bom poderia sair dali. Quando houve Hiroshima, nós estávamos em guerra. Havia legitimidade. Não apenas nós estávamos envolvidos na guerra, mas todo mundo – os britânicos, os russos, todos. Mas o ataque ao World Trade Center foi feito em tempos de paz. Como puderam fazer? Não consigo entender. Eu não o faria. Nunca. Nunca.
Vida de personagem da história é assim: o navegador do avião que jogou a bomba atômica oferece ao repórter um autógrafo sobre uma foto do Enola Gay. A relíquia vai para meus arquivos implacáveis. Pai de dois filhos e duas filhas, avô de sete netos, Van Kirk vive com a mulher - parcialmente inválida.
Em seus momentos de solidão, Van Kirk se lembra das vítimas da bomba?
- Eu hoje me lembro das vítimas com menos frequência do que antes. Mas a cada vez que vejo uma foto, um filme ou uma menção de alguém, me lembro das vítimas da bomba atômica. É algo que acontece menos e menos, à medida em que envelheço e o tempo vai passando. Hoje, devo me lembrar das vítimas uma vez por mês. Pode acontecer de eu me lembrar das vítimas duas vezes em um mês e, em seguida, passar três meses sem me lembrar. Mas a média é de uma vez por mês.
Van Kirk fica em silêncio. Nessas horas, ele parece rever intimamente os fantasmas de Hiroshima: o pesadelo da guerra, o imenso cogumelo atômico, a decisão dramática, a destruição indizível.
É sempre assim: quando uma notícia qualquer de TV fala da guerra ou quando um repórter vem de longe para ouvi-lo sobre o dia histórico, Van Kirk embarca numa viagem feita de palavras, lembranças e silêncios - como agora. Não se recusa a falar. Não se esconde. Porque, desde o momento em que entrou no Enola Gay para voar rumo a Hiroshima, ele sabia que aquela viagem não acabaria nunca.
( A entrevista foi gravada em 2003, para o Fantástico)
Efeito tardio daqueles 7 x 1 no Mineirão...
Estava tentando explicar a João ( quatro anos ) e Francisco ( três ):
- Vocês não precisam ter medo de lobisomem, vampiro e monstro, porque eles não existem. É só em desenho e em filme...
Francisco interrompe:
- Mas a Alemanha existe!
João concorda:
- Existe, sim!
O que é que digo a eles, Felipão?
Oração a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, a "padroeira" dos jornalistas:
"Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
Que eu possa manter os sentidos atentos para perceber o novo
e a memória viva para preservar o passado.
Senhora do Perpétuo Espanto, aconselha-nos.
Que me espante aquilo que é espantoso,
que eu ignore o que é banal
e valorize o que que tem valor.
Senhora do Perpétuo Espanto, iluminai-nos.
Que meu coração sofra com o sofrimento do meu irmão,
alegre-se com sua alegria e inquiete-se com sua indiferença.
Senhora do Perpétuo Espanto, nos dê forças.
Que eu encontre a palavra certa para dividir minhas dores
medos e alegrias, pois a arte requer comunhão.
Senhora do Perpétuo Espanto, guiai-nos;
Que eu saiba mais ver do que aparecer,
mais ouvir do que falar.
Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
Que eu tenha a ira para não aceitar o inaceitável,
a tolerância para perdoar o que merece perdão
e a sabedoria para distingui-los.
Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
Que eu creia sempre no valor da verdade
e esteja atento ao perigo das certezas.
Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
Que, onde houver certezas, eu leve a dúvida.
Senhora do Perpétuo Espanto, protegei-nos"
Eu poderia dizer que a história da Oração à Nossa Senhora do Perpétuo Espanto é esta:
Aconteceu no século XVII: era uma vez um peregrino que foi acusado de ser um saqueador.
A acusação logo se espalhou por Florença: de acordo com o "Notícias Florentinas", o forasteiro que dizia estar procurando, na cidade, um exemplar da Bíblia de Gutemberg que tinha sumido de uma biblioteca da Baviera era, na verdade, um impostor - um reles saqueador que atacava viajantes noturnos.
A notícia publicada pelo jornal, no entanto, não passava de um boato, nascido numa roda de bêbados que frequentavam diariamente uma taverna vagabunda, numa transversal da Piazza della Signoria.
Por azar, o peregrino tinha estado na taverna, uma semana antes, em busca de pistas sobre o exemplar perdido na Bíblia. As perguntas que ele fez aos frequentadores da taverna deram origem ao boato absurdo. Publicada a notícia, ele foi escorraçado por frequentadores – bêbados e sóbrios – quando voltou à taverna. Teve de fugir, às pressas, em busca de um lugar minimamente seguro para se abrigar.
Terminou acolhido por monges da igreja de Santa Maria Novella. Ficou escondido por uma noite no chão do confessionário – onde ninguém poderia vê-lo.
Quando, pela manhã, os monges o procuraram, para tentar entender aquela fantástica teia de boatos, delírios e incompreensões, ele tinha sumido para sempre – mas deixou, no chão do confessionário, o rascunho do que viria a ser a Oração a Nossa Senhora do Espanto.
Os monges, a princípio, não deram importância especial ao manuscrito, mas, diante da onda de boatos sobre o peregrino, resolveram guardar aquelas anotações no cofre da igreja, porque elas poderiam ser úteis numa possível investigação. Mas o caso foi logo esquecido.
Duzentos anos depois, no início do Século XIX, uma comissão de notáveis do Instituto do Patrimônio Histórico de Florença foi encarregada de avaliar o conteúdo do cofre – mantido sob a guarda de gerações sucessivas de monges. O manuscrito foi minuciosamente estudado.
O estabelecimento do texto definitivo da oração exigiu um grande esforço de calígrafos, convocados para decifrar uma grafia marcada por letras trêmulas, rabiscos aparentemente sem sentido e palavras superpostas umas às outras.
Terminado o trabalho de decifração, os calígrafos asseguraram ao Instituto do Patrimônio Histórico de Florença que conseguiram traduzir o original com cem por cento de fidelidade. É provável que o peregrino tenha escrito a oração durante as horas de insônia, no chão do confessionário, à luz de um candeeiro, o que explicaria os solavancos na grafia.
Jamais se soube do nome do peregrino – mas ele nos presenteou com este pequeno, mas valiosíssimo legado: a Oração que escreveu sobre quais devem ser os credos do jornalista.
Nossa Senhora do Perpétuo Espanto deveria ser entronizada nas redações como guia e padroeira dos jornalistas – que, todo dia, antes de sair de casa, deveriam fazer um juramento íntimo: jamais deixar de se espantar diante do Grande Espetáculo da Vida. Porque este Espetáculo – que acontece, neste exato momento, nas ruas, nas favelas, nas florestas, nos parlamentos, nos palcos, nos desertos, nos sertões, nos estádios – pode ser, sim, espantoso, surpreendente e arrebatador. Movidos por este credo, os jornalistas poderão oferecer aos leitores, ouvintes, telespectadores e internautas um jornalismo igualmente espantoso, surpreendente e arrebatador – e não um jornalismo burocrático, chato, vaidoso, cinzento, sonolento, pretensioso e sem graça.
*****
A história da Oração à Nossa Senhora do Espanto poderia ser descrita assim, se eu fosse um candidato a roteirista ou ficcionista. Não sou. Em nome da fidelidade aos fatos, então, devo confessar que a história da Oração é muitíssimo mais prosaica.
Num depoimento que gravei para o documentário que o cineasta Jorge Furtado estava fazendo sobre jornalismo ("O Mercado de Notícias", a ser lançado nas próximas semanas), lembrei que um escritor americano chamado Kurt Vonnegut uma vez citou, num livro, uma santa que jamais existiu: Nossa Senhora do Perpétuo Espanto.
Propus, no depoimento, que ela fosse eleita padroeira dos jornalistas, pelo que o nome evoca: espanto, espanto, espanto. É o que os jornalistas jamais deveriam perder. Mas, lastimavelmente, perdem – com espantosíssima frequência.
Jorge Furtado simpatizou com a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. Num momento de grande inspiração, escreveu a Oração. Não satisfeito, mandou imprimir "santinhos" com o texto – que será distribuído aos espectadores do documentário.
Pedi que Jorge lesse o texto da Oração para a plateia que assistiu, esta semana, a uma sessão especial do filme, no Midrash Centro Cultural, no Leblon.
(estavam no auditório lotado Caetano Veloso e o jornalista Jânio de Freitas).
Nossa Senhora do Perpétuo Espanto foi entusiasticamente aplaudida.
Bom sinal. Que tenha, então, vida longa.
Tomara que Nossa Senhora do Perpétuo Espanto inspire jornalistas – novatos ou dinossauros – a "mais ver do que aparecer", a "mais ouvir do que falar", a "não aceitar o inaceitável", a "sofrer com o sofrimento" do próximo, a "inquietar-se com a indiferença", a "ignorar o que é banal", a "manter os sentidos atentos para perceber o novo" e a "memória viva para preservar o passado".
Se conseguir espalhar inspiração, ela merecerá que as chamas de mil velas ardam em louvor a ela nas redações do Brasil.
Oração da Nossa Senhora do Perpétuo Espanto - "padroeira" dos jornalistas:
"Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
Que eu possa manter os sentidos atentos para perceber o novo
e a memória viva para preservar o passado.
Senhora do Perpétuo Espanto, aconselha-nos.
Que me espante aquilo que é espantoso,
que eu ignore o que é banal
e valorize o que que tem valor.
Senhora do Perpétuo Espanto, iluminai-nos.
Que meu coração sofra com o sofrimento do meu irmão,
alegre-se com sua alegria e inquiete-se com sua indiferença.
Senhora do Perpétuo Espanto, nos dê forças.
Que eu encontre a palavra certa para dividir minhas dores
medos e alegrias, pois a arte requer comunhão.
Senhora do Perpétuo Espanto, guiai-nos;
Que eu saiba mais ver do que aparecer,
mais ouvir do que falar.
Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
Que eu tenha a ira para não aceitar o inaceitável,
a tolerância para perdoar o que merece perdão
e a sabedoria para distingui-los.
Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
Que eu creia sempre no valor da verdade
e esteja atento para o perigo das certezas.
Senhora do Perpétuo Espanto, rogai por nós.
Que, aonde houver certezas, eu leve a dúvida.
Senhora do Perpétuo Espanto, protegei-nos".
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Eu poderia dizer que a história da Oração a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto é esta:
Aconteceu no século XVII: era uma vez um peregrino que foi acusado de ser um saqueador.
A acusação logo se espalhou por Florença: de acordo com o "Notícias Florentinas", o forasteiro que dizia estar procurando, na cidade, um exemplar da Bíblia de Gutemberg que tinha sumido de uma biblioteca da Baviera era, na verdade, um impostor - um reles saqueador que atacava viajantes noturnos.
A notícia publicada pelo jornal, no entanto, não passava de um boato, nascido numa roda de bêbados que frequentavam diariamente uma taverna vagabunda, numa transversal da Piazza della Signoria.
Por azar, o peregrino tinha estado na taverna, uma semana antes, em busca de pistas sobre o exemplar perdido na Bíblia. As perguntas que ele fez aos frequentadores da taverna deram origem ao boato absurdo. Publicada a notícia, ele foi escorraçado por frequentadores - bêbados e sóbrios - quando voltou à taverna. Teve de fugir, às pressas, em busca de um lugar minimamente seguro para se abrigar.
Terminou acolhido por monges da igreja de Santa Maria Novella. Ficou escondido por uma noite no chão do confessionário - onde ninguém poderia vê-lo.
Quando, pela manhã, os monges o procuraram, para tentar entender aquela fantástica teia de boatos, delírios e incompreensões, ele tinha sumido para sempre - mas deixou, no chão do confessionário, o rascunho do que viria a ser a Oração a Nossa Senhora do Espanto.
Os monges, a princípio, não deram importância especial ao manuscrito, mas, diante da onda de boatos sobre o peregrino, resolveram guardar aquelas anotações no cofre da igreja, porque elas poderiam ser úteis numa possível investigação. O caso foi logo esquecido.
Duzentos anos depois, no início do Século XIX, uma comissão de notáveis do Instituto do Patrimônio Histórico de Florença foi encarregada de avaliar o conteúdo do cofre - mantido sob a guarda de gerações sucessivas de monges. O manuscrito foi minuciosamente estudado.
O estabelecimento do texto definitivo da oração exigiu um grande esforço de calígrafos, convocados para decifrar uma grafia marcada por letras trêmulas, rabiscos aparentemente sem sentido e palavras superpostas umas às outras.
Terminado o trabalho de decifração, os calígrafos asseguraram ao Instituto do Patrimônio Histórico de Florença que conseguiram traduzir o original com cem por cento de fidelidade. É provável que o peregrino tenha escrito a oração durante as horas de insônia, no chão do confessionário, à luz de um candeeiro, o que explicaria os solavancos na grafia.
Jamais se soube do nome do peregrino - mas ele nos presenteou com este pequeno mas valiosíssimo legado: a Oração que escreveu sobre quais devem ser os credos do jornalista.
Nossa Senhora do Perpétuo Espanto deveria ser entronizada nas redações como guia e padroeira dos jornalistas - que, todo dia, antes de sair de casa, deveriam fazer um juramento íntimo: jamais deixar de se espantar diante do Grande Espetáculo da Vida. Porque este Espetáculo - que acontece, neste exato momento, nas ruas, nas favelas, nas florestas, nos parlamentos, nos palcos, nos desertos, nos sertões, nos estádios - pode ser, sim, espantoso, surpreendente e arrebatador. Movidos por este credo, os jornalistas poderão oferecer aos leitores, ouvintes, telespectadores e internautas um jornalismo igualmente espantoso, surpreendente e arrebatador - e não um jornalismo burocrático, chato, vaidoso, cinzento, sonolento, pretensioso e sem graça. Pronto. Falei.
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A história da Oração a Nossa Senhora do Espanto poderia ser descrita assim - se eu fosse um candidato a roteirista ou ficcionista. Não sou. Em nome da fidelidade aos fatos, então, devo confessar que a história da Oração é muitíssimo mais prosaica.
Num depoimento que gravei para o documentário que o cineasta Jorge Furtado estava fazendo sobre jornalismo ( "O Mercado de Notícias", a ser lançado nas próximas semanas ), lembrei que um escritor americano chamado Kurt Vonnegut uma vez citou, num livro, uma santa que jamais existiu: Nossa Senhora do Perpétuo Espanto.
Propus, no depoimento, que ela fosse eleita padroeira dos jornalistas, pelo que o nome evoca: espanto, espanto, espanto. É o que os jornalistas jamais deveriam perder. Mas, lastimavelmente, perdem - com espantosíssima frequência.
Jorge Furtado simpatizou com a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. Num momento de grande inspiração, escreveu a Oração. Não satisfeito, mandou imprimir "santinhos" com o texto - que será distribuído aos espectadores do documentário.
Pedi que Jorge lesse o texto da Oração para a plateia que assistiu, esta semana, a uma sessão especial do filme, no Midrash Centro Cultural, no Leblon.
(estavam no auditório lotado Caetano Veloso e o jornalista Jânio de Freitas).
Nossa Senhora do Perpétuo Espanto foi entusiasticamente aplaudida.
Bom sinal. Que tenha, então, vida longa.
Tomara que Nossa Senhora do Perpétuo Espanto inspire jornalistas - novatos ou dinossauros - a "mais ver do que aparecer", a "mais ouvir do que falar", a "não aceitar o inaceitável", a "sofrer com o sofrimento do próximo", a "inquietar-se com a indiferença", a "ignorar o que é banal" , a "manter os sentidos atentos para perceber o novo" e a "memória viva para preservar o passado".
Se conseguir espalhar inspiração, ela merecerá que as chamas de mil velas ardam em louvor a ela nas redações do Brasil.
A 'LISTA DE OURO' DE SUASSUNA: CRIADORES QUE MERECEM O TRONO DA CULTURA BRASILEIRA
É hora de repassar as palavras de Ariano Suassuna. Durante quarenta anos (!), o locutor-que-vos-fala incomodou Ariano Suassuna com questionários sem fim. E ele nunca deixou de atender a um pedido de entrevista. Ainda bem.
(Pequena divagação: que outra coisa pode fazer um repórter, além de tentar passar adiante - da maneira mais fiel e mais atraente possível - o que ouviu e viu? É pouco, pouquíssimo – mas pode ser útil como contribuição, mínima que seja, para "produção de memória". Guardei o que Ariano Suassuna disse nessas entrevistas todas - é claro. Um dia, quem sabe, consigo reunir todo o material num "livro de papel" ou num território virtual como este. Daria um painel interessante. Faço uma pequena expedição aos meus arquivos não tão implacáveis: as primeiras entrevistas com Ariano Suassuna foram feitas em torno de 1974. Tinha meus dezessete para dezoito anos. Suassuna não tinha, ainda, um fio de cabelo branco. Dou um suspiro de espanto e incredulidade: quanto tempo!)
Ariano tinha sempre muitíssimo a dizer sobre a literatura e o Brasil. Não se trancafiava numa redoma literária. Fazia questão absoluta de intervir no debate cultural brasileiro. Ao longo do tempo, arrebanhou devotos e desafetos. Vai continuar dividindo opiniões.
Uma vez, em meados dos anos 1990, pedi a ele que fizesse uma lista dos nomes da cultura brasileira que, para ele, representavam melhor o Brasil.
Ariano me deu uma lista com exatamente 20 nomes. Tratou de corrigir um equívoco que, segundo ele, cercava suas investidas em defesa da arte popular: o que ele estava defendendo não era a valorização de algo rústico ou primário. Pelo contrário, dizia que há, em manifestações da arte popular brasileira, exemplos espantosos de qualidade literária.
Eis a íntegra da entrevista:
Autor de um dos mais belos livros publicados nas últimas décadas no Brasil, o imerecidamente pouco conhecido ''Romance d´A Pedra do Reino'', o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna vem se dedicando a uma grande tarefa. Em nome da defesa da cultura brasileira contra a infiltração do ''lixo cultural'' despejado goela abaixo em países satélites, como o Brasil, Ariano vem se dedicando a uma cruzada solitária em defesa de manifestações da criatividade popular.
O cruzado Ariano se esquece até de que tem horror a viajar. Há pouco tempo, foi parar no Rio Grande do Sul para dar uma ''aula-espetáculo'' – uma façanha digna de registro, na biografia de um homem que se contenta em ver aviões em fotografias. Segunda tarefa: conhecido como autor do ''Auto da Compadecida'', texto teatral que virou até filme dos Trapalhões, este sertanejo da Paraíba radicado há décadas no Recife pretende lançar em breve um livro em que simplesmente recria e reescreve tudo o que já produziu na vida. A tarefa se arrasta há anos. Não é para menos. Nesta entrevista, além de acusar de ''equivocados'' os que defendem a abertura dos portos ao ''lixo cultural'' estrangeiro, ele faz uma lista dos artistas e escritores que, segundo ele, realmente representam o Brasil.
O chamado ''gosto médio'', a que o senhor se refere com desprezo, é "pior do que o mau gosto''. Quais são, na produção cultural brasileira de hoje, os piores exemplos da vitória do ''gosto médio'' sobre a qualidade artística?
ARIANO SUASSUNA: '' O gosto médio a que me refiro é ligado àquele mesmo lixo produzido pela indústria cultural de massas. É fácil identificar na produção cultural brasileira de hoje quem segue tais padrões ou com eles se acumplicia''.
Há quem diga que quem defende a preservação da chamada ''arte popular'' defende, na verdade, a manutenção da pobreza. Porque, se conseguissem vencer a pobreza e se tivessem acesso à educação, os artistas populares certamente deixariam de produzir obras formalmente rústicas e primitivas. O que o senhor diz a estes críticos?
ARIANO SUASSUNA: "Digo, em primeiro lugar, que se realmente a opção fosse esta, eu não teria dúvida: seria melhor que a injustiça desaparecesse, mesmo que a Arte Popular desaparecesse com ela. Mas acontece que este é somente um sofisma, criado por pessoas que, na verdade, detestam as manifestações populares da nossa Cultura. Em segundo lugar, eu gostaria de refutar o lugar-comum segundo o qual as obras criadas no âmbito na Arte Popular são necessariamente rústicas e primitivas quanto à forma. Veja-se, por exemplo, a seguinte Décima que poderia ter sido escrita por Calderon de la Barca - e é do cantador Dimas Batista:
'Na vida material
cumpriu sagrado destino :
o Filho de Deus, divino,
nos deu glória espiritual.
Deu o bem, tirou o mal,
livrando-nos da má sorte.
Padeceu suplício forte,
como o maior dos heróis.
Morreu pra dar vida a nós:
a vida venceu a morte.'
Ou então esta, que Mallarmé assinaria :
'No tempo em que os ventos suis
faziam estragos gerais,
fiz barrocas nos quintais,
semeei cravos azuis.
Nasceram estes tafuis,
amarelos como cidro.
Prometi a Santo Izidro,
com muito jeito e amor,
leva-los, quando lá for,
em uma taça de vidro.'
Assim, caso os Poetas, hoje populares, recebessem educação universitária, o que poderia acontecer é que passassem todos a compor seus versos com o rigor das duas Décimas citadas. Não acredito que o Povo pobre do Brasil perdesse a força criadora caso melhorasse de vida. Melhorou, na China – e nem por isso o Teatro nacional e popular chinês desapareceu ou piorou. Pelo contrário. Ou, para falar em termos brasileiros: J. Borges é um grande gravador popular. Se tivesse tido formação ''erudita'', continuaria a ser o grande artista brasileiro que é, somente tratando seus universos pessoais e peculiares com o rigor formal de um Gilvan Samico''.
Quem é, afinal, para o senhor, o artista que, em qualquer área de produção cultural brasileira, melhor representa o Brasil?
ARIANO SUASSUNA: ''Artes plásticas: Aleijadinho, Francisco Brennand e Gilvan Samico. Artes cênicas: Antonio José da Silva, o Judeu; Martins Pena, Qorpo Santo e Artur Azevedo. Literatura: Euclydes da Cunha, Augusto dos Anjos. Música: José Mauricio Nunes Garcia, Villa-Lobos, Guerra Peixe, Ernesto Nazaré, Capiba e Antônio José Madureira. Vídeo e cinema: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Vladimir Carvalho, Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho''.
O senhor reclama de que ''o patrocínio de multinacionais nos eventos é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais''. Quais são os patrocínios ou promoções que o senhor considera exemplos de ''tentativas de suborno''?
ARIANO SUASSUNA: ''Recusei indicações para o Prêmio Shell e para o Sharp. Recusei-me a participar da Bienal Nestlé de Literatura. Não fui eu que passei a notícia das recusas para os jornais, porque não fiz isto para me exibir nem para incorrer em falta de fraternidade com escritores e artistas que não têm as mesmas ideias nem as mesmas condições que eu tenho. Tais condições me deixam à vontade para recusar. Por isso, peço licença para, de uma vez por todas, encerrar aqui este desagradável assunto''.
Se a cultura é inevitavelmente afetada pela economia, não é ingenuidade querer que manifestações culturais brasileiras sejam preservadas numa espécie de redoma à prova de influências externas, numa época em que as relações econômicas sofrem um processo radical de internacionalização?
ARIANO SUASSUNA: ''Colocar a Cultura Brasileira numa redoma, além de ser uma coisa impossível, é algo de absolutamente indesejável. Faz muito tempo que venho fazendo afirmações em tal sentido. Por exemplo: no dia primeiro de dezembro de 1963, publiquei no jornal ''Última Hora'' um artigo no qual dizia que ''a Arte que se tornasse uniforme não se tornaria mais pura, tornar-se-ia, isto sim, mais pobre''. Depois, em 1974, ao reunir as ideias centrais do Movimento Armorial, eu afirmava que, ao valorizar o tronco negro, indígena e ibérico da nossa Cultura, não estávamos esquecidos de outras etnias e manifestações culturais que também são importantíssimas para o Brasil. Tomávamos tal posição por estarmos convencidos de que somente fortalecendo aquele tronco cultural é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga e nos massifica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece.
O que não posso aceitar é que brasileiros equivocados queiram que, em nome de nossa bela e fecunda diversidade, aqui seja acolhido também o lixo cultural que é subproduto da indústria cultural americana espalhado pelo resto do mundo como se fosse coisa tão importante – e até mais importante – do que os romances de Faulkner. Ou seja: não tenho nada contra Melville. Mas não é possível que queiram exigir que eu ache que Michael Jackson e Madonna têm a mesma importância que Melville ou Euclides da Cunha. Quero deixar claro que tenho pelo ''lixo cultural'' brasileiro horror igual ao que tenho por qualquer outro''.
Se tivesse de escolher entre passar um fim de semana passeando com Woody Allen pelas ruas de Manhattan ou cavalgando com um vaqueiro pelos morros do sertão da Paraíba, com qual dos dois o senhor ficaria?
ARIANO SUASSUNA: ''Passear por Manhattan, com Woody Allen ou com qualquer pessoa de tal tipo, é coisa que, para mim, não representa qualquer atrativo. Nunca saí do Brasil, mas, já que estamos no terreno das hipóteses, por que você, que é meu amigo, não pensa em alguém melhor e num lugar melhor? Quanto à outra alternativa, não tenho mais a resistência para sair por aí afora cavalgando pelos morros do sertão da Paraíba''.
O senhor não acredita que manifestações culturais e artísticas de um povo possam absorver criativamente influências externas? Um violeiro que vê televisão não pode se enriquecer com as novas informações que recebe?
ARIANO SUASSUNA: “Qualquer um de nós pode se enriquecer com as novas (e boas) informações que recebe. Eu leio jornais e vejo televisão. Os cantadores e violeiros nordestinos também. Nenhum de nós perde, com isso, a garra brasileira e o senso crítico e satírico. Pelo contrário. Ouvi recentemente o cantador nordestino Edmílson Ferreira comentar assim, num Martelo-de-Seis-Linhas, as desventuras conjugais da família real inglesa:
'Na Inglaterra, as coisas andam feias,
todo mundo por lá endoidecendo.
Toda dia é uma princesa sem marido,
ou um príncipe que, só, fica vivendo.
Ou a carne de vaca fez efeito,
ou o chifre do boi está fazendo.”
Qual é a pior doença e qual é a melhor cura para o Brasil de hoje, às vésperas do ano 2000?
ARIANO SUASSUNA: ''Machado de Assis fez uma distinção definitiva entre o Brasil oficial e o Brasil real que, a meu ver, é o do Povo, o do ''Quarto Estado''. As maiores doenças nossas têm origem no Brasil oficial e a cura só lhe pode vir do Brasil real. As pessoas que sustentam ideias diferentes das nossas parecem pensar: ''O Brasil oficial é o problema; na Europa e nos Estados Unidos está a solução''. Eu acho que o Brasil oficial é o problema, no Brasil real é que está a solução. Ou, um pouco à moda de Unamuno: ''Brasil é o problema, Brasil é a solução''.
O senhor ainda reclama das guitarras elétricas. Isto não é uma discussão superada desde os anos 1960?
ARIANO SUASSUNA: ''Vou mais longe, até: esta é uma discussão que não tem o menor interesse – e desde muito antes. Nem nos anos 1960 ela fez parte das minhas preocupações. Em música, gosto de Monteverdi, Vivaldi, Scarlatti, Stravinsky, Erik Sati, José Mauricio Nunes Garcia, Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, Villa Lobos, Guerra Peixe ou Antonio José Madureira. Quando vão me entrevistar, fazem-me pergunta sobre guitarra elétrica, Michael Jackson e Orlando Silva. É por isso que apareço falando sobre assuntos ou pessoas sobre as quais não tenho o menor interesse. Nunca me viriam à lembrança se não me fizessem tais perguntas''.
O senhor diz que não tem interesse pela obra de compositores da MPB, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque eles são influenciados pela ''massificação cultural americana''. O senhor não reconhece na obra de compositores como estes nenhuma contribuição para a modernização da música popular brasileira?
ARIANO SUASSUNA: ''Por iniciativa minha, jamais fiz qualquer referência a Caetano Veloso e Gilberto Gil. As pessoas que me entrevistam é que fazem perguntas a respeito deles e de outros. Depois, na maioria dos casos, quando publicam as matérias, ficam me acusando de radical e intolerante por causa das respostas que dou, porque não costumo esconder nem disfarçar o que penso. Quanto a mim, não gosto de estar falando mal de nenhum companheiro de trabalho, principalmente quando se trata de pessoas que antes estavam do nosso lado e depois passaram a emprestar seu talento ao outro''.
O senhor, secretário do governador Miguel Arraes, que se declara intransigentemente nacionalista, gostaria de ser ministro de um presidente neo-liberal?
ARIANO SUASSUNA: ''Sou amigo do governador Arraes, mas só concordei em ser secretário porque acho que ele representa, no campo da política brasileira, o mesmo que eu procuro ser no campo da cultura. O convite foi honroso. O cargo tem me trazido muitas e ardentes alegrias. Mas está me obrigando também a fazer coisas que detesto – como, por exemplo, viajar. Imagino o que aconteceria como Ministro, motivo pelo qual não gostaria de exercer tal cargo com nenhum Presidente, neo-liberal ou não. Eu teria até de me mudar para Brasília, o que, para mim, seria uma verdadeira catástrofe. Felizmente, pertenço à oposição. Não existe qualquer perspectiva a tal respeito; de modo que não vou me preocupar com a possibilidade colocada na pergunta''.
Como se chama e do que tratará o livro que o senhor vem escrevendo há anos? Que impacto o senhor gostaria que este livro tivesse no meio literário brasileiro?
ARIANO SUASSUNA: '' O livro, ainda sem título, é um romance que, se for concluído como pretendo, será uma espécie de revisão e recriação de tudo o que escrevi. Terminará a história que comecei a narrar com ''A Pedra do Reino''. Quanto ao ''impacto'', não tenho nenhuma originalidade: gostaria que o livro tivesse boa aceitação de público e de crítica. Mas, infelizmente, tenho consciência de que sou um escritor de poucos livros e de poucos leitores. Já me darei por muito feliz se meu corajoso editor não tiver prejuízo''.
Se um violeiro procurasse o senhor com uma guitarra, o que é que o senhor faria?
ARIANO SUASSUNA: ''Um violeiro com uma guitarra na mão seria aquilo que, em Lógica, se chama uma contradição em seus próprios termos : ele não seria mais um violeiro e sim um guitarrista. E provaria, com a nova opção, que nem como violeiro ele prestava. Mas só estou respondendo porque, como se diz nos depoimentos judiciais, com grande alívio meu e dos leitores, chegou a hora do "nada mais disse nem foi perguntado''.
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( 1996 )
SUASSUNA: 'A LITERATURA É UMA FORMA DE PROTESTAR CONTRA A MORTE'
Ó meu Deus judaico-tapuio e mouro-sertanejo! Considerai que qualquer coisa é bastante para me tirar a vida! Uma gota de salmoura que desça ao coração entupindo uma artéria, uma veia importante que rompa em meu peito, uma sufocação de tosse, uma forte pressão interna, um fluxo impetuoso do meu sangue, uma cobra coral que me morda, uma febre, uma picada,um corisco de pedra-lispe incendiada, um raio, uma pedrinha de areia nos rins, um inimigo audacioso, uma pedra que se despenque de um serrote - tudo isso e qualquer coisa pode me cortar o Nó do sangue, roubando-me a vida em dois tempos!".
A "veia importante" se rompeu. O que Ariano Suassuna escreveu neste trecho de "Romance d'a pedra do reino" terminou acontecendo nesta quarta-feira.
Suassuna tinha palavra - em todos os sentidos. Quem não o conhece como escritor deve devorar o "Romance d'a pedra do reino". É um grande livro. Ali, ele realiza o sonho de todo escritor: erguer uma bela catedral com palavras. A catedral de Ariano era um Brasil que ele inventou: sertanejo, belo, ensolarado, épico e,ao mesmo tempo, despojado. Os que o conhecem apenas pelo eventual histrionismo das aulas-espetáculo (de fato divertidas e instrutivas ) podem estar perdendo a chance de descobrir, nas páginas da "Pedra do reino", um grande escritor. É só o que interessa: um grande escritor.
Ao longo de quarenta anos (!), fiz "n" entrevistas com Ariano.
(Assista no Dossiê GloboNews a uma das entrevistas feitas pelo colunista)
Durante um certo tempo, horrorizado com os pecados que os repórteres cometiam ao transcrever o que dizia, ele se dava ao trabalho de responder as entrevistas por escrito - ali, "ao vivo", diante do autor das perguntas. Queixava-se de que, ao publicar suas declarações, repórteres descuidados com o texto botavam no papel cacos da linguagem falada - como "né?". Aquilo doía nos olhos de Ariano - um escritor que tratava a língua com reverência jamais escreveria um "né?".
Guardo, em meus arquivos, não tão implacáveis, uma pequena coleção de manuscritos de Ariano - aquela letra pequena e bem desenhada. Depois, ele abandonou o hábito de responder por escrito aos questionários. Não teria tempo para tanto.
Vivi uma cena que mostra o que era a palavra de um sertanejo (Ariano nasceu, na verdade, em João Pessoa, mas se criou no sertão ). Uma vez, ele me disse que Glauber Rocha, antes de ficar famoso como cineasta, o entrevistara longamente. A entrevista tinha sido publicada, no início dos anos sessenta, no Diário de Notícias, no Rio. Quando recebeu o jornal, Ariano viu que Glauber tinha atribuído a ele declarações que ele não tinha feito. Não teve dúvidas: antes de guardar o exemplar em seus bem cuidados arquivos, Ariano fez anotações à margem do recorte, para "corrigir" o texto. Fiquei curioso para ler. Pedi a ele para ver o jornal. Ariano disse: "Vou procurar, depois lhe dou".
Pois bem: passaram-se pelo menos seis anos. Ariano vem ao Rio para tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Em meio ao tumulto de abraços e cumprimentos pela posse, ele me diz: "Espere aí. Vou pegar um negócio que trouxe para você".
Procura numa pasta um recorte. Era a tal entrevista que dera a Glauber. Fiquei surpreso e comovido com a lembrança - qualquer um ficaria.
Aquilo, sim, era cumprir uma promessa! Ariano não se esqueceu de que tinha prometido ao repórter - que o "perseguia" há anos - um velho recorte de jornal. Ali, no mais improvável dos lugares, em meio a uma festa de posse na Academia, ele "cumpriu a palavra". O homem era assim.
Um pequeno trecho corrigido por Ariano:
Ariano: "Fui criado no protestantismo, mas, depois, ao reler os evangelhos, vi que o verdadeiro cristianismo é o catolicismo".
Glauber: É católico enquadrado?
Ariano: "Não. Católico enquadrado é santo. Vou à missa, de vez em quando me confesso, mas bom católico é católico safado" (aqui, Ariano emendou o recorte com uma frase escrita à mão: "Eu nunca disse isso!").
Aqui, numa das entrevistas que fiz com ele para a TV (outras tantas foram para jornal), ele falava de seus sonhos brasileiros:
GMN: Todo escritor, em última instância, escreve para ser lembrado. Isso é que motiva o senhor a escrever?
Ariano Suassuna: "A literatura é uma forma de protestar contra a morte. Em minha visão, a literatura - e a arte, de modo geral - é uma forma precária, mas, ainda assim, poderosa de afirmar a imortalidade. O homem não nasceu para a morte: o homem nasceu para a vida e para a imortalidade.
GMN: Como é o Brasil dos sonhos de Ariano Suassuna?
Ariano Suassuna: "Eu sei que é um sonho- mas sem sonho a gente não vive. É necessário, ao ser humano, um sonho - lá na frente para que a gente não se acomode e procure aquele ideal. O Brasil com que sonho, então, seria um regime no qual a gente realizasse, pela primeira vez na história humana, a fusão de justiça e liberdade".
GMN: O senhor já disse que considera a Disneylândia o maior monumento já erguido a imbecilidade humana. Qual é o grande monumento erguido à imbecilidade no Brasil?
Ariano Suassuna: "A réplica da Estátua da Liberdade que construíram na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ainda não estive lá, mas já estou com raiva da estátua - porque não gosto nem do original - quanto mais de uma réplica de segunda classe feita no Brasil!".
GMN: A quem o senhor daria - de bom grado - o título de representante número um do lixo cultural?
Ariano Suassuna: "Em primeiro lugar, já que estamos falando no tempo de hoje, eu daria a Michael Jackson. Mas já estou com pena de Michael Jackson - porque os americanos inventam um mito falso como ele e depois destroem". .
GMN: Em que situação o senhor compraria um disco de uma artista como Madonna ou Michel Jackson?
Ariano Suassuna: "Numa situação de extrema penúria intelectual, econômica, moral e mental. Se você me vir comprando qualquer coisa desse tipo, pode me internar, porque não estaria no meu juízo perfeito".
GMN: Ao reagir contra manifestações da cultura de massa, o senhor não teme ser considerado um grande dinossauro?
Ariano Suassuna: "Eu "temo", não: já fui chamado! E já fui chamado de "Dom Quixote arcaico", por viver, segundo diziam, esgrimindo contra os moinhos de vento da globalização. Não me incomodo".
GMN: Qual é a maior obra de arte já produzida no Brasil?
Ariano Suassuna: "Em artes plásticas: o Santuário de Congonhas, onde estão os 12 profetas esculpidos em pedra sabão pelo Aleijadinho. Em música, a obra de Villa-Lobos. Em literatura, Os Sertões - de Euclides da Cunha".
Cena carioca: um cracaço dos áureos tempos do Botafogo e da seleção brasileira tricampeã do mundo em 1970 caminha sem ser importunado pelas ruas do Leblon, neste noite de segunda, em companhia de um jornalista francês. Turistas que transitam pelas calçadas não imaginam que ali estava uma "fera" do melhor elenco reunido até hoje pelo Brasil para uma Copa: os convocados de 1970. Chama-se Paulo César Caju - hoje, cronista esportivo de letra afiada. ( Tomara que continue a escrever no Globo depois da Copa ). Trocamos cumprimentos e comentários rápidos, numa esquina. Arrisco um palpite de torcedor: digo que a Seleção melhorou hoje - especialmente, no segundo tempo. Notícia preocupante: de novo, Paulo César não gostou da atuação da Seleção. Não se pode desconhecer a opinião de quem entende de bola. E o bicho entende, claro.
SE É ASSIM, VAI AQUI UMA LEMBRANÇA DE PAULO FRANCIS, O "LOBO HIDRÓFOBO" QUE DISSE: "JORNALISTA, CONTINUO ATIRANDO NO ESCURO DE ONDE SAEM AS FERAS - ESPERANDO ACERTAR ALGUMAS".
Quando Paulo Francis entrou na redação do Fantástico, para uma “visita de cortesia”, produziu em torno si uma onda de silêncio que misturava curiosidade e reverência. O homem era uma estrela. Mas, “humildemente”, veio agradecer o destaque o programa tinha dado, na véspera, à entrevista que fiz com ele.
Ok : desde já, quero confessar ao distinto júri que sei do risco que corro ao usar a expressão “humildemente” num parágrafo que trata de Paulo Francis. As duas entidades, graças a Deus, eram incompatíveis: Francis e a humildade. Uma não se misturava com a outra. Eram como água e óleo.
A referência a um lampejo de humildade em Francis deve produzir "frouxos de riso" em quem teve o privilégio de conhecê-lo. Mas, em nome da verdade factual, devo dizer que, sim, ao visitar a redação do Fantástico Francis teve um gesto de humildade. Ou seria gentileza ? Cravo nas duas alternativas. A imagem pública de “lobo hidrófobo” não combinava com o Paulo Francis no trato pessoal: um gentleman.
Paulo Francis tinha acabado de lançar um excelente livro memorialístico sobre o golpe de 1964, “Trinta Anos Esta Noite”. Eu tinha gravado uma longa entrevista com ele numa praça escondida nas proximidades do Jardim Botânico. Procurávamos um lugar razoavelmente silencioso para a gravação. O sucesso da busca foi parcial: crianças brincavam nas redondezas. As babás ficaram indiferentes à presença de Francis, mas pelo menos trataram de vigiar os passos de fedelhos que brincavam na praça
( um trecho da entrevista foi usado no filme de Nélson Hoineff sobre Francis. Lá pelas tantas, o “lobo hidrófobo” cita meu nome. Eu tinha pedido a ele que fizesse uma pequena caminhada, porque precisávamos gravar imagens para ilustrar a matéria. Francis ergueu a cabeça, encarou o céu, me chamou e fez piada debochando da pose de intelectuais pomposos).
Três anos depois, um ataque cardíaco fulminante matou o mais polêmico,o mais lido e o mais provocativo jornalista brasileiro, na manhã do dia quatro de fevereiro de 1997, em Nova York. A morte : lástima, lástima, lástima. Francis estaria em pleníssima atividade, aos oitenta anos de idade, se tivesse chegado a este 2010. Lástima, lástima, lástima. Dizer que “Paulo Francis faz falta” virou um enorme lugar-comum. Mas é uma verdade puríssima: o texto de Francis faz uma falta imensa ao jornalismo brasileiro.
Uma vez, ele escreveu: “Nossa imprensa: previsível, empolada, chata: como é chata, meu Deus…”. Em cem por cento dos casos, o que Francis escrevia escapava da chatice generalizada. Vivia reclamando de que era preciso criar no Brasil uma tradição: a de uma “prosa clara e instruída”. É o que há em outras culturas: a tradição de uma prosa clara e instruída, uma atividade que, no Brasil, tinha poucos cultores. Aqui, pensam que escrever difícil é escrever bem. Ledíssimo engano.
A contribuição que Paulo Francis deu para a criação de uma prosa jornalística “clara e instruída” ainda não foi devidamente avaliada. Onde é que estão os acadêmicos – que não tratam de demonstrar “cientificamente” esta herança ? É uma tarefa facílima. Ninguém precisava concordar com uma vírgula do que ele dizia. O importante é como ele dizia.
Livros como “O Afeto Que se Encerra” e “Trinta Anos Esta Noite” deveriam ser leitura obrigatória nas escolas de jornalismo – pela clareza cristalina, pela fluência absoluta, pelo ritmo agradabilíssimo do texto. É o que vale. Os dois foram relançados faz algum tempo. O que é que vocês estão esperando antes de devorá-los ? ( Uma vez, perguntei a ele como é que ele – que, quando criança, alegadamente exibia um ar de cão hidrófobo – se definiria na maturidade. Francis respondeu: “Que tal lobo hidrófobo” ? )
A PROMESSA:
Conhecer gente famosa é uma desgraça. Conviver com um ídolo é pior ainda. Por dois motivos. Primeiro: por medo de falar uma grande tolice diante do guru, a gente se cobre de constrangimento quando conversa com ele. O encontro pode ser o mais banal, o mais trivial possível. Mas a gente termina medindo cada frase.
Fiz o cúmulo: cheguei a me refugiar uma vez numa sala lateral de uma redação, para não envenenar à toa a convivência com o guru. Mas ele, esperto, foi até o meu esconderijo: “Você se escondendo!!!”. Retribuí a gentileza com um riso amarelo.
Segundo motivo por que conhecer gente famosa é uma desgraça: a gente fica se policiando para não cometer, diante de amigos, estranhos ou desconhecidos, o pecado horroroso do “name-dropping” (a mania de ficar citando nomes célebres no meio de uma frase, para dar a ilusão de importância….).
Os dois motivos me impediram de escrever um texto na primeira pessoa sobre dez anos de contatos pessoais e profissionais, em redações no Rio, em Londres e em Nova York, com o meu ídolo, Paulo Francis. Fiz pelo menos três gravações com ele. As anotações sobre esta convivência estão feitas. Falta organizá-las.
Feitas as contas, resolvi quebrar o constrangimento. Não posso deixar que o medo do “name-dropping” me condene a guardar na gaveta as cenas que testemunhei ou as frases que ouvi. Como diria o ex-ministro, “às favas os escrúpulos….”. Pretendo, um dia, produzir um documento sobre Paulo Francis, a estrela máxima do jornalismo brasileiro das últimas décadas. É a única coisa de útil que um jornalista pode fazer: dividir com os outros a memória do que viu e ouviu. O resto é empulhação – ou perda de tempo, este recurso natural não renovável.
Quando o assunto é Paulo Francis, considero-me um grande devedor. Os maiores elogios que recebi na vida foram feitos por ele, repetidas vezes, na coluna Diário da Corte. Quem não gosta de ser elogiado que atire o primeiro Prozac. Um desses textos virou prefácio do “Dossiê Drummond”, livro em que publico a última grande entrevista do poetaço. Fora das páginas de jornal, fui alvo de pelo menos uma demonstração de extrema generosidade que Francis praticou sem qualquer interesse.
Em nome dos teclados de São Gutemberg, prometo à minha dezena de leitores: os fãs, os órfãos, os detratores de Paulo Francis ganharão um presente que estou, aos poucos, garimpando. Que ninguém se assuste, porque não cairei na tentação de parir um tratado sobre o homem. Praticarei o exercício básico do jornalismo: publicarei o que vi e ouvi. Ponto. Reproduzirei diálogos entre Francis e grandes feras. Vai ser minha maneira de retribuir os presentes que ganhei. A retribuição virá em forma de livro. Tentarei - se o diabo assim permitir.
Por falar no capeta, pergunto: o que diabos vocês estão fazendo aí? Por que não saem voando para conseguir uma cópia de “O Afeto Que se Encerra” ? É um dos melhores livros de memórias já lançados no Brasil.
PÍLULAS, GARIMPADAS NO “AFETO QUE SE ENCERRA”:
“Jornalista político e cultural, opino sobre isso e aquilo o tempo todo. Mas jornalismo, mesmo ensaístico, é dispersão de energias na vida do próximo, em coisas exteriores à ilha em que vivo e na qual um psicanalista amigo, Borsoi, descobriu uma catedral, meu superego: ajoelho, rezo e cumpro”
“Divago. Tanto falo do resto que não me sobra tempo para saber o que penso de mim. Às vezes me ocorre, desagradavelmente, que conheço melhor a cabeça ( o título é de cortesia) de Jimmy Carter do que a minha. E só sei o que penso quando passo para o papel”.
“Boa parte da ilegibilidade da literatura e imprensa brasileiras se deve ao asneirol filológico ensinado nas escolas. “Custa-me crer” é a vovozinha. Rubem Braga ou Millôr Fernandes valem “n” Aurélios”.
“A cabeça se libertou de simplificações e paliativos, das certezas de manual. Examina e se auto-examina constantemente. É meu inferno e delícia, minha única justificativa plausível de alegar que evoluí dos macacos”.
“Sei apenas que nasci, presumo que pelos processos convencionais, não existindo na ocasião o bebê de proveta e ou Garotos do Brasil. E fui, jovem, a cara do meu avô alemão, Paul Heilborn, na mesma idade, o que exclui, provavelmente, a hipótese de adoção. Dando crédito à versão oficial, não é verdade que ao me baterem na bunda eu dissesse “Cogito ergo sum”, ou, segundo o vulgo, “um Black Label nas pedras”. Se me manifestei, à parte o que Shakespeare chamava sentimentalmente de “the most piteous sound”, o som mais digno de pena, o nhenhém do desgraçado do bebê, teria sido na linha de “por que não me consultaram se eu queria vir para esta joça ?”. A última frase de As Memórias Póstumas de Brás Cubas é minha opinião da paternidade”
“Quis ser escritor desde li Crime e Castigo, aos 14 anos de idade. Eu era um revoltado contra a ordem social, família, colégio padres. Tolstói, antes de morrer, disse que não se sentia diferente de menino, aos 8 anos. Nem eu, agora ( fim das semelhanças entre nós). Foi aos 8 anos que comecei a perceber a ambivalência, a ambiguidade, a falsidade do que me pregavam. Uma cacetada emocional me levou a essa precocidade crítica. Não importa. Nos tornamos o que somos. Me fechei em mim mesmo, perplexo, rancoroso, engatinhando sarcasmos”
“Morremos uma vez só. Felizmente, porque nascemos diversas. A primeira é a menos dolorosa”.
“Desejo boa sorte aos que gostam de política e às novas gerações, ou remanescentes da minha, que caiam na realidade. Quanto a mim, procuro recriar em literatura o que experimentamos, o grupo que me fez, saciando o último desejo infantil que me resta. Jornalista, continuo atirando no escuro de onde saem as feras - esperando acertar algumas”.
Promessa feita aos beatlemaníacos é promessa a ser cumprida. Recupero - em meus arquivos não tão implacáveis - a gravação que fiz numa entrevista coletiva de Paul McCartney, em Londres ( ver post anterior ). Vale ver o que ele diz sobre a própria "ignorância" musical: se tivesse estudado música a fundo, certamente não teria feito o que fez. Tentou aprender a "ler e escrever" música três vezes. Fracassou. Jamais se tornaria um caso de compositor "cerebral". Parece ser um caso escandaloso de talento natural e não lapidado para a música. Ainda bem. Voilà a entrevista:
( mas, antes, um intervalo musical. Meninos, eu vi: Paul McCartney cantando, num teatro, com Eric Clapton na guitarra e um elenco luxuoso de acompanhantes, a música mais bonita de Abbey Road. o mais bonito disco dos Beatles: "Golden Slumbers": "Boy, you're gonna carry that weight / Carry that weight a long time" "Boy, você vai carregar este peso / carregar este peso por um longo tempo" ):
http://goo.gl/Hqa0kB
O ex-beatle Paul McCartney começa a falar, numa sala do Royal Albert Hall, em Londres. O locutor-que-vos-fala grava as palavras daquele que o jornal Daily Telegraph chamou de ” o maior compositor popular do Século XX” ( ver post anterior).
Jornalistas – ingleses – presentes à entrevista não resistiram à tietagem. Uma moça cobriu Paul de elogios, antes de fazer uma pergunta. Meu demônio-da-guarda me soprou ao pé do ouvido: “Eu bem que disse! Jornalista bancando o amiguinho da celebridade é um mal planetário. Você pensou que que essas patetices só aconteciam com os subdesenvolvidos brasileiros que vivem jogando flores uns nos outros…”.
A observação feita ao pé-do-ouvido pelo meu demônio-da-guarda não me impede de declarar solenemente, diante deste tribunal, que sou um beatlemaníaco. Paul McCartney é,sim, o maior compositor popular do Século XX. Nenhum grupo jamais fez algo parecido com o álbum Abbey Road. Milton Nascimento – que nunca se notabilizou por ser autor de frases inspiradas – disse recentemente, numa entrevista ao G1, que os Beatles são os melhores: “O resto é palhaçada”, sentenciou.
O compositor que fala agora diante do punhado de jornalistas esteve – de uma ou outra maneira – presente na vida de milhões de ouvintes ao longo das últimas décadas. “Take a sad song and make it better”, como diz a letra de Hey Jude. Em última instância, ao compor tantas canções inesquecíveis, ajudou a tornar suportável nosso circo de horrores diários. É o suficiente. Que outra coisa um compositor de canções populares pode querer na vida?
É o que me ocorre, enquanto acompanho Paul McCartney falar, com a simpatia habitual, sobre a arte de compor música popular.
Guardei a fita. É hora de ouvir as palavras de Sir Paul:
1. “Sempre achei que seria uma boa idéia aprender mais sobre o que eu estava fazendo. Contaria como um “plus”. Quando se sentam diante do piano para compor, amigos meus, altamente treinados musicalmente, ficam inibidos na hora de criar uma melodia nova, porque já têm informação excessiva na cabeça, acumulada a partir de todo o Bernstein, todo o Beethoven, todo o Mozart ou todo o Mendelssohn que ouviram. Sou sortudo, porque, nesse sentido, tenho um “buraco negro” na cabeça. Quando me sento, é como se não tivesse nada. De certa maneira, penso que é muito bom. Porque o que eu escrever possivelmenTe será mais original. Há vários exemplos. Em West Side Story, por exemplo, há uma música de Leonard Bernstein, There is a Place for Us : ouvi dizer que a melodia composta por Bernstein já teria sido feito por outra pessoa. A gente vê que até grandes como Bernstein podem misturar as informações, inconscientemente. Não saber tanto pode ser uma vantagem, então.A ignorância é uma bênção, no meu caso”.
2. “O importante, sobre o fato de escrever música para orquestra, é que tive sorte: não conheço tanto sobre música clássica. Quando eu era criança, meu pai desligava o rádio quando entrava música clássica. Dizia: “Desligue esse negócio…” (imita a voz de desprezo). Como fã de jazz, ele não gostava daquilo. Depois, ouvi Bach. Você pode citá-lo como meu compositor preferido. Quando eu estava nos Beatles, citei Bach como um dos meus compositores favoritos. Recentemente, ouvi um pouco Monteverdi ( compositor italiano). Mas, quando eu estava escrevendo uma peça para orquestra (Standing Stone, lançada em 1997) , não ouvia realmente nenhum dos compositores clássicos, a não ser para ver o que é que eu não deveria fazer! Porque eles já tinham feito! Ouvi Beethoven, para ver como ele fez. Gostei de Monteverdi porque vi que ele tinha algo em comum com a música do começo dos Beatles: ele não conhecia muitos acordes…Havia um link interessante ali. Depois, descobri os Noturnos de Chopin – que todos conheciam mas só vim a conhecer há pouco. São excelentes”.
3. “Tentei, em minha vida, aprender a ler e a escrever música três vezes, mas não fui bem sucedido. A primeira vez aconteceu quando eu era menino – com uma velha senhora lá da minha rua. A segunda quando eu tinha dezesseis anos. A terceira, aos vinte e um. Nunca consegui me dedicar ao estudo da música. Porque, na verdade, eu já estava compondo. Já tinha feito, por exemplo, When I´m Sixty Four. Nesta época, eu estava tentando. Desisti, no fim das contas. O que aconteceu, com Standing Stone, é que descobri um programa de computador que permite que eu, primeiro, trabalhe no teclado. Depois, transfiro para o computador. Posso aprender como orquestrar enquanto trabalho no computador. Isso foi um salto para mim. Porque não sou bom em matéria de computador. Preciso de uma equipe para descobrir como me livrar da confusão em que me meti….”
4. “Eu estava ouvindo,nos anos sessenta, peças de Stockhausen e algumas das coisas mais estranhas da música contemporânea. Pensei em fazer um álbum com sons eletrônicos. Ia chamar o disco de “Paul McCartney Goes Too Far”. Nunca cheguei a fazer. Fiz outras peças desde então – que não cheguei a lançar. Talvez lance um dia. Mas nunca pensei em fazer com a Orquestra Sinfônica de Londres. Ou fazer peças tão grandes como Standing Stone. Eu já tinha gostado de fazer o Liverpool Oratorio (primeiro exercício de Paul McCartney com música clássica, lançado em 1991) com orquestra. Queria fazer de novo algo assim. Quando surgiu a oportunidade, peguei”.
5. “Não esperava escrever peças como Standing Stone. Já tinha sido divertido botar violinos em Yesterday ou em Eleanor Rigby. Eu tinha, na época, meus vinte e poucos anos. Não pensava : “Quando eu tiver meus trinta anos e for velho…..”. Mas imaginava que poderia fazer algo nessa linha, não tão ambicioso quanto viria a acontecer. Considerava que música para orquestra era algo que eu poderia fazer, depois do rock-and-roll”.
6.“Eu não sabia como compor na tradicional maneira clássica - que é pegar um tema e desenvolvê-lo, numa peça em que a música é usada como uma jornada. Ao compor, senti que precisaria de uma história como base, para me manter “nos trilhos”. Fiz contato com Allen Ginsberg, poeta, amigo dos anos sessenta. Comecei a curtir poemas. Cheguei a trabalhar com poema escrito. Tentei fazer Standing Stine como um poema, caso precisasse usar de letras. Mas terminei não usando muito do poema. O que aconteceu é que o poema se tornou uma história, para o caso de o ouvinte precisar de algo em que se apoiar enquanto ouve a música. Compus peças menores como preparação para a peça maior. É como escrever contos antes de escrever um romance”.
7. “Não diria que estou fazendo música clássica. Estamos usando apenas orquestra, ao invés da combinação rythm & blues - guitarra, baixo e bateria. Era divertido usar ocasionalmente trompete ou quarteto de cordas. Porque a gente trabalha com outro tipo de músicos. Não vejo limites entre os gêneros. Para mim, era tudo música. Quando olho para trás, vejo que o rock-and-roll estava começando a flertar com músicas orquestradas. Penso em “Save the last dance for me”, com The Drifters. Ou “It doesn´t Matter Any More”, com Buddy Holly. Estava começando a acontecer. Não vejo barreiras. Não divido entre música clássica, “easy listening” ,rock-and-roll. Para mim, o que há é música boa e música ruim”.
8.”É tudo uma questão de amar a música. Tenho sorte de ser pago para fazer o que amo. Compus muita coisa em minha vida. Em geral, são coisas curtas. A música Hey Jude foi a mais longa: cerca de sete minutos. É um grande desafio. Você pode perguntar a um escritor de contos por que ele se preocupa em escrever um romance. Ora, porque é um desafio. Se você gosta de música, é interessante, então, fazer uma peça maior. É bom trabalhar com orquestra e animador trabalhar com gente com este tipo de virtuose. Se você gosta de talento, é algo animador a fazer”.
9.”Um dos motivos por que lancei o cd Flaming Pie (um dos melhores álbuns da fase pós-beatle de Paul McCartney), junto com Standing Stone, foi porque queria mostrar a todos que faço meu rock-and-roll. Não vejo estas barreiras. Em “Eleanor Rigby”, já havia os violinos e minha voz. Não se dizia que eu estava virando “clássico”. Gosto de vários tipos de música. O fato de tocar uma tradicional música irlandesa – por exemplo – não quer dizer que estou indo nesta direção. Quer dizer que eu gosto desse tipo de música assim como outros. Ainda amo o rock-and-roll”.
10.”Alguém me perguntou se eu estava confortável com o título de Sir (honraria concedida pela realeza britânica). Eu disse que sim : estava altamento honrado. Mas me ocorreu que tenho orgulho também do título de mister ( tratamento usado por e para cidadãos comuns). É working class. Você ganha quando tem vinte e um anos” ( idade em que se passa a ser chamado de “senhor”). Vou tentar descobrir se terei de deixar o título de mister para usar o de sir. Se for obrigatório, vou tentar burlar o sistema….Tenho orgulho de mister me lembra de onde vim e quem sou. Mas estou orgulhoso do título de sir”. Não é que não goste de usar o título de sir. É que me apego ao título de mister também. Não sei se você pode usá-lo”.
Quem é o maior compositor popular do século XX ?
Não faz tempo, o jornal Daily Telegraph cravou: é Paul McCartney.
Não é patriotada nem exagero do jornal inglês. Que outro compositor terá produzido, sozinho ou em parceria com um tal de John Lennon, tantas canções reconhecíveis por tanta gente em tantas partes do mundo? Nenhum.
Fazer música popular, em última instância, é criar canções que possam ser assoviadas numa caminhada. Simples assim. Pouquíssima gente fez tantas quanto nosso personagem de hoje.
O repórter-que-vos-fala faz questão de ser tendencioso quando o assunto é Beatles. O melhor álbum da história da música pop é Abbey Road, lançado faz exatamente quarenta anos, no remoto setembro de 1969.
É possível ouvi-lo por horas seguidas sem pular uma faixa sequer ( faça-se o teste: dá para contar nos dedos da mão de um mutilado de guerra quantos álbuns passariam pela Prova da Audição Sem Pulo).
Tive a chance de testemunhar duas aparições de Paul McCartney em Londres
( uma das aparições aconteceu numa daquelas cenas que ocorrem uma vez na vida: Paul McCartney subiu ao palco do Royal Albert Hall, em companhia de Eric Clapton, Elton John, Phil Collins e Marc Knopfler, entre outras feras, num show beneficente, para executar um repertório que incluía faixas do Abbey Road, como o hino “Golden Slumbers”, seguida por “Carry That Weight” e “The End”. Carimbei para sempre meu diploma de beatlemaníaco ao ver um beatle tocando três músicas do álbum Abbey Road “ao vivo e a cores”, no palco de um teatro, devidamente acompanhado por uma banda de primeiríssimo time. Tinha certeza de que jamais apareceria chance igual - a de ver e ouvir um time daquele reunido sob o "comando" de McCartney. Não era em estádio, não era em mega-evento: era no palco de um teatro. Em breve, falo desta cena. O final - claro - foi uma versão coletiva de Hey Jude. É uma música "batida"? Certamente,é. Já foi executada "n" mil vezes por McCartney em shows - mas não na companhia luxuosa de um Elton John no piano ou de um discretíssimo Eric Clapton na guitarra. Como sempre, Clapton quase não se faz notar no palco - mas toca como pouquíssimos. A música não perdeu a beleza ingênua ):
http://goo.gl/GXkKb3
A outra aparição de McCartney testemunhada pelo repórter-que-vos-fala aconteceu numa entrevista, também no Royal Albert Hall.
Beatlemaníacos, exultai: acabo de localizar, no meu baú de raridades, uma fita cassete em que Paul McCartney faz uma confissão que, sem exagero, pode servir como chave para entender por que ele foi capaz de produzir uma coleção de canções assoviáveis: ao explicar suas ligações com a música clássica, ele relembrou as três tentativas que fez de estudar e ler partituras. Fracassou nas três.
Adiante, ele confessa : se tivesse uma grande cultura musical estocada em algum escaninho de seus neurônios, certamente se sentiria tolhido na hora de sentar diante do piano para compor.
Paul McCartney diz que amigos seus, compositores, donos de uma vasta cultura musical, vivem uma experiência curiosa: eventualmente, se sentem bloqueados na hora de compor, porque, a cada novo fraseado, são invadidos por uma dúvida. E se alguém tiver feito algo assim antes?
Com uma ponta de ironia, Paul McCartney diz que, a partir de suas próprias experiências como compositor, pode declarar que “a ignorância foi uma bênção. O fato de não saber tanto pode ser uma vantagem”, confessa, sem vacilar.
Ou seja: se tivesse realmente estudado música, é provável que não tivesse composto pérolas como “Hey Jude”, “Yesterday” e uma infinidade de outras, igualmente “assoviáveis”.
O “maior compositor popular do Século XX” estava dando ali – de mão beijada – para um punhado de jornalistas, numa sala do Royal Albert Hall, a chave para que se entendesse a raiz do fenômeno que ele próprio representa.
O tema alimentaria um ano de debates num seminário de música: se não fosse “ignorante”, Paul McCartney não seria um compositor popular tão extraordinário.
Anotações sobre a aparição londrina de sir Paul McCartney:
Dou plantão numa das entradas do Royal Albert Hall, na vã esperança de arrancar uma declaração exclusiva do meu ídolo
( repórter não deve nunca, never, jamais, sob hipótese alguma, fazer papel de tiete, mas, enquanto esperava a chegada de Sir Paul McCartney eu não tinha como não lembrar dos tempos em que passava horas, horas e horas ouvindo o lp Abbey Road em meu quarto de adolescente nos fundos de minha casa no bairro de Nossa Senhora do Rosário da Torre, Recife, Pernambuco. De qualquer maneira, não abro mão de uma convicção pétrea: o jornalismo dará um imenso, um extraordinário, um indescritível salto de qualidade no dia em que forem banidas da face da terra as entrevistas em que o entrevistador se comporta diante do entrevistado não como repórter mas como praticante de uma modalidade de esporte que poderia ser batizada de “voleibol jornalístico”: são os “jornalistas” que passam a vida levantando bolas para o entrevistado, especialmente as celebridades. A cena é invariavelmente triste e patética. O mal não é apenas brasileiro: diante de Paul McCartney, uma jornalista se derreteu em salamaleques antes de conseguir articular uma pergunta. Patética. Como diriam os estudantes rebelados que pichavam muros na Paris de 1968, a humanidade só será feliz no dia em que o último jornalista deslumbrado for enforcado nas tropas do penúltimo).
Faço uma combinação com o cinegrafista Luís Demétrio. Em vez de nos dirigirmos ao auditório que servirá de palco para a entrevista, ficaremos do lado de fora, próximos à entrada principal do Royal Albert Hall. Quem sabe, num golpe de sorte, não conseguimos uma declaração do homem.
Fãs capazes de qualquer sacrifício descobrem, não se sabe como, que Paul desembarcará ali dentro de instantes. Lá estão elas, indiferentes ao frio de rachar, num canto da calçada, à espreita.
De repente, noto que um magrelo vestido de preto começa a falar discretamente num walkie-talkie. Faço um sinal para o cinegrafista. A celebridade deve estar chegando.
Um carrão preto, com vidros indevassáveis, se aproxima lentamente da entrada do prédio. Quando notam, as fãs se agitam. O carro para. Quem desce do banco dianteiro? Só podia ser ele. E era. Eis Sir Paul McCartney, recém-condecorado pela Rainha.
O canto dos olhos exibe pés-de-galinha. O tom da pele, pálido, sugere que o rosto passou por uma maquiagem – quem sabe, para esconder as rugas. A cor das cabelos não deixa dúvidas: uma tintura passou por ali. A idade manda lembranças. De calça jeans, casaco preto e blusa clara - o eterno Beatle parece, na medida do possível, jovial.
Avanço em direção à presa, com o microfone em punho. Fãs soltam gritos. Os brutamontes – popularmente conhecidos como seguranças – entram em ação para afastar todo e qualquer intruso – eu, inclusive.
Paul acena para a turba. Em meio ao tumulto, a única declaração que consigo captar é um monossílabo – “Hi!” – versão inglesa para “Olá!”. Paul se limita a fazer um “V” de vitória com os dedos.
Em questão de segundos, desaparece dentro do prédio, cercado de seguranças por todos os lados. É uma luta inglória: enfrentar um daqueles brutamontes corresponde a desafiar Mike Tyson para um duelo, no meio da rua, numa manhã de inverno. Faltam-me proteínas para tanto.
Lá dentro, na coletiva, o assessor de imprensa de Paul McCartney - ou o próprio – apontam aleatoriamente para um ou outro jornalista – que, bafejado pela sorte, pode balbuciar uma pergunta. Supercelebridade é assim. O dedo indicador do beatle me desconhece solenemente. Fica para a próxima. Não havia tempo para que cada um fizesse uma pergunta. “Paul precisa ensaiar”, diz o assessor.
Além das declarações que o astro fez na coletiva, volto para a redação com a entrevista “exclusiva” mais sucinta das tantas que tive a chance de tentar: “Hi!”.
Preservei a fita com a íntegra do que Paul McCartney disse ali. Num próximo post, reproduzo o que o homem disse diante daquele punhado de jornalistas. São declarações que revelam a "gênese" de um inigualável compositor popular.
Quanto à entrevista exclusiva, lamento informar, ela se resume a uma exclamação que trato de passar adiante aqui e agora aos que acompanharam este relato até aqui: olá!
É hora de lembrar duas cenas rápidas com Dunga - ao que parece, o novo técnico da Seleção Brasileira.
A primeira aconteceu em Londres, 1995. A Seleção Brasileira ia fazer uma amistoso contra a Inglaterra. Fui ao hotel para tentar uma entrevista. A tietagem era grande na calçada. Afinal, aquela era a seleção campeã do mundo.
Entre a saída do hotel e o ônibus que os conduziria a um treino, os jogadores eram abordados por fãs em busca de autógrafos ou uma foto ( não havia "selfies" ainda...). Uma lembrança boba: Zinho passou direto, sem se dar ao trabalho de atender aos "fãs". Havia ingleses e brasileiros.
Pouco antes, Dunga - o capitão - tinha nos recebido na recepção do hotel. Deu, pacientemente, uma entrevista em que rememorou os grandes momentos da Copa.
Eu me lembro da descrição forte que ele fez do momento em que se preparava para bater o pênalti na decisão do título contra a Itália. Disse que, ao se dirigir à marca do pênalti, parecia que tinha ficado cego e surdo: era como se não estivesse vendo nem ouvindo nada no estádio - tal a tensão. Quando viu a bola estufar a rede, sentiu que um peso de uma tonelada lhe saíra dos ombros.
Meu filho - à época com três anos - me acompanhava. Dunga posou para uma foto com ele. Terminada a entrevista, o capitão de Seleção disse: "Espere aí!". Deixou o local da gravação, subiu ao quarto, voltou com vários posters e cartões postais - autografados. Fez tudo com toda boa vontade.
( a bem da verdade, houve outra cena : uma vez, Dunga veio de Porto Alegre para o Rio para participar de uma gravação para o Fantástico. Ficou sentado, sozinho, num canto da redação, enquanto não era chamado para o estúdio. Peguei meu velho gravador, levei para uma sala, perguntei se ele toparia uma entrevista. Topou. Ricardo Pereira - editor do Fantástico - participou daquela "exclusiva" não programada. A entrevista nunca foi publicada. Guardei a fita. Prometo transcrevê-la).
A segunda cena aconteceu no Rio de Janeiro, no ano passado. Estava gravando o documentário "Dossiê 50: Comício a Favor dos Náufragos" - a partir das entrevistas que fiz com todos os jogadores da Seleção Brasileira da Copa de 50.
Tive uma ideia: que tal se, ao final do documentário, campeões mundiais brasileiros dissessem os nomes dos jogadores de 50? Poderia ser uma homenagem simples e bonita.
A gravação era a mais simples possível. Ninguém precisava dizer nada: bastaria olhar para a câmera e pronunciar os nomes dos onze injustiçados. Tempo estimado de gravação: uns quinze segundos. ( Jairzinho, Carlos Alberto, Zagalo, Amarildo e Ronaldo Fenômeno gravaram).
Dunga era técnico do Internacional. Fomos ao hotel de Copacabana em que a delegação se hospedaria. Preparamos o equipamento, improvisamos um pequeno "set" num canto da recepção. Depois de cerca de uma hora, chega o ônibus. Dunga desce, circunspecto.
Digo rapidamente o que gostaríamos de fazer. Pergunto: Dunga poderia olhar para a câmera e dizer os nomes dos jogadores de 50? É coisa rapidíssima. Sem diminuir o ritmo da caminhada, Dunga responde que vai jantar. Pega o elevador, sobe para o quarto, volta uns vinte minutos depois. Nosso plantão continua. Tento nova abordagem, no curto trajeto entre o elevador e o restaurante do hotel: pode ser agora? Com os olhos pregados na tela luminosa do celular, sem interromper os passos, ele repete que irá jantar - gravação agora, não. Passa direto para o restaurante. Janta, conversa longamente com os acompanhantes depois da sobremesa.
Ficamos "monitorando" o homem à distância. Resolvemos esperá-lo na porta do elevador. Cerca de uma hora e meia depois de entrar, Dunga deixa o restaurante. Faço a terceira abordagem. Dunga se senta, olha para a câmera, pronuncia a escalação da Seleção de 50: Barbosa; Augusto, Juvenal; Bauer, Danilo e Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Pega de novo o elevador, desaparece de vista. Aqueles míseros quinze segundos de gravação deram trabalho...Mas a causa era "nobre": a homenagem aos náufragos de 50 não ficaria completa se não contasse com a participação do capitão do tetra.
( Entre os companheiros de infortúnio naquele longo plantão, estava um talento que se iniciava em aventuras externas, longe do ar-condicionado da redação - Rodrigo Bodstein. É provável que tenha ficado ligeiramente traumatizado com o tempo gasto para tão pouco. Mas, nestes casos, o que vale não é o "tempo gasto": é o resultado conseguido.
Uma vez, em 1992, passei uma tarde na recepção de um hotel - também em Copacabana -, à espera de que o ex-secretário de Estado do governo John Kennedy, Robert McNamara, aparecesse. O homem apareceu. Quase não parou para nos atender - mas terminou falando ).
Devo dizer que o chá de cadeira que ganhei de presente de Dunga foi um dos mais memoráveis que já tomei: ao todo, cerca de três horas para conseguir quinze segundos. C´est la vie. Acontece. Nem ele tinha obrigação de me atender nem eu tinha planos de desistir.
Placar: um a um.
E coube a um cineasta - o gaúcho Jorge Furtado - a nobre tarefa de propor um debate público sobre o jornalismo!
Depois de descobrir uma peça inglesa que, no século XVII, já retratava o papel que o jornalismo pode exercer, Furtado caiu em campo: resolveu encenar o texto diante das câmeras. Colheu, também, depoimentos de treze jornalistas.
Já premiado em festivais, o filme "O Mercado de Notícias" chega às telas nas próximas semanas. Haverá uma sessão especial nesta terça-feira, dia 22, às 19h, no Midrash ( rua General Venâncio Flores, 184 - Leblon ). O diretor estará presente. O locutor-que-vos-fala participará de uma conversa com ele sobre como foi feita a expedição aos bastidores do jornalismo.
O projeto não se esgotará no lançamento do documentário. Furtado criou um site - em que serão postadas, aos poucos, versões estendidas dos depoimentos dos jornalistas entrevistados: Mino Carta, Jânio de Freitas, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira, Renata Lo Prete, José Roberto Toledo, Bob Fernandes, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, Luis Nassif, Leandro Fortes, Maurício Dias e o locutor-que-vos-fala. São experiências de vida, pontos-de-vista variados, propostas de debate:
http://goo.gl/fcMRTL
O material ficara lá, acessível a quem estiver interessado em discutir a profissão. Lamento profundamente informar que são poucos, pouquíssimos os jornalistas que se dão ao trabalho de avaliar, discutir, criticar o exercício do jornalismo.
( Pausa para uma pequena conclamação: novatos, o que vocês estão esperando? Não repitam os pecados de seus antecessores! Não pensem que discutir o jornalismo é sinal de "pretensão". É exatamente o contrário! Talvez valha a pena usar seus neurônios para discutir criticamente o jornalismo e, assim, salvar a profissão !).
Um bom ponto de partida pode ser aquele diagnóstico de Paulo Francis: "Nossa imprensa: previsível, empolada, chata. Meu Deus, como é chata!".
O meio-ambiente jornalístico, como se sabe, é envenenado por uma série de tabus. Um - que parece banal, mas não é : qualquer crítica é tida como ofensa pessoal. A vaidade, como se sabe, não tolera reparos.
( Tenho certeza de que, se conseguisse chegar ao céu, a primeira coisa que um jornalista diria a Deus seria o seguinte: " É melhor o Senhor ir para outra freguesia. Isso aqui é pequeno demais para nós dois!". A cena, no entanto, é improvável. Se houvesse justiça divina, os jornalistas seriam liminarmente barrados na entrada, é claro ).
A iniciativa de Furtado é louvável. O ponto de partida do documentário é este: e se o Jornalismo - por um instante - parasse de olhar para os outros e resolvesse se encarar no espelho? Certeza: haveria pouca beleza na paisagem.
Ao contrário do que acontece em outras áreas de atividades,
jornalistas não costumam discutir publicamente as suas próprias "mazelas" . A lista é grande.
Há as mazelas "folclóricas": a vaidade descabida, a ilusão de grandeza, a pretensão risível dos que se julgam mais importantes que a notícia etc.etc. A esse respeito, há uma boa frase, atribuída a Evandro Carlos de Andrade, ex-diretor do Globo e da TV Globo: "Se Deus entrasse na redação, iria se sentir humilhado". E há também as mazelas que devem ser discutidas a sério: a patrulhagem ideológica - que sempre existiu, existe e existirá ( há jornalistas que se recusariam a entrevistar Gerge Bush, porque ele é um direitista delirante que invadiu o Iraque, assim como há jornalistas que se recusariam a entrevistar Fidel Castro porque ele foi um jurássico ditador comunista. Se tivesse, eu pagaria um milhão de guaranis pela chance de entrevistar os dois ).
E o que dizer dos burocratas profissionais que passam a vida "derrubando matérias" e jogando no lixo reportagens, personagens e histórias que, com cem por cento de certeza, interessariam ao pobre do leitor, ouvinte ou telespectador que, neste momento, toma um cafezinho no balcão do bar? Assim é feito o Jornalismo! Poderia fazer uma lista.
Sempre foi assim: os maus jornalistas fazem jornalismo para os outros jornalistas. Resultado: uma catástrofe. Os bons pensam, em primeiríssimo lugar, no leitor, no ouvinte, no telespectador, no internauta. Os maus jogam notícia no lixo - sistematicamente. Atravessam os anos suspirando de tédio: "Isso não interessa". Os bons queimam os neurônios para descobrir qual é maneira mais atraente e mais fiel de descrever o "grande espetáculo" que, neste exato momento, acontece nas ruas, nos estádios, nos morros, nas avenidas, nas favelas, nos palcos, nos aeroportos, nas florestas, nas fronteiras, nos sertões - longe das redações, portanto.
A vida real é mil vezes mais interessante que a vida nas redações. Por que diabo as redações não tentam retratá-la com devoção, com entusiasmo, com clareza, com interesse? Eis aí - talvez - uma das causas da "crise".
E também: falta variedade política e ideológica à nossa imprensa? Falta, sim.
Eu preferiria nem me ocupar de jornalismo. Chega. Basta. Já deu. Bye,bye, Gutenberg. Adiós, McLuhan. Hasta la vista: nós nos vemos em outra encarnação. Não vale a pena ficar tentando enxugar o leite derramado. Não vale a pena ficar lamentando a assustadora incompetência de editores que acrescentaram informações erradas às matérias que você enviou para a redação ( tenho uma lista - indesmentível - com datas e locais dos crimes. ). Não vale a pena ficar lamentando as horas e horas e horas e horas de trabalho perdidas para fazer coisas que foram jogadas no lixo & etc.etc.etc..
Há coisas muitíssimo mais interessantes que o jornalismo implorando por nossa atenção. Mas....não consigo ficar cem por cento indiferente a uma atividade que consumiu tanto de minha ingenuidade, meu tempo, minha ilusão. Lá se vão quatro décadas desde que, "inocente, puro e besta", como na letra do bolero, pisei pela primeira vez no solo de uma redação, na cidade do Recife.
Agora é tarde para fazer de conta que não tenho nada, absolutamente nada a ver com o circo. É claro que tenho.
Sou aquele malabarista que, num espetáculo mambembe, joga os pratos para o alto e não consegue ampará-los de volta. Um a um, eles vão se despedaçando no chão . Os cinco espectadores que se dispuseram a pagar ingresso se entreolham, em silêncio. O malabarista agradece a atenção dispensada, faz de conta que não aconteceu nada de errado e deixa o palco, discretamente.
De qualquer maneira, é bom poder repetir, com alívio, a essa altura do campeonato, o verso de Angie, a música mais bonita dos Rolling Stones: "Você não pode dizer que a gente não tentou":
http://goo.gl/TZwXsT
'ESTOU TRABALHANDO NOS LIVROS DESDE QUE NASCI. EU SÓ SEI ESCREVER'
GMN: Você compraria um livro usado de um político?
João Ubaldo Ribeiro: Querer transformar os políticos numa casta de pessoas especialmente boas ou especialmente ruins é uma bobagem. Os políticos são parte de nossa sociedade. Não é político nem motorista de táxi nem médico nem nada: somos nós. Como sociedade, somos nós que produzimos esses políticos, esses motoristas de táxi, esses médicos, esses advogados - e esses escritores.
GMN: O Brasil é um país que vive uma crise crônica de identidade. Escrever livros como Viva o Povo Brasileiro é uma maneira exorcizar esses crise?
João Ubaldo: Você já coloca uma premissa sobre crise de identidade. Acontece que não acho que o Brasil viva uma crise de identidade permanente. Não sei se vive. Mas não penso nessas questões. Quando uma pessoa escreve algo que repercute, há sempre o impulso natural de enquadrar a obra em categorias pré-fabricadas ou pré-moldadas. Mas a realidade é que as coisas não acontecem assim. Não escrevi pensando em identidade nacional nem em coisa nenhuma. Escrevi - simplesmente. Não sei o que é. Viva o Povo Brasileiro não é uma tentativa de entender o Brasil. O que fiz foi escrever um livro. Eu poderia mentir a você abundantemente sobre o que resultou - a partir do que os outros escreveram e pensaram. Mas Viva o Povo Brasileiro é só um romance.
GMN: Você pode viver exclusivamente de literatura. Acabou a fase romântica dos escritores que escreviam "por amor"?
João Ubaldo: Escrever por amor provavelmente todo mundo sempre escreverá. Não é um problema de amor - a não ser no sentido cósmico da palavra. Dá para viver de literatura. Depende do tipo de expectativa de vida que você tem. Se você é uma pessoa que não tem grandes exigências e não é "transeira", então dá. Vivo decentemente com minha família. Agora, estou escrevendo um livro chamado "O Sorriso do Lagarto". É um romance. Só vou saber como vai ser depois de acabar. Há dois meses trabalho neste livro - mas não sou um burocrata. Os livros se trabalham o tempo todo. Em termos mercadológicos, eu diria que estou trabalhando há dois meses - Mas a verdade é que estou trabalhando nos livros desde que nasci.
GMN: Você tem a imagem de um escritor que vive feliz num ambiente paradisíaco. É a encarnação do baiano bem-humorado e contente. Mas, nos seus livros, você termina transmitindo uma imagem dilacerada e dolorida do povo brasileiro. Você admite que há um choque entre estes dois João Ubaldo?
João Ubaldo: É invenção! Sou escritor. Você pode extrapolar a partir daí milhões de coisas. Pode achar que sou um privilegiado, um iluminado, um maldito ou qualquer outra expressão que se possa arrolar para designar quem faz um livro. Mas não penso em nada assim - Nem sou mais feliz do que ninguém, a não ser pelo fato de que, por ser uma pessoa sadia, sou mais feliz do que os que não são sadios....Tenho o que comer. Sou mais feliz do que os que não têm o que comer. Mas o fato de morar em Itaparica e andar sem camisa não quer dizer coisa nenhuma. Qualquer um poderia viver assim - se não houvesse tanto tipo de problema.
GMN: O que é que mais envergonha o escritor João Ubaldo Ribeiro no Brasil?
João Ubaldo: A vergonha é tão circunstancial...Pode-se ficar envergonhado com o time do Vasco da Gama ou com os tipos de políticos que existem. Não se trata de uma questão de vergonha, mas de aspiração a uma condição condigna para todo mundo. Ficar falando "o que mais me envergonha no Brasil" é me colocar numa posição superior a tudo o que acontece quando, na verdade, sou um brasileiro como todos nós outros. Não posso ficar numa posição olímpica e arrogante.
GMN: De qualquer maneira, o ambiente cultural e literário do Rio e de São Paulo não lhe faz falta...
João Ubaldo: Não. Mas não é que eu esteja dizendo: "Eu estou fugindo!". De vez em quando, eu até sinto falta de conversar com as pessoas. Não tenho uma posição monástica. Não estou vivendo em Itaparica para me isolar. Não tenho raiva desse "ambiente corrupto" ou qualquer outra coisa que pudesse dizer. Não é uma revolta. Não é nada: é apenas uma maneira de viver.
GMN: O que significa exatamente para, para você, a figura de Jorge Amado? A figura onipresente de Jorge Amado na Bahia já foi, em algum momento, algo opressivo para você, como escritor?
João Ubaldo: Jorge Amado é um grande escritor brasileiro, uma figura importantíssima na nossa história. Por acaso, é baiano, meu amigo, meu compadre. Temos envolvimento emocional. Somos amigos. Nossas famílias são amigas. Nunca foi figura opressiva coisa nenhuma! Quanto a comparações, as pessoas ficam vendo as coisas como se tudo fosse um campeonato de futebol: quem é o melhor jogador, quem é o melhor não sei o quê. É tudo maluquice. Não tem nada a ver com nada!.
GMN: Um personagem de "Terra em Transe" diz que a poesia e a política são demais para um homem só. A política e a literatura são demais para um homem só?
João Ubaldo: Há os que são capazes de cumprir carreiras simultâneas. Podem ser políticos e literatos. Mas não sei fazer as duas coisas simultaneamente. Só sei fazer o que estou fazendo, o que não impede outras pessoas de administrarem seus talentos de várias formas.
GMN: Qual foi o maior desafio que você enfrentou ao fazer a tradução de Viva o Povo Brasileiro para o inglês? A intimidade com o texto criou algum tipo de embaraço?
João Ubaldo: Pelo contrário: a intimidade até facilita. O texto já existia em português. E você não pode tentar reescrever ao traduzir. É um fenômeno especial. Penso que este tipo de problema - o próprio autor fazer a tradução - deveria ser discutido em um seminário e não num mero depoimento. É uma questão complicada, porque envolve vários tipos de problemas. O fato de o próprio autor traduzir o livro e a convivência do autor-tradutor com as duas línguas com que ele lida são uma coisa complicada. Não é simples.
GMN: O que é que levou você, então, a enfrentar o tarefa da tradução? A falta de confiança nos tradutores americanos?
João Ubaldo: Eu já tinha feito a tradução de Sargento Getúlio. Era o meu primeiro livro fora. Fiquei preocupado com a tradução, porque seria difícil fazê-la com americanos que não conhecessem aquela linguagem semi-dialetal. Fiz a tradução, portanto, porque Sargento Getúlio era o meu primeiro livro lançado fora do Brasil. Eu estava tão ansioso que saísse uma coisa boa que me ofereci para fazer a tradução depois que ficou constatado que os tradutores que foram arranjados nos Estados Unidos não tinham condições. Demorei um ano meio traduzindo Viva o Povo Brasileiro. Para escrever o livro, demorei um ano e dois meses. Escrever demorou menos tempo!.
GMN: O João Ubaldo Ribeiro mestre em Ciência Polìtica e Administração Pública pela Southern University of California já se decepcionou com a Nova República ou mantém a esperança?
João Ubaldo: Temos de manter a esperança. Se não mantivermos, temos de morrer no dia seguinte. Tenho um desalento grave com o Brasil de hoje e com tudo o que acontece. Mas tenho de manter a esperança. Caso contrário, tenho de desistir. A esperança de que alguma coisa aconteça é, talvez, um dado irracional da conduta humana - mas indispensável para que a vida se mantenha.
GMN: O "desalento grave" que você acaba de confessar se manifesta no que você produz?
João Ubaldo: Uma das coisas mais chatas, quando se trabalha num ramo como este em que trabalho, é você, além de escrever, ter de explicar. Não sei explicar o que escrevi. Você escreve. Quem lê acha o que quer. Se o livro é bom, eu posso ser ruim. Meu livro é meu livro - e não tem nada a ver comigo. Podiam nem me conhecer; eu poderia nunca dar entrevistas. Mas livro existe. É uma entidade em si.
GMN: Que reivindicação você faz à Constituinte em relação a problemas ligados à atividade do escritor no Brasil?
João Ubaldo: A Constituinte deve ser o arcabouço básico de princípios. Não acredito, então, que a Constituinte deva resolver - como se pensa no Brasil - questões como o tamanho do bigode, quantas relações sexuais se devem ter por semana e como deve se tratar uma pessoa negra, coreana ou japonesa.
GMN: O intelectual deve querer falar em nome do povo?
João Ubaldo: A pergunta é mal colocada, porque ninguém fala em nome de ninguém. Todas essas coisas envolvem uma opção filosófica e ideológica. Você pode ser um escritor de um grande vezo populista e achar que dá voz ao povo - e, no entanto, este pode ser um gesto de uma profunda megalomania. Ou não. Você pode achar também que o escritor e o artista é aquele que transmite as aspirações. Mas estas são questões secundárias. Quem se preocupa em produzir uma obra artística não fica pensando nestas questões - que só surgem depois, a posteriori, portanto.
GMN: Você faz questão de dizer que não parte de nenhum projeto preconcebido antes de fazer um livro...
João Ubaldo: Não parto!.
GMN: E se recusa a teorizar sobre a obra depois de produzida...
João Ubaldo: Sim, porque não é o meu caso. Eu só sei escrever.
(Entrevista gravada em novembro de 1987)
Já passou - mas a Copa de vez em quando bate de novo na porta para dizer que o futebol pode ser "o maior espetáculo da terra".
A BBC de Londres - que faz a melhor televisão do mundo - fez um belo clip de encerramento da Copa. De início, a gente treme nas bases: ah, lá vem outro clip estrangeiro ao som da batidíssima e chatonilda "Garota de Ipanema"
( quem ainda aguenta ouvir? ) .
Mas, não. Detalhe: o apresentador, o ex-craque da seleção inglesa Gary Lineker, diz que esta foi a mais fascinante de todas as Copas. Com expressão sentida, lamenta: "Preciso dizer a vocês? Os alemães venceram....". ( aliás, uma das boas frases sobre o esporte foi dita, há tempos, pelo próprio Lineker - uma pérola do humor inglês: "Futebol é um jogo simples: são vinte e dois jogadores correndo atrás de uma bola - e, no final, os alemães sempre vencem...). Dessa vez, aconteceu de novo!:
http://goo.gl/NA3dm7
Não sou especialista em psicologia, nunca fiz análise, conheço psiquiatria de ouvir falar. Minha única experiência digna de nota nesta área aconteceu no início da carreira: o diretor do jornal em que eu trabalhava, o Diário de Pernambuco, me mandou fazer uma reportagem sobre um hospício. Disse:"Vá lá, se misture aos internos, não diga que é repórter. Eu quero a reportagem!". Com a petulância típica dos dezesseis anos de idade, eu disse: "Pode deixar!". E lá fui eu para o hospício - o Hospital da Tamarineira, no Recife. Fiz o que ele mandou: me infiltrei entre os internos. Ouvi as queixas. Voltei para o jornal com a reportagem. Um detalhe que me intriga até hoje: enquanto eu estava lá dentro, ninguém - absolutamente ninguém! - notou que eu não era um paciente...Só aí eu já teria tema para dez anos de análise. Mas...obrigado.
O que eu queria dizer - quando fui bruscamente interrompido por esta digressão psiquiátrica - é que, num trecho de Psicopatologia da Vida Cotidiana, Sigmund Freud diz algo assim: nada do que a gente lembra é gratuito ou casual. Pode-se fazer uma experiência: é só pedir a alguém que, sem pensar, cite um número qualquer. A citação pode parecer totalmente aleatória. Mas....se um psicanalista for investigar, descobrirá que, inconscientemente, aquele número significa alguma coisa importante para quem o citou.
O que eu queria dizer - quando fui novamente interrompido por esta digressão numérica - é que me lembrei dos números de Freud hoje de manhã: tive um sonho em que a Seleção Brasileira perdia de 16 a zero para um adversário obscuro. Não estou brincando: é sério. Sé me lembro de que Michel Platini estava em campo. Eu olhava para o placar: 16 a 0 ! Não é possível!
Desde que acordei, um punhado de dúvidas agita minhas florestas interiores: que adversário era aquele? O que Michel Platini estava fazendo ali? O que quer dizer aquele "16" no placar? Onde estão os alemães? Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos? Deus existe? Quem vai marcar Schweinsteiger? Quantos gols Klose marcou? Cuidado com Thomas Muller! Olha o gol, olha o gol, olha o gol!
Eu sabia que aquele vexame no Mineirão não ia sair barato.
Eis aí o resultado.
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A quem interessar possa: dia 22, terça-feira, às 19h, no Midrash
( rua General Venâncio Flores, 184 - Leblon ), haverá uma sessão especial de um filme que, oportunamente, discute o papel do Jornalismo: "O Mercado de Notícias" - com a presença do diretor Jorge Furtado e "intervenções" do locutor-que-vos-fala.
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O cineasta Jorge Furtado resolveu fazer um documentário sobre jornalismo. Resultado: o filme "O Mercado de Notícias". Já premiado em festivais, o documentário chega aos cinemas nas próximas semanas mas, antes, haverá esta sessão especial, aberta aos interessados.
O "elenco" do filme é formado por treze jornalistas que falam - exclusivamente - sobre o jornalismo, o que não deixa de ser saudável. Jornalistas - afinal - passam a vida falando dos outros. Que tal falar publicamente sobre as entranhas do próprio jornalismo? .
A lista de "depoentes": Paulo Moreira Leite, Mino Carta, Jânio de Freitas, Raimundo Pereira, Renata Lo Prete, José Roberto Toledo, Bob Fernandes, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, Luis Nassif, Leandro Fortes, Maurício Dias e o locutor-que-vos-fala ( aproveito para agradecer ao diretor Jorge Furtado a lembrança do meu nome entre as feras convocadas a depor no documentário ).
O projeto Mercado de Notícias não se esgota no lançamento do documentário. Os depoimentos serão publicados, um a um, em "versões estendidas", neste site:
http://www.omercadodenoticias.com.br/entrevistas/
Sem falsa modéstia, o convite para participar do documentário me surpreendeu. Minhas relações com o jornalismo são, para dizer o mínimo, acidentadas. Com o passar dos anos, descobri, para eterno espanto, que o maior inimigo do jornalismo é o jornalista - especialmente, quando ele abandona o entusiasmo e a ingenuidade do início da carreira para se transformar num "matericida" ( ou seja: um "derrubador de matérias", figura conhecidíssima em todas as redações do planeta. Um dia, tentarei fazer uma lista dos crimes de lesa-jornalismo que já testemunhei. A lista pode, quem sabe, ser útil às almas ingênuas que se iniciam na profissão ).
Não tenho, nunca tive, jamais terei a pretensão de ser "autoridade" no assunto jornalismo. Com toda sinceridade, digo que, entre outras coisas que me faltam, há uma, básica: interesse. Há coisas infinitamente mais interessantes e mais importantes que o jornalismo a clamar por nossa atenção - como, por exemplo, a literatura, o cinema, a música, a poesia, o futebol, as crianças, a agricultura, a astronomia, a pecuária, a engenharia, a arquitetura, as borboletas, as formigas, os monumentos, as jaguatiricas, os coelhos, as videntes e as tartarugas. A lista daria para encher dez volumes de enciclopédia.
Mas....desde que não seja ridiculamente pretensioso e desde que saiba se enxergar - para não causar o vexame habitual diante das visitas -, o jornalista pode, claro, fazer coisas honoráveis e, eventualmente, importantes. Ou seja: o jornalismo pode ser fascinante, sim, para quem o exerce e para quem o consome. Se eu não pensasse assim, não teria passado tanto tempo nesta joça.
( por ora, aliás, estou "dando um tempo" da profissão. Devo voltar depois do intervalo, porque, a essa altura, sou uma pré-múmia cinquentenária: já não haveria tempo útil para estudar Medicina, por exemplo ).
Estou cem por cento convencido de que a pretensão descabida é a doença infantil do jornalista. É risível. Lástima, lástima, lástima.
Sem qualquer pretensão, portanto, tentei dizer, no depoimento a "O Mercado de Notícias", duas ou três coisas que fui aprendendo ao longo destas quatro décadas pastando entre uma redação e outra.
Tentei passar adiante o que consegui aprender, por exemplo, sobre uma atividade básica do jornalismo - a entrevista. O que dizer de uma das grandes pragas do jornalismo - a "entrevista-vôlei", aquela em que o entrevistador passa o tempo todo levantando a bola para o entrevistado? Fiasco, fiasco, fiasco. A chance de uma entrevista assim extrair alguma informação que seja útil ao leitor/ouvinte/telespectador é de zero vezes zero vezes zero. A entrevista, como sabe, deve ser instrumento de prospecção e de revelação sobre o entrevistado - jamais de congratulação.
E que tal as entrevistas em que o entrevistador, em vez de fazer perguntas, fica fazendo afirmações? "O horror, o horror, o horror" - diria o personagem de Marlon Brando em Apocalipse Now, com a cabeça baixa enterrada nas mãos, num sinal de desconsolo. Papel do jornalista não é ser cúmplice do entrevistado! O jornalismo deveria ter um Ato Institucional decretando o seguinte: repórter - seja ele de jornal, rádio, TV, site, o que for - só deve abrir a boca diante do entrevistado se for para fazer pergunta. É obrigatório um ponto de interrogação ao fim de cada frase. Revogam-se as disposições em contrário. Ponto. Parágrafo.
Em suma: o jornalismo, em tese, poderia ser uma atividade simples e fascinante. Poderia, sim, porque é tão somente a arte de passar adiante - da maneira mais fiel e mais atraente possível - o que se viu e ouviu.
É pena que, na vida real, o que poderia ser simples e fascinante pode virar algo chato e cinzento na mão de burocratas matericidas.
Minha grande e inútil luta é para não perder o entusiasmo e a ingenuidade do início da carreira. É uma batalha perdida, claro, porque o poder de fogo dos matericidas sempre foi devastador - mas, se houver disposição, há algo divertido a fazer: morrer atirando.
Ainda sobre jornalismo ( ver post anterior ): a história de um jornalista americano "folclórico" resume bem o que é a profissão. O jornalista vivia importunando a atriz Ava Gardner: queria de qualquer jeito uma entrevista. A atriz não queria atendê-lo. Os dois terminam se encontrando numa casa noturna. Irritada com o assédio, a atriz joga uma taça de champanhe no rosto do repórter. Um dia depois, ele publica no jornal: "Ontem, dividi uma taça de champanhe com Ava Gardner".
É isso! Os jornalistas passam a vida "dividindo" taças de champanhe com as Ava Gardners da vida. O problema é quando eles passam a acreditar que de fato estão dividindo. É a receita para o desastre: a ilusão de grandeza, a empáfia, a vaidade. Aqui, para o interessados, o link para o depoimento gravado pelo locutor-que-vos-fala para o documentário "O Mercado de Notícias":
E uma pequena nota: não se deve esquecer que hoje é a missa de sétimo dia do Dr. Hexa.
Sim, ele, o Dr. Hexa - aquele que levou sete tiros no Mineirão na terça-feira da semana passada. Vestia uma camisa amarela.
Nós - que sofremos tanto por ele - devemos nos lembrar do Dr.Hexa nesta data.
A "boa" notícia é que uma Clínica de Ressuscitação estará funcionando em Moscou, em 2018. O corpo vai ser mandado para lá. Pode ser que dê certo.
Acabou. Já era. C´est fini. Bye, bye, 68.
Ao participar de um debate esta noite, na Livraria da Travessa, no Leblon, um dos grandes líderes da rebelião dos estudantes de maio de 68 em Paris, Daniel Cohn-Bendit, foi logo dizendo, em inglês, o que pensa daqueles tempos: "It´s over, baby!". Era um aviso prévio de que não estava ali para encenar uma Sessão Nostalgia.
Sem renegar o que já fez, o Cohn-Bendit de 69 anos faz uma revisão crítica: diz que aquela "revolta contra o autoritarismo do capitalismo" tinha como um dos modelos....Mao-Tsé-Tung, o líder chinês, símbolo de um regime extraordinariamente autoritário. Em meio às barricadas de maio, Cohn-Bendit não se alistava, aliás, entre os militantes da esquerda ortodoxa: declarava-se parte de um grupo "anarquista libertário".
1968, para ele, "foi um momento importante - mas deve ser esquecido. Aquilo foi, sim, um grande momento da minha vida. Mas, se aquele tivesse sido o único grande momento, minha vida teria sido terrível. Tínhamos, em 68, o sentimento de que a revolução tinha chegado. Aquilo seria o ponto de partida de uma revolução moderna. E este é o grande mito que perdura sobre 1968".
Bendit tratou de percorrer outros caminhos. Não ficou no saudosismo de maio: virou militante verde, cumpriu vários mandatos no Parlamento Europeu. Agora, deu por encerrada suas atividades parlamentares.
Hoje, ele se declara contra a "economia de Estado" - que não dá espaço para a sociedade - e a favor da "economia de mercado". Mas faz logo a ressalva: "O que a gente vê, no entanto, é a "religião do mercado" e a "religião do Estado". Somos contra religiões! O grande problema é a desigualdade. Há, aliás, uma desigualdade natural: as pessoas não são iguais! O grande debate que deve ser feito é sobre como se pode controlar a desigualdade no capitalismo".
O rebelde de 68 deu exemplos de como contradições e surpresas pontuam o avanço da História. Relembrou os tempos em que ocupou um cargo na prefeitura de Frankfurt. Numa reunião, discutia-se a necessidade de reduzir o número de automóveis particulares, em nome do equilíbrio ecológico. Um imigrante turco levantou a mão para confessar, meio desolado: "Nós viemos aqui para poder ter um carro...E vocês vêm me dizer que não devo ter um!".
Bendit tratou do Brasil: "Se, antes das protestos de junho do ano passado, alguém dissesse que haveria grandes manifestações de massa, seria considerado louco. Mas foi o que aconteceu. Depois, todos disseram que haveria uma onda de protestos de todo tipo durante a Copa. E não aconteceu nada".
O ex-estudante que incendiou corações e mentes na Paris de 68 compara o movimento da história ao movimento das marés. Há momentos de "maré baixa" - como o de agora.
Feitas as contas, é ilusão achar que se pode prever o movimento das ondas da História . Bendit dá um exemplo. Diz que nasceu em 1945. Se tivesse a capacidade de falar ao nascer e dissesse aos pais que dali a cinquenta anos "não haveria o menor risco de uma guerra entre França e Alemanha", seria tido como "louco". Mas foi o que aconteceu. Como qualquer criança sabe, nada é tão remoto, hoje, quanto um conflito franco-alemão fora dos estádios de futebol.
Neste périplo pelo Brasil, para filmar um documentário "on the road" durante a Copa, Bendit disse que esteve num acampamento do MST "radical e guevarista" na Bahia. Um observador ingênuo imaginaria que os militantes - por exemplo - boicotariam a Copa. Que nada: "Todos vestiam a camisa da seleção brasileira", disse ele. "Torceram bastante pela França contra a Alemanha. Queriam que a França jogasse contra o Brasil, porque,assim, os brasileiros teriam a chance de vingar a derrota sofrida na final da Copa de 98...".
E a famosa "imaginação no poder"? Bendit reconhece, hoje, que "quem quer o Poder deve estar pronto para assumir um certo autoritarismo. Se eu fosse presidente da República, certamente seria um cretino - como François Hollande" - disse, entre risos.
Depois de ter tido tantas surpresas, ele não se arrisca a fazer previsões, é claro:
"O futuro é uma história em aberto. Não foi escrito ainda" - declarou, solene, no relançamento da edição de bolso de "Os Carbonários", relato de Alfredo Sirkis sobre os "anos de chumbo" brasileiros.
Termina aqui a edição extra desta anotações facebookianas.
Como diria Cid Moreira, "boa noite".
Não gosto de fazer "demagogia" usando criança - mas esta aconteceu. Vai ficar como a lembrança pessoal mais forte da hecatombe da Seleção Brasileira diante da Alemanha. Quando estava cinco a zero, João - um dos meus dois cronistas esportivos favoritos - foi para um canto e, discretamente, começou a fazer contas com os dedos. Virou-se para mim e perguntou: "Se o Brasil fizer seis gols ganha, não é? ".
João tem quatro anos de idade. Decorou nomes de jogadores. Fez o álbum de figurinhas. Identificava os países pela camisa. Meu outro cronista esportivo favorito é Francisco - três anos, irmão de João e igualmente atraído ao futebol por esta Copa. São netos ( é certo que uma nova geração de torcedores descobre o futebol a cada Copa do Mundo. Eis aí dois exemplos, iguais a milhões de outros. Resta saber qual vai ser, adiante, o impacto da decepção sobre os novos torcedores. Mas aposto que ninguém deixará de torcer pelo Brasil quando chegar a hora de novo).
Não é possível que a situação do futebol brasileiro não melhore até a nova Copa - na Rússia. João não pode ser obrigado de novo a ir para um canto da sala e ficar fazendo contas com os dedos das mãos.
Quando entrevistei Friaça, ponta-direita da Seleção Brasileira de 1950, ele, já octogenário, dizia, com todo orgulho, que tinha uma "glória": era o único jogador brasileiro que tinha marcado um gol numa final de Copa do Mundo no Maracanã - um sonho. Friaça lembrava: o delírio da torcida e dos jogadores foi tão grande que ele passou alguns minutos "sem saber onde estava". Dá para imaginar.
Os jogadores da Seleção Brasileira de 2014 tiveram a grande chance: se o Brasil tivesse chegado à final, algum outro brasileiro poderia dividir com Friaça a glória de ter enlouquecido o Maracanã de alegria com um gol numa decisão de Copa. Mas, não: Friaça - que não foi lembrado por ninguém hoje - continuará a ser, por uma eternidade, o único jogador brasileiro a ter marcado um gol numa final de Copa no "templo do futebol".
Tentei fazer uma pequena homenagem a Friaça num texto que o Jornal das Dez - da Globonews - encomendou ao locutor-que-vos-fala.
Palmas para Friaça - que carregou pelo resto da vida o estigma da derrota de 50 - mas cultivava uma glória que cabe a pouquíssimos:
http://goo.gl/BfgXLu
Parece uma sessão de masoquismo, mas não é:
vale a pena dar uma olhada no "vt" de Brasil x Alemanha, a partir de 1: 22:34 ( ou seja: já perto do fim do jogo ): a bola passa de pé em pé - de um jogador alemão para outro. São cerca de trinta toques, numa sucessão de passes curtos. Os brasileiros "entram na roda".
Quando o Brasil pegava na bola, tentava atacar - em geral - com aqueles chutões para a frente.
Eis aí tema para cinco décadas de discussão sobre táticas de jogo.
De qualquer maneira: vai ser melhor na Rússia, na Copa de 2018!
Moscou, lá vamos nós! Te cuida, Kremlin! Prepare-se, Praça Vermelha! Uma onda amarela vai agitar o rio Volga!
http://goo.gl/uLkJhM
E, para encerrar a semana que começou esperançosa e terminou amarga para os brasileiros, um tango moderno, em homenagem à Argentina finalista da "Copa das Copas" - Santa Maria del Buen Ayre:
A final dos sonhos da Copa de 2014 - o "jogo do século" entre Brasil e Argentina, no Maracanã - vai entrar para a galeria das grandes partidas que apenas podem ser imaginadas.
Por fim: uma vitória da Argentina contra a Alemanha domingo no Maracanã será um prêmio à raça, à devoção e à paixão com que jogadores e torcedores argentinos encaram cada batalha. São arrebatadores.
E o banho de bola histórico que a Alemanha deu no Brasil pentacampeão já bastaria para credenciar os alemães como personagens obrigatórios da grande final e candidatíssimos ao título.
( como se não bastasse, a seleção alemã desmentiu o clichê da frieza germânica, saiu espalhando simpatia desde o começo da Copa e agiu com grandeza e elegância na hora do massacre...).
Se voar para Berlim ou se for para Buenos Aires, a taça estará em boas mãos tanto em um caso quanto em outro ( e não é possível que alguém leve cem por cento a sério ou a pé da letra a "briga" entre argentinos e brasileiros. É apenas uma rivalidade esportiva, entre tantas outras. Pode ser divertida. Se a Argentina tivesse levado uma goleada, os brasileiros não estariam fazendo gozações de todo tipo? É claro que estariam. Quantos e quantos anúncios - alguns pretensamente "engraçadinhos" - não se fizeram no Brasil para zombar com os torcedores argentinos em tempos de Copa? ).
E viva Buenos Aires!
O calendário enlouqueceu: para a Seleção Brasileira, definitivamente, hoje é 11 de Setembro - não é nem pode ter sido um mero oito de julho!
( Em 2000, cinquenta anos depois de 1950, publiquei a primeira edição de "DOSSIÊ 50" - uma reportagem com os onze jogadores brasileiros que entraram em campo no Maracanã para enfrentar o Uruguai na Copa de 50. Deixo para algum neto a tarefa de - daqui a cinquenta anos - publicar um "DOSSIÊ 2014" ).
Quando o Brasil perdeu para a Itália, em 1982, Carlos Drummond de Andrade terminou assim a crônica no Jornal do Brasil:
"A Copa do Mundo acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora - o sol de nós todos".
Quem somos nós para desdizer o poeta?
Não é hora de "frases de efeito" para descrever o naufrágio épico da Seleção Brasileira. Já devem ter dito ( quase ) tudo. Com o tempo, este 11 de Setembro futebolístico haverá de produzir algum sentido, algum benefício, alguma lição para a nossa Seleção.
Velas ao mar, portanto, rumo à próxima parada: Rússia.
Mas.....a "Copa das Copas" ainda não acabou!
Quanto ao embate desta quarta: o coração do locutor-que-vos-fala se confessa dividido entre Holanda e Argentina.
Bem que a Holanda, três vezes vice-campeã, merecia levantar a taça pela primeira vez, justamente no "tempo do futebol" - o Maracanã.
Quanto à Argentina: meu sentimento de "hostilidade" em relação a ela é zero. Admiro a devoção "dramática" da torcida e dos jogadores argentinos à seleção ( além de tudo, aquela introdução do hino, embalada pela torcida nos estádios, é especialmente bonita, emocionante e arrebatadora).
Bem que a taça poderia ficar na América do Sul - ainda que nas mãos dos nossos históricos "rivais".
Por fim: o oito de julho termina, aqui, nesta esquina perdida no Facebook, com os acordes de uma belíssima versão do mais célebre dos tangos - "La Cumparsita" - tocada por um violonista clássico dinamarquês. Parece a dose certa de drama, melancolia e beleza para embalar a mais triste das noites brasileiras:
O calendário enlouqueceu: para a Seleção Brasileira, definitivamente, hoje é 11 de Setembro - não é nem pode ter sido um mero oito de julho!
(Em 2000, cinquenta anos depois de 1950, publiquei a primeira edição de "DOSSIÊ 50" - uma reportagem com os 11 jogadores brasileiros que entraram em campo no Maracanã para enfrentar o Uruguai na Copa de 50. Deixo para algum neto a tarefa de - daqui a cinquenta anos - publicar um "DOSSIÊ 2014" ).
Quando o Brasil perdeu para a Itália, em 1982, Carlos Drummond de Andrade terminou assim a crônica no Jornal do Brasil:
"A Copa do Mundo acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora - o sol de nós todos".
Quem somos nós para desdizer o poeta?
O grande "drama" de uma Copa do Mundo é que fatos importantes que marcam numa megacompetição como esta pertencem, em geral, a um gênero especial de acontecimentos: aqueles que jamais poderão se repetir.
O Brasil, como se sabe, já enfrentou a Holanda, a Argentina e a Alemanha em outras Copas, disputadas em "território neutro" ( com exceção da famosa "Batalha de Rosário": Brasil 0 x 0 Argentina, na Copa de 78). É mais do que provável que volte a enfrentar os três em Copas futuras. Neste caso, haverá um replay de duelos já ocorridos.
Mas.....
Jamais o Brasil terá outra chance de ser hexacampeão em casa, nos braços da torcida.
Jamais esta geração de jogadores brasileiros ( e as próximas ) terá
outra chance de levantar a taça no Maracanã.
Jamais Neymar, David Luiz, Tiago Silva, Júlio César & cia terão outra chance de terem seus nomes repetidos pelas futuras gerações.
Por essa razão, o duelo com a Alemanha - penúltimo passo rumo ao sonho de glória no Maracanã - assume contornos tão "épicos" e tão dramáticos.
É como se o destino desse, aos envolvidos, uma única chance: é tudo ou nada, é pegar ou largar, é hoje ou nunca.
Cardiologistas, guardem seus diplomas. Ninguém precisa ter estudado medicina para descobrir que é este o motivo da tanta taquicardia.
Tensão em grau máximo: o juiz marca um escanteio para o Brasil aos 45 do segundo tempo na decisão da Copa do Mundo de 1950, contra o Uruguai, diante de 200 mil espectadores, no Maracanã. Friaça corre para a bater o escanteio. ( Se estivesse narrando o jogo, Galvão Bueno diria a frase que embala tantas taquicardias de quatro em quatro anos pelo Brasil afora: "Vive um drama a Seleção Brasileira! " ).
"O Brasil todo estava na área: havia gaúchos, cabeças chatas, mineiros, crioulos, vaqueiros, generais, garis, físicos nucleares, batedores de carteira, bisavós, recém-nascidos. Todos esperando aquela bola de Friaça - que vinha pingando do céu" - escreveu um cronista da época, Vicente Marinho, citado no nosso documentário "Dossiê 50: Comício a Favor dos Náufragos".
Friaça bate o escanteio, a bola passa raspando a cabeça de Jair Rosa Pinto, o juiz apita o fim da partida. O Uruguai, como se sabe, ganhou.
Nesta terça - e, se tudo der certo, no próximo domingo - a Seleção Brasileira poderá viver jornadas épicas ( que se diga: se perder, não será nenhum desastre). Não há como ficar indiferente: não existe nada, nada, nada que una tanto os brasileiros. Não é possível que tanta energia e tanta devoção não signifiquem nada. É claro que significam muitíssimo para nosso coração brasileiro, um país que soube transformar uma invenção "estrangeira" - o futebol - numa contribuição brasileira à alegria e à beleza.
A Alemanha é apontada como favorita. Mas, a essa altura do carnaval, resta mandar para o espaço todas as táticas, todos os cálculos, todas as matemáticas, todas os favoritismos. E acender uma vela para Nossa Senhora do Chororô: sim, vai ter gente chorando na hora do hino, na hora do gol, na hora do pênalti, na hora do escanteio. O Brasil é assim - ainda bem!
Em nome dos "gaúchos, cabeças chatas, mineiros, crioulos, vaqueiros, generais, garis, físicos nucleares, batedores de carteira, bisavós e recém-nascidos", Nossa Senhora do Chororô haverá de zelar para que tudo dê certo. De novo, vai estar todo mundo na área, à espera das bolas que, dessa vez, haverão de vir "pingando do céu" direto para o gol.
Cada um vai guardar suas lembranças da "Copa das Copas": as melhores ainda estão por vir, se tudo der certo.
Uma nota pessoal: as minhas melhores até agora envolvem os meus dois interlocutores favoritos em matéria de futebol - Francisco ( três anos incompletos ) e João ( quatro ). Ao ver a Seleção já no campo, antes do jogo contra a Colômbia, Francisco achou que tinha perdido a hora do hino na TV. Resultado: "caiu no choro", inconsolável. "Perdi o hino, perdi o hino...". Não tinha perdido - felizmente. Em resumo: a execução do Hino Nacional virou um "evento" até para crianças.
Os dois ganharam de presente dois times de botão. Fizeram questão de levar os times para a cama na hora de dormir. Não queriam ficar longe dos "craques". E adormeceram literalmente segurando os times. A mãe tratou de fotografar a cena. Devem ter sonhado com gols épicos. João e Francisco repetem, como se estivessem falando de amigos da escola, os nomes dos ídolos que acabam de conquistar: Júlio César, David Luiz, Tiago Silva, Neymar...
João e Francisco: quantos milhões de novos torcedores - como eles - não se incorporaram à torcida brasileira nesta Copa?
O locutor-que-vos-fala pede a palavra para, na condição de leitor, dar uma de "ombudsman" ( aquele sujeito que dá opinião sobre o que os jornais publicam ).
Depois de quarenta e dois anos pastando de uma redação a outra, desconfio de algumas coisas.
Primeira: as edições "em papel" dos jornais brasileiros, na quase totalidade, não estão sabendo, nem de longe, conviver com a avalanche digital de informações.
A primeira página de três grandes jornais brasileiros deste sábado, dia cinco de julho de 2014, bem que poderiam virar matéria de estudo nos cursos de jornalismo.
O que acontecera na véspera? Um fato traumático, acompanhado por milhões, milhões e milhões de espectadores: o principal jogador da Seleção Brasileira tinha ido parar no hospital, depois de ser atingido por um adversário num jogo de Copa do Mundo. Não é exagero dizer que a notícia correu o planeta em questão de minutos.
Noventa e nove vírgula nove por cento dos torcedores já tinham sido informados, minutos depois do encerramento do jogo, de que Neymar estava fora da Copa do Mundo. A notícia foi dada, repetida, debatida, esmiuçada, lamentada e retransmitida "n" vezes por todas as emissoras de rádio e TV, todos os sites, todos os blogs, todas as chamadas "redes sociais". Não se falava em outra coisa.
O leitor corre para a banca na manhã do sábado.
E o que é que as manchetes de primeira página diziam? "Sem tirar nem por", as manchetes repetiam, literal e mecanicamente, o que cem por cento dos brasileiros já estavam cansados de saber.
A manchete da Folha de S. Paulo dizia: "Brasil vai à semifinal, mas Neymar está fora da Copa".
O Globo: "Neymar está fora da Copa".
O Estado de S.Paulo: "Neymar fora da Copa".
Os jornais de papel anunciavam o que qualquer criança de três anos já sabia "de trás para frente": Neymar "fora da Copa", Neymar "fora da Copa", Neymar "fora da Copa".
Grau de surpresa para o leitor: zero vezes zero vezes zero vezes zero elevado ao quadrado.
Pergunta inocente: é este o papel que se espera dos jornais? Custava fazer uma manchete que avançasse um milímetro ou acrescentasse uma mísera informação nova ao que já se sabia?
O demônio-da-guarda sopra ao pé do ouvido do ombudsman amador uma resposta às duas perguntas: não, não, não.
Conclusão óbvia: as manchetes das edições "em papel" parecem ter sido feitas, sob encomenda, não para o leitor que procura um mínimo de informações novas - mas para um marciano recém-desembarcado no planeta terra ou, quem sabe, para algum náufrago que habitasse, solitário, uma ilha remota, fora do alcance de todo e qualquer sinal de civilização. Ou seja: gente total, completa e absolutamente desinformada.
Um espírito-de-porco diria: se este é o público-alvo, bastaria imprimir dois exemplares: um para o marciano e outro para o náufrago.
Tanto neste caso como em outros, nossos jornais se comportaram, olimpicamente, como se ainda estivessem na era pré-digital ( ou, até, na era pré-TV, o que é ainda mais grave....).
Ninguém precisa ser "especialista" em jornalismo para saber que uma manchete que acrescentasse informações novas ao que já tinha sido exaustivamente divulgado por todas as TVs, todos os sites, todos os rádios, todos os blogs, todos os Facebooks e todos os Twitters do planeta seria mais atraente que a mera e mecânica repetição do já sabido.
Uma definição clássica - aliás - diz que fazer jornalismo é dizer a alguém algo que ele não sabia. Ponto. É simples assim.
Palpite de leitor: o que aconteceu neste sábado mostra que nossos jornais estão repetindo, em manchetes, o que todos já sabiam. Se os jornais fossem um paciente, o médico diria, depois de um suspiro dramático na porta da UTI: "É grave o quadro".
Eis um bom exercício para uma turma de jornalismo: "Vocês têm quinze minutos para escrever, sobre o Caso Neymar, uma manchete "informativa" que não repita,sob hipótese alguma, o que já foi noticiado trilhões de vezes. Agora! Já! Corram para seus terminais!".
( daria para fazer uma lista de dez alternativas: "Fifa pode punir jogador que tirou Neymar da Copa"; "Zagueiro que tirou Neymar da Copa diz que lance foi "normal"" etc.etc.etc.).
Um jornalista inglês chamado Peter Batt, figura que virou "lenda" na Fleet Street, dizia que manchete boa é aquela que faz o leitor se engasgar com a torrada no café da manhã.
Não por acaso, a imprensa britânica ( e aí se incluem jornais, rádio e TV) dá de mil a zero na nossa. That´s life.
O "ombudsman" amador dá por encerrada esta pequena investida.
Mas não quer ir embora sem dizer que nosso jornalismo, em geral, não parece interessado em provocar saudáveis engasgos de espanto em quem o consome.
Engasgos ! Engasgos ! Pelo amor de Deus! É o que o leitor, o telespectador e o ouvinte pedem.
Não é muito.
O velho Paulo Francis já dizia: "Nossa imprensa: empolada, previsível, chata. Meu Deus, como é chata!".
Faz dezessete anos que - desgraçadamente - Paulo Francis saiu de cena.
O diagnóstico não envelheceu.
Uma canção anarquista italiana pede que se mandem flores para os rebeldes que fracassaram. Os jogadores que falharam também merecem flores. Por que não?
A história do futebol é feita de gloriosos tropeços. É hora – então - de mandar flores - tardias – aos personagens do mais espetacular naufrágio já registrado na história do futebol brasileiro: a derrota do Brasil para o Uruguai, na decisão da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã.
Por que os náufragos de 50 merecem flores? Porque – justiça se faça – aqueles jogadores deram ao futebol brasileiro o primeiro título internacional de importância: o vice-campeonato mundial. Bem que merecem uma anistia ampla, geral e irrestrita.
A derrota diante do Uruguai foi tão traumática que poucos se dão ao trabalho de notar que, ali, o Brasil começou a despontar como “potência futebolística”. Mas o que aconteceu? Em vez de serem reconhecidos, os jogadores foram crucificados.
Tive a chance de entrevistar os onze jogadores brasileiros que entraram em campo, no Maracanã, para a festa que não houve. Havia uma mágoa generalizada: os jogadores lamentavam que, aqui no Brasil, o título de vice-campeão “não vale nada”.
O estigma da derrota de 1950 os acompanhou até a morte. Mas nunca é tarde para mandar flores para os rebeldes que falharam – ou para os náufragos que erraram. ( É claro que erraram: os jogadores, confessadamente, entraram em campo achando que iriam golear o Uruguai. O “excesso de otimismo” foi fatal. Mas não mereciam carregar a cruz que carregaram pelas décadas seguintes ).
NUNCA MAIS, NUNCA MAIS
O naufrágio brasileiro de 16 de julho de 1950 ganhou o status de mito porque é um daqueles acontecimentos que jamais se repetirão.
Jamais o Brasil jogará pelo empate numa decisão de Copa do Mundo ( as regras mudaram: naquele tempo, quatro países disputavam um quadrangular final. O Uruguai tinha vencido a Suécia – 3 a 2 – e empatado, no sufoco, com a Espanha – 2 a 2. Tinha, portanto, um ponto a menos que o Brasil – que vinha de dois passeios históricos: 7 a 1 sobre a Suécia e 6 a 1 sobre a Espanha. Por “artes do destino”, a tabela previu Brasil x Uruguai como última partida ). Jogar pelo empate numa decisão de Copa? Nunca mais, nunca mais.
Jamais o Brasil jogará novamente diante de 200 mil torcedores. Os estádios, desde então, encolheram ( o público pagante de Brasil x Uruguai foi de 173.850. Calcula-se que os não-pagantes levaram o total a cerca de 200 mil. É uma marca extraordinária: nada menos de 10 % da população do Rio de Janeiro na época, estimada em 2 milhões e 300 mil pelo censo de 1950). Quando é que 10% da população de uma grande cidade brasileira irão a um estádio para assistir a um jogo de futebol? É fisicamente impossível. Nunca mais, nunca mais.
O que parecia impossível, naquele domingo de julho, era uma derrota brasileira. Como para mostrar que não se contentaria com um mero empate, o Brasil fez um a zero, logo no primeiro minuto do segundo tempo: gol de Friaça. A taça estava na mão. Só uma catástrofe impediria a festa. Mas o impossível aconteceu: o Uruguai fez 2 a 1, gols de Schiaffino – aos 25 minutos – e Ghiggia, aos 34, naquela arrancada inesquecível que alvejou o sonho brasileiro de glória com um tiro seco e certeiro.
Como bem lembrou o jogador Juvenal, o Brasil, ali, foi campeão do mundo três vezes: quando o placar estava zero a zero, quando estava um a zero para Brasil e quando estava um a um. Três chances imperdíveis! Mas, não. Brasil, campeão do mundo de 1950? Never more, never more - diria o corvo do poema de Edgar Allan Poe.
BRASIL : A TERRA DA REINVENÇÃO
Pelas décadas seguintes, 1950 virou sinônimo de maldição para o Brasil. Aquela decisão deixou de ser um acontecimento meramente esportivo. Terminou produzindo ressonâncias históricas, sociológicas, psicológicas, antropológicas.
O Brasil x Uruguai deixou de ser um jogo. Virou uma lenda. Por quê? Pode-se arriscar uma explicação.
O Brasil – país periférico, agrário, subdesenvolvido - tinha, ali, uma grande chance de mostrar que poderia ser o melhor do mundo num esporte que já apaixonava o planeta. Mas veio o Uruguai, vizinho pequeno e incômodo, para acabar com a festa. Era como se a ambição de grandeza fosse desmentida, no último momento, por um acontecimento inesperado – algo que se repetiria em outros momentos de nossa história ( guardadas as proporções, quem não se lembra da noite de 14 de março de 1985? Tancredo Neves, o primeiro presidente civil depois de duas décadas de poder verde-oliva, vai parar no hospital, trêmulo de febre, horas antes de tomar posse. Só subiria a rampa do Palácio do Planalto morto. E o que dizer da saga de Ayrton Senna – naufragando na curva Tamburello a caminho do título de tetracampeão de Fórmula-Um ? ).
O Brasil teria também, em 1950, a chance de celebrar um traço fascinante do caráter brasileiro: a capacidade de reinventar o que foi trazido de fora. O futebol não é uma invenção brasileira: os ingleses é que o trouxeram para os gramados tropicais. Mas o Brasil teve a capacidade de reinventá-lo – a ponto de “futebol brasileiro” virar uma instituição reconhecida em todo o planeta como sinônimo de “futebol arte” ( aquilo que os europeus chamam de “beautiful game”). A chance se perdeu. ( Igualmente, o Brasil não inventou a música popular – mas foi capaz de produzir um “som brasileiro” que corre mundo ).
O ÚLTIMO GRANDE ACONTECIMENTO DA ERA PRÉ-TV: A IMAGINAÇÃO OCUPA O LUGAR DOS FATOS
O Brasil x Uruguai ganhou status de lenda, também, porque foi pobremente documentado em imagens. Poucos atentam para um fato importante: a Copa de 1950 foi o último grande acontecimento brasileiro antes da chegada a televisão ao país ( a TV Tupi foi inaugurada no dia 18 de setembro de 1950, dois meses e dois dias depois da final Brasil x Uruguai ).
Se aquela partida tivesse sido disputada na era da TV, não sobraria espaço para qualquer dúvida: as imagens documentariam tudo. Basta ver o que acontece nas transmissões de hoje. Mas o que ficou do drama de 1950? Imagens fragmentadas. Não há um registro da partida inteira. Sem as imagens, entram em campo a lenda e a imaginação. O fato dá lugar à fábula.
Como disse Paulo Perdigão, um dos espectadores de 1950 e autor de Anatomia de uma Derrota, o Brasil x Uruguai de 1950 “é um mito fabuloso que se conserva e se agiganta na imaginação popular”.
Talvez esteja aí um dos motivos do fascínio exercido pela Copa de 50: o Brasil x Uruguai não é uma história fechada, lacrada, indiscutível. É um mito que vai passando de uma geração a outra de brasileiros, como símbolo do que o esporte pode ter de mais fascinante e mais dramático: a capacidade de repetir o que a vida pode ter de inesperado, imprevisível, incontrolável.
O Brasil x Uruguai de 1950 parece revelar dois traços do comportamento brasileiro. Um: a imensa dificuldade de aceitar uma derrota. Dois: a extraordinária capacidade de superar um trauma ( depois do naufrágio, como se sabe, vieram cinco títulos mundiais. Não por acaso, os fantasmas de 1950 sempre voltam ao noticiário em época de Copa de Mundo ).
É hora de entregar – simbolicamente – flores para os náufragos do Maracanã: a seleção brasileira que disputou a Copa de 50.
Minha expedição em busca dos onze jogadores brasileiros produziu dois resultados: o livro “DOSSIÊ 50” - agora relançado, em papel, pela Editora Maquinária e, em edição digital, pela E-Galáxia - e um documentário, produzido pela Globonews: “Dossiê 50: Comício a Favor dos Náufragos”. O livro traz todos os depoimentos na íntegra, sem cortes.
Hoje, “estão todos dormindo”, como diria o poeta Manoel Bandeira. Os jogadores de 1950 não viveram para ver o Brasil tentar novamente conquistar, em casa, um título mundial.
Se eles estivessem aqui, bem que o repórter poderia procurá-los de novo. Iria encontrar o goleiro Barbosa, como encontrei, numa roda de amigos numa loja de instrumentos de pesca, numa tarde suburbana em Ramos, Rio de Janeiro:
“A vida tem dessas coisas: o atacante perde dez, vinte gols, mas, se faz um gol numa vitória de 1 a 0, é considerado herói. Já o goleiro, coitado, faz defesas durante 89 minutos, mas, se leva um gol no último minuto, é tido como o carrasco. É assim a vida da gente ( ....) A derrota pesou, porque o título de campeão do mundo pela Seleção Brasileira é o único que consegui na minha carreira. A maior lição que um homem pode tirar de uma derrota é usar os ensinamentos que ela traz, como a necessidade de ser humilde e a capacidade de reagir para procurar uma vitória maior. Cheguei a uma conclusão depois daquela Copa: a humildade é uma das coisas mais sublimes. Minha vida mudou depois de 50. Eu me julgava um sujeito prepotente. Depois, cheguei à realidade: vi que somos o que somos – nada mais! (...) A única coisa que me magoou foi o sujeito não respeitar o meu título de vice-campeão do mundo”.
O zagueiro Augusto – que, como capitão do time, ergueria a taça de campeão do mundo se o Brasil tivesse vencido – recordaria, em casa, na Tijuca:
“Várias vezes sonhei com aquele jogo contra o Uruguai. O placar era sempre diferente, no sonho. A gente ganhava, eu levantava a taça. Quantas vezes eu sonhei....(...) A derrota que ficou foi a de 50. Fui chamado de traidor! Aliás, todos nós: “traidores da pátria” ! Isso saiu nos jornais! Tive essa mágoa da imprensa. Não merecíamos ser tratados desse jeito. Éramos ídolos até a véspera do jogo”.
Juvenal diria, numa mesa de bar, em Salvador:
“A agitação para a final começou já na concentração. Políticos apareciam para tirar foto: um queria ser presidente, outro queria ser governador, outro queria ser vereador...Quando a política se mete no meio, acaba com o futebol. Porque no Brasil só existem três coisas: carnaval, política e futebol.(...) Eu me sentia um soldado defendendo o país. Não é só numa guerra que se defende o país: é nas disputas esportivas também. Perder aquele jogo contra o Uruguai foi como perder uma guerra”.
Bauer constataria, em São Paulo:
“O que aconteceu em 1950 foi o seguinte: nós, os jogadores, fomos envolvidos pela euforia geral durante aqueles três dias – sexta, sábado e domingo. O Brasil já era campeão. O problema, então, foi esse ( ...) Dizem que Bigode levou um tapa. É mentira! Coitado de Bigode, não pode estar numa roda de amigos, porque logo dizem: “Levou – ou não levou – um tapa na cara...”. Ora, se Obdúlio Varela, capitão do Uruguai, desse um tapa na cara de Bigode, no Maracanã, o jogo não terminaria! O time brasileiro iria, todo, para cima de Obdulio Varela!”.
Num apartamento na Lapa, no Rio de Janeiro, o “príncipe” Danilo falaria do assédio:
“Durante toda a semana, estivemos com vários políticos, porque era época de eleições. A gente tirava fotos, conversava com eles. Mas nunca vi uma dessas fotos que nós tiramos, nunca vi ninguém fazer propaganda eleitoral com elas. Depois do jogo contra o Uruguai, devem ter rasgado e jogado fora as fotografias (...) Depois de tudo, quando consegui chegar em casa, foi um problema descer do carro. Quando saltei, parecia que tinha chegado o presidente da República. Vaias, vaias. Era eu. Tive de sair do Rio”.
O lateral Bigode sofreu duplamente com a derrota. Primeiro, foi crucificado porque não interrompeu o avanço do ponta Ghiggia com a bola, no lance do gol. Depois, porque teria levado um tapa de Obdulio Varela, capitão do Uruguai – uma humilhação extra para o Brasil. Mas o tapa parece ser uma calúnia - que Bigode repelia com ardor sempre que se tocava no assunto. Não há imagens para tirar a dúvida. Mas, como bem lembrou Bauer, é improvável que o capitão uruguaio tivesse a ousadia de estapear um jogador brasileiro, numa final de Copa, no Maracanã. Bigode diria:
“Não houve agressão nenhuma de Obdulio Varela! A injustiça maior foi esta, contra mim. Eu sinto até hoje. É uma covardia o que fizeram. Uns dizem que Obdulio Varela cuspiu. Outros, que foi um tapa e eu não reagi. Não houve reação porque não houve agressão! O que aconteceu foi que Obdulio Varela deu um tapinha em mim, pelas costas, para pedir calma. Veio me dizer: “Muchacho, calma!” (...). De uma vez por todas: Obdulio Varela deu um tapinha aqui no meu pescoço para pedir calma. E eu estava olhando para o juiz – para ver se ele iria me expulsar, depois de uma entrada que eu tinha dado num uruguaio. Tentaram me jogar na sarjeta, mas não deixei”.
O ponta-direita Friaça realizou o sonho de todo brasileiro: fazer um gol no Maracanã superlotado, numa decisão de Copa do Mundo. Diria, em Porciúncula, no interior do Rio:
“O trauma da derrota foi enorme. Vim para o Vasco. Fiquei, em companhia de outros jogadores, andando de noite, em volta do campo, ali na pista. O assunto era um só: como é que a gente foi perder? Só me lembro que a gente subiu para o dormitório. Eram umas onze da noite. Tirei a roupa e me deitei. Não me lembro de nada do que aconteceu depois. Quando dei por mim, por incrível que pareça, eu estava em Teresópolis. Só sabia que estava debaixo de uma jaqueira. Não sei como é que saí com meu carro da concentração”.
Zizinho, apontado pela crônica da época como supercraque, chamaria atenção para o papel dos jornalistas:
“A imprensa também cooperou com aquele clima todo de carnaval antecipado. Afinal, quem montou a foto do “Brasil, campeão do mundo” no dia da partida contra o Uruguai foi um jornal. Aliás, a relação com a imprensa mudou nas Copas seguintes. Antes, um jornalista chegava à concentração para fazer uma matéria para o jornal que teria de ficar pronto daqui a pouco. A gente tinha de acordar para fazer a matéria!(...) Houve uma invasão na concentração em São Januário, na véspera do jogo. Não houve concentração para o jogo contra o Uruguai. Não mesmo! Cansei de assinar autógrafos como “Brasil, campeão do mundo”. São Januário estava lotado de gente. Aquilo não era uma concentração: era uma batalha de confetes! (...) Depois, o general Mendes de Morais, prefeito da cidade, jogou essa história em cima da gente: “Dei o estádio a vocês. Agora, quero de vocês o campeonato!” ( as palavras exatas do prefeito são estas: “Cumpri minha promessa construindo este estádio. Agora, façam o seu dever – ganhando a Copa do Mundo”)...Tive vontade de abandonar o futebol depois da Copa do Mundo. Quando ia dormir, tinha um pesadelo. Pensava que o jogo não tinha começado”.
Ademir entrou para a história como o maior artilheiro do Brasil numa Copa do Mundo: nove gols em seis jogos, marca até hoje não superada. Fui encontrá-lo no apartamento em que vivia, em Copacabana. Uma estante exibia troféus que recebeu do Uruguai:
“A Seleção de 50 foi injustiçada. Porque segundo lugar para o Brasil não serve. Quando um amigo me apresenta ao filho, diz: “Ademir – o que jogou na Copa de 50. Sempre dizem: é aquele que perdeu para o Uruguai, no Maracanã ( ...) Tive uma oportunidade de fazer um gol no final. Se sai o gol ali, o Brasil seria campeão. Eu iria me candidatar a deputado, hoje seria ministro de Estado...”.
Jair Rosa Pinto estava na Tijuca, cercado de crianças de uma escolinha de futebol:
“Meu único pensamento, no vestiário, era: “Perdemos a Copa do Mundo!” . Nessa hora, não se olha nem para o companheiro. Porque ele estava chorando. A gente nem pensa na torcida – porque você é que vai receber o diploma de campeão do mundo- não é o torcedor. Você pensa: “Duzentas mil pessoas! E perdemos o campeonato do mundo! “. É difícil. Então, você atravessa aquele túnel, chega ao vestiário, tira a roupa e começa a chorar”.
O ponta-esquerda Chico remoía as lições deixadas por aquele domingo que parecia não ter terminado nunca:
“Tínhamos como certa a Copa do Mundo. Depois da derrota, passamos a ver tudo de outra maneira. Fomos obrigados a aprender o que é o amargor de uma derrota. O maior orgulho de um jogador de futebol é fazer parte do escrete brasileiro – principalmente porque se trata de defender a pátria. Não pude dar a ela o título, mas tenho orgulho de ser vice-campeão. Dei alguma coisa de mim para que, depois, o Brasil fosse campeão”.
Tanto tempo depois, é hora de depositar, em algum recanto do Maracanã, flores imaginárias em homenagem aos que perderam a batalha de 50 mas, por todos os motivos, merecem uma anistia – ainda que tardia.
Já se disse que o Brasil é maníaco-depressivo: passa da euforia à depressão ( e vice-versa ) em questão de dias. A Copa virou um exemplo espetacular dessa gangorra.
Um dia antes de a bola começar a rolar, parecia que a Copa seria disputada em Marte. O entusiasmo era próximo de zero. Pior: as previsões pessimistas apontavam para a possibilidade de um desastre nas ruas, nos aeroportos, nas estradas, nos estádios - com repercussões planetárias. Aconteceu o contrário. Deu tudo certo.
Passei agora por Copacabana e Ipanema: bandeiras brasileiras, argentinas, alemães, holandesas, colombianas tremulam na areia. Turistas por todos os lados. Em bancas de revistas, em rodas nas calçadas, na portaria de prédios, brasileiros tentam adivinhar: o time vai melhorar contra a Colômbia? A Copa já fez este pequeno grande favor ao Brasil: conseguiu - de fato - mudar o humor do país, para melhor. A pergunta que desafia otimistas e pessimistas é uma só: até quando?
(Enquanto divago sobre as euforias e depressões brasileiras, eis que, de repente, ao lado do meu velho Fiat Uno, desponta uma procissão de batedores da Polícia Rodoviária Federal. Um carrão conduz alguém obviamente "importante". Não dá para ver quem é. Os batedores bloqueiam todos os cruzamentos, em direção ao Leblon. Uma ambulância acompanha a comitiva. Quem será? Imagino: o Papa Francisco resolveu voltar de surpresa? Só faltava essa! E se ele for, na surdina, benzer os jogadores argentinos? O carro principal para em frente a um restaurante na avenida Bartolomeu Mitre. Os batedores e a ambulância ficam a postos. De longe, distingo a cabeleira rala do personagem principal, no momento em que ele desce do carro: é Joseph Blatter, o presidente da Fifa. Deve ser ele, sim. "O mundo é uma bola" - já dizia aquele belo samba enredo da Beija Flor. Em tempos de Copa, o presidente da Fifa é tratado como se fosse o Papa ).