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1. Em breve, pretendo dizer duas ou três coisas sobre o (belo) livro "O Réu e o Rei" - de Paulo César de Araújo sobre o Caso Roberto Carlos.
2. Desde já, uma dica: o recém-lançado "O Réu e o Rei" é sensato, bem escrito, bem apurado. Vale ler! Não cai no rancor. Documenta uma proibição absurda.
3. Um dia, a louca censura imposta por Roberto Carlos sumirá na poeira do tempo e da estrada. Feitas as contas, RC vai ser lembrado como grande cantor. E Paulo César de Araújo como autor de uma bela biografia. É um jornalista sério, dedicado, responsável, competente. Não cometeria deslizes - como não cometeu.
4. "O Réu e o Rei" documenta não apenas os bastidores da proibição do livro "Roberto Carlos em Detalhes": é também um registro sobre a trajetória de Roberto Carlos. Há também histórias fantásticas sobre outro recluso célebre- João Gilberto ( e uma penca de grandes nomes da MPB, entrevistados por Paulo César de Araújo para dois projetos de livro ). São vários livros em um só - um bom motivo para que "O Réu e o Rei" seja devidamente devorado.
5. Que se diga de novo: toda a celeuma provocada pela proibição da biografia é cem por cento justificável. O que estava
( e continua ) em jogo é a liberdade de informação. Não é uma mesquinha briga por dinheiro.
6. Em nenhum país democrático do mundo um biógrafo precisa submeter uma biografia à censura prévia do biografado. Isso é coisa de republiqueta bananeira. Todos os países estão errados e só o Brasil certo? Óbvio que não. É justamente o contrário!
7. Dei uma olhada no site da Amazon. Há cerca de oitenta biografias de Mick Jagger. Nenhuma - é claro - foi submetida a ele antes de publicada. Um biógrafo inglês ou americano rolaria no chão de tanto rir se soubesse de tal exigência.
8. Nem tudo é treva e ridículo: meio caminho já foi andado para que a exigência de autorização prévia vá para o lixo. A Câmara já derrubou a exigência. Falta o Senado. O Supremo Tribunal Federal também vai se pronunciar.
9. Rezamos para que o Senado e a ministra Cármen Lúcia não decepcionem o país. Jesus Cristo, Jesus Cristo, nós estamos aqui.
10. Enquanto a absurda censura prévia não for revogada, o Brasil continuará a ser a triste terra da biografia a favor. ( não há outra maneira de definir a tal "autorização" : é censura, sim !). Pior: quantas e quantas biografias importantes não deixaram de ser escritas por conta desse absurdo? Tristes trópicos...
Acorda, Paulo Francis! ( o que ele diria desta discussão toda ?).
Mas...as trevas estão se dissipando aos poucos.
Como se dizia antigamente, "a luta continua".
A luta continua ! "No pasarán !".
Por fim: Roberto Carlos deveria estar ocupado em fazer música - não em perseguir biógrafos. Paulo César de Araújo deveria estar ocupado em escrever - não em comparecer a tribunais.
Emoção em grau máximo: Friaça, o ponta-direita da seleção brasileira de 1950, realizou o grande sonho de todo jogador brasileiro: fez um gol numa final de Copa do Mundo, diante de um Maracanã enlouquecido. O som da explosão da torcida até hoje emociona quando ouvida na narração radiofônica. O Brasil só precisava de um empate diante do Uruguai. Fez um zero. A taça estava ali, ao alcance da mão. O que aconteceu depois todo mundo sabe: Uruguai 2 x 1 Brasil. O que pouca gente sabe é o que aconteceu com Friaça: ficou tão traumatizado que teve um "branco". Só se lembra de ter voltado para a concentração. Depois, quando deu por si novamente, estava debaixo de uma árvore, em Teresópolis, na alta madrugada - uma cena surrealista. Como foi parar lá ? Quem dirigiu o carro? Terá ido sozinho ? Não sabe. O "branco" de Friaça é uma das incríveis histórias narradas pelos próprios jogadores do Brasil de 50 no documentário "DOSSIÊ 50: COMÍCIO A FAVOR DOS NÁUFRAGOS" - que vai ser exibido neste domingo, às sete da noite, com entrada franca, no Espaço Itaú ( Praia de Botafogo ), dentro do Cinefoot - o festival de filmes sobre futebol. O filme não trata de 50 como "tragédia". Pelo contrário: é um pedido de anistia aos jogadores que passaram o resto da vida carregando o estigma de uma derrota - quando, na verdade, tinham dado ao Brasil o primeiro título de importância no cenário internacional - o de vice-campeão do mundo.
Em resumo: tudo indica que o Brasil pagará um mico internacional por não ter sido capaz de terminar, a tempo, obras públicas prometidas para a Copa do Mundo. Em quatro palavras: faltou competência, sobrou ineficiência.
A incapacidade de cumprir prazos - aliás - é um lamentabilíssimo traço brasileiro.
É preciso, no entanto, fazer uma distinção importante: uma coisa é reclamar - por exemplo - contra a vergonhosa qualidade dos serviços públicos ( mal secular desta república ), contra o desperdício de dinheiro ou contra o equívoco de erguer estádios que, provavelmente, se transformarão em elefantes brancos depois que a festa acabar. Outra coisa, bem diferente, é querer o fracasso do Brasil dentro do campo.
Parece ridículo jogar para dentro das quatro linhas uma raiva que, aliás, em 98% dos casos é justificável e compreensível.
Torcer por um fiasco da Seleção é um equívoco bobo. Porque, dentro do campo, o futebol é uma espetacular demonstração de criatividade do brasileiro. Uma vez, tive a chance de fazer uma longa entrevista com João Saldanha, grande ex-técnico da seleção. Guardei uma frase que ele disse: "Nosso futebol é uma expressão da arte popular". Bingo!
Como se não bastasse, o futebol brasileiro é, também, um exemplo acabado de uma das mais belas características desta república banhada pelo Atlântico Sul: a capacidade de reinventar, aqui, o que foi criado "lá fora".
De resto, todos os países querem ser campeões do mundo. Por que o Brasil não iria querer? Por que não "apostar na alegria"? Por que torcer pelo bode, pelo fiasco, pela tristeza, pela derrocada? Qual é problema em querer ser hexa-campeão? Por que dar uma demonstração de "complexo de inferioridade"?
Desde já, torço por uma final épica no Maracanã entre Brasil x Argentina - o jogo do século.
Já estou preparando o coração para aquele momento que se repete de quatro em quatro anos: lá pelas tantas, num jogo difícil, Galvão Bueno exclama "vive um drama a Seleção Brasileira !".
Mas....o gol salvador haverá de vir. Se não vier, não será nenhum desastre. Não haverá - nem de longe - a comoção registrada na derrota de 1950. Ali, o país viu escorrer entre os dedos uma chance até então inédita de mostrar ao mundo que poderia ser o maior e o melhor num esporte que arrebata multidões pelo planeta. Vieram outras chances - devidamente aproveitadas. O futebol brasileiro é pentacampeão.
Vai ter Copa, vai ter gol, vai ter protesto. Só não se deve misturar uma coisa com a outra!
Prefiro apostar na alegria.
PS: E já que o assunto é Seleção Brasileira, tomara que, na Copa, fique "tudo amarelo", tudo "yellow", como na música bonita do Coldplay ( aliás, a reação do público nos primeiros acordes parece gol do Brasil!):
https://www.youtube.com/watch?v=Bxg3wE7cp_M
Jorge Luis Borges, em "Um Ensaio Autobiográfico":
"Não considero mais a felicidade inatingível, como acreditava tempos atrás. Agora, sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la".
Disse tudo.
O que é que o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho poderia ter em comum com Neil Gaiman - o escritor e quadrinista inglês?
Acaba de ser lançado no Brasil, em livro, o texto do discurso que Gaiman fez para os estudantes da University of Arts, na Filadélfia. As palavras de Gaiman fazem sucesso entre a rapaziada. O livro chama-se "Erros Fantásticos: O discurso "Faça Boa Arte" - de Neil Gaiman".
Há uma ou outra "platitude", mas, em resumo, ele diz:
"Eu observava meus colegas, amigos e pessoas mais velhas e via quanto alguns eram infelizes: escutava quando me diziam que não conseguiam mais enxergar um cenário em que fariam o que sempre quiseram, porque àquela altura precisavam ganhar todo mês certa quantidade de dinheiro só para se manterem na posição em que estavam".
"Não podiam fazer o que importava, o que realmente queriam. Isso me pareceu tão trágico quanto qualquer problema no fracasso. Além disso, o maior problema do sucesso é que o mundo conspira para que você pare de fazer o que faz, só porque é bem-sucedido".
"Um dia, ergui os olhos e me dei conta de que tinha me tornado alguém cuja profissão era responder e-mails e, nas horas vagas, escrevia. Passei a responder menos mensagens e descobri, aliviado, que estava escrevendo muito mais ( ...)"
"A vida às vezes é dura. As coisas dão errado, na vida e no amor e nos negócios e nas amizades e na saúde e em todos os outros aspectos que podem dar errado. Quando as coisas ficarem complicadas, é assim que você deve agir: faça boa arte. É sério
(...). Faça o que só você faz de melhor (...) Faça aquilo que só você pode fazer".
"O impulso, no começo, é copiar. Isso não é ruim. Muitos de nós só encontraram a própria voz depois de soar como várias pessoas. Mas a única coisa que só você e mais ninguém tem é você. Sua voz, sua mente, sua história, sua visão (....)"
"Meus projetos que melhor funcionaram melhor foram aqueles dos quais eu estava menos certo(...). Mas qual deve ser a graça de fazer o que você sabe que vai dar certo ? E, algumas vezes, o que eu fiz não deu nada certo. Aprendi com elas tanto quanto com as que funcionaram( ...) Cometam interessantes, impressionantes, gloriosos, fantásticos erros. Quebrem regras. Deixem o mundo mais interessante por estarem nele".
Como disse, ao longo do discurso há uma ou outra declaração de princípios que pode lembrar aquelas lastimáveis performances de animadores de funcionários de corporações - mas, na essência, Neil Gaiman toca no que interessa: "Faça aquilo que só você pode fazer".
O importante é apostar no incerto, cometer erros "gloriosos".
Thank you, mr. Gaiman.
Eu me lembrei da pregação de Gaiman ao ver um documentário recém-lançado, em que o personagem principal é o documentarista Eduardo Coutinho.
Título: "Coutinho - sete de outubro", em cartaz em regime de pré-estréia no Instituto Moreira Salles, no Rio. Ao contrário do que fazia habitualmente, dessa vez o cineasta Eduardo Coutinho fica diante da câmera para dar uma entrevista, conduzida pelo realizador do documentário, Carlos Nader. É como se Coutinho se transformasse em personagem de Coutinho. Bola na rede.
( O depoimento foi gravado quatro meses antes da morte de Coutinho - uma daquelas tragédias que nos deixam mudos ).
Lá pelas tantas, Coutinho fala sobre o "prazer indizível" que é fazer um determinado filme num determinado momento num determinado lugar. É como se dissesse que a aventura do cinema
precisa - necessariamente - ser pessoal e intransferível. Só assim vale a pena. Não pode ser delegada a outros. Porque outro realizador faria de outra maneira. A regra vale, claro, para documentários - o território que Coutinho elegeu para transitar.
O ( belo ) depoimento de Coutinho aponta para um caminho: o ato de fazer um filme deve ser revestido de uma devoção quase religiosa. Fazer ou não fazer passa a ser, nos delírios do realizador, uma questão de vida ou morte ( a atitude aplica-se não apenas a filmes, claro, mas a qualquer "aventura" do tipo ).
Em resumo: "Faça aquilo que só você pode fazer".
Somente Eduardo Coutinho poderia fazer os documentários de Eduardo Coutinho. Não é, óbvio, o único caso de cineasta com marca pessoal, mas o que ele diz, na entrevista, marca uma posição, um tardio mas bem sucedido "projeto de vida".
É óbvio que noventa e nove vírgula noventa e nove por cento dos terráqueos permanecerão absolutamente indiferentes ao fato de que um filme "x" sairá ou não do papel, mas o realizador precisa criar a ilusão de que aquele filme é indispensável, é indispensabilíssimo - nem que seja para ele mesmo. Pouco importa - aliás - que o resultado seja eventualmente precário ou aparentemente banal. Não é este o "ponto". É o que Coutinho diz, com outras palavras,no depoimento.
A situação pode soar surrealista mas é assim: um personagem anônimo - como os que povoam os filmes de Coutinho - poderia, claro, ser filmado "n" vezes. Não haveria qualquer dificuldade. As situações eram, em tese, perfeitamente "repetíveis" - mas, como princípio, Coutinho se convencia de que tudo teria de acontecer , necessariamente, ali, naqueles trinta, quarenta ou sessenta minutos diante do entrevistado: o desnudamento, as revelações, a confissão. É uma sensação que, a rigor, move todos os entrevistadores. Coutinho cumpria este mandamento ao pé da letra, diante de personagens anônimos que ia encontrando em apartamentos de Copacabana, morros da zona sul, casebres no sertão. Diz, no documentário, que evitava ouvir figuras públicas ou gente que ele próprio conhecia. Não ia dar certo.
As palavras de Coutinho no documentário soam fortes: resumem a necessidade de quimeras pessoais numa época dominada pela uniformidade mediocrizante.
Já estou soando como crítico de cinema. Não sou. E foi bonito ver a plateia aplaudindo Coutinho no fim do filme.
Palmas para ele. É uma grande lástima que uma carreira que, como ele dizia, começou tarde tenha sido violentamente interrompida. "A morte é uma piada. A vida é uma tragédia. Mas, dentro de nós, mesmo no maior desespero, há uma força que clama por coisas melhores", já dizia Paulo Francis.
Em última instância, "clamar por coisas melhores" é o que faz quem, como Coutinho, apostava numa aventura pessoal. Já é tarefa para uma vida.
Cena explícita de capitalismo selvagem no supermercado ZonaSul, agora há pouco, na filial da rua general Artigas, no Leblon ( ou será cena selvagem de banditismo explícito ? ): o locutor-que-vos-fala vai ao caixa, com um punhado de latas de Coca-Cola. A atendente, simpática, checa pacientemente a temperatura de cada lata, antes de dizer: "Vai levar gelada ?". Pergunto se há diferença.
Há, sim, informa ela: a Coca-Coca "natural" custa R$ 1,69. A mesmíssima, gelada, é R$ 3,50. Pensei que tinha ouvido mal. A moça confirma. A lata gelada custa, sim, o dobro do preço ! Vale repetir, para quem não entendeu direito: o dobro ! Nada justifica diferença de preço tão escandalosa. Nada.
Fico imaginando: o que leva um supermercado a cobrar o dobro do preço por um produto, apenas porque ele ficou guardado numa geladeira ? E trata-se de uma grande rede de supermercados - o ZonaSul. O que não acontecerá com outros produtos, neste e em outros supermercados ?
Faço os cálculos: o Brasil vai levar 435 anos, oito meses e vinte e oito dias para ser levado a sério - pelo menos enquanto conviver com atitudes predatórias como esta como se fossem as coisas mais normais do mundo.
PS: Uma pequena diferença de preço poderia, até, ser justificada pelo gasto de energia com a refrigeração. Mas o dobro ? Que economista seria capaz de explicar tal investida no bolso do consumidor ?
O Brasil dará um salto civilizatório de cem anos no dia em que abolir o voto obrigatório. Voto é opção: vota quem quer. Em nenhum país civilizado do planeta o cidadão é obrigado a votar. Se fosse feito um Campeonato Mundial de Estupidez, o voto obrigatório e a censura prévia a biografias estariam empatados em primeiro lugar - com todos os méritos.
Dúvida boba que me assalta há décadas: quem inventou que escritores
( alguns, até bons ) devem botar a mão no queixo ou na bochecha nas fotos feitas para as orelhas dos livros ? Quem ? Quem ? É para parecer com O Pensador - de Rodin ? É um mensagem cifrada ? É uma senha enviada para ETs ? Já me resignei: vou morrer sem saber.
Dúvida boba que me assalta há décadas: quem inventou que escritores
( alguns, até bons ) devem botar a mão no queixo ou na bochecha nas fotos feitas para as orelhas dos livros ? Quem ? Quem ? É para parecer com O Pensador - de Rodin ? É um mensagem cifrada ? É uma senha enviada para ETs ? Já me resignei: vou morrer sem saber.
Vem aí o inverno. Adeus, calor. Ainda bem. Assim, um dos assuntos mais chatos da história da humanidade desaparecerá da pauta jornalística: o debate sobre se marmanjos devem ou não ir trabalhar de bermuda. É óbvio que não. A espécie humana já sofreu demais. A catálogo de horrores é infinito. Já não bastam os massacres, as guerras, os preconceitos, os ex-BBBs, as mulheres-fruta e os cantores de pagode com gel no cabelo ? Para que castigar olhos indefesos com um patético desfile de pernas cabeludas em pleno ambiente de trabalho ? Ah, não. Em nome de todos os santos: não.
Faz exatamente duas semanas eu caminhava num fim de tarde pela avenida Paulista quando vi uma pequena aglomeração na calçada. Paro para ver o que era. Dentro de um pequeno estúdio, à vista de quem transitava pela calçada, Jair Rodrigues dava uma entrevista ao vivo para a Bandnews FM sobre o disco que acabara de lançar. Boys, balconistas, funcionários em trânsito param para ouvir. Uma moça diz à amiga: "É Jair Rodrigues!". Tira o celular do bolso, faz uma foto. Vários dos espectadores repetem o gesto. Jair Rodrigues fala animado, canta trechos de músicas, faz aqueles gestos largos que pontuavam suas frases - como se estivesse permanentemente tentando esgarçar os músculos. Quinze dias depois, estaria morto: enfarte fulminante. Fico imaginando: se fosse possível saber a data da morte, com exatos quinze dias de antecedência, o que cada um faria ? Minha opção seria a menos barulhenta possível: um livro nas mãos, num território remoto. That´s all.
Não é todo dia que se lê nos jornais uma notícia boa. A de hoje vale por dez: "Câmara libera biografias sem a autorização do biografado".
O autor do projeto de lei - Newton Lima ( PT-SP ) - foi exemplarmente claro ao declarar:
- Em nenhum país livre do mundo, a elaboração de um livro requer autorização de quem quer que seja. Isso fere a Constituição.
Agora, é a vez de o Senado se manifestar. Ou seja: o país torce para que o Senado repita o que a Câmara fez. E o Brasil estará - finalmente - livre de uma aberração jurídica que nos cobre de vergonha.
Ninguém precisa de bola de cristal para prever: é provável que haja alguma confusão na Copa do Mundo. Há motivos reluzentes para reclamações, é claro: custos além dos previstos, atrasos absurdos na execução de obras que deveriam desde já beneficiar a população, prováveis superfaturamentos, aeroportos calamitosos, estádios que terão destino incerto depois que a festa acabar, ingerências absurdas da Fifa ( um jornal publicou que, na decoração das ruas, ninguém pode, por exemplo, usar a expressão Brasil 2014, patenteada pela Fifa....Parece piada). Descontados eventuais absurdos extra-campo, a Copa do Mundo é uma bela e empolgante disputa. Não vejo motivo para torcer contra o Brasil. Qual o mal que um título conquistado em casa poderia fazer ao país ?
Ressuscito, em meus arquivos não tão implacáveis, um texto sobre o dia em que um menino de doze anos - o locutor-que-vos-fala - correu atrás do ônibus da seleção:
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O autor da melhor definição já escrita sobre futebol é um ilustríssimo desconhecido. Seja lá quem for, merece ser entronizado quem resumiu em apenas doze palavras esta paixão tão avassaladoramente brasileira:
- Das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante…
Noventa e cinco por cento dos brasileiros devem ser adeptos desse mandamento.Os cinco por cento restantes não nasceram ainda.
Quero fazer uma confissão: eu estava banhado de suor no exato momento em que descobri que “das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante”.
Não, eu não estava disputando uma final de campeonato. Como um celerado, eu corria desembestadamente atrás do ônibus da seleção brasileira, na avenida Rosa e Silva, no Recife, no já remotíssimo ano de 1969.
Em minhas mãos, carregava uma folha de papel em branco. Não estava à procura de nenhuma declaração, não esperava por nenhuma entrevista. Nem sonhava em ser repórter. O que eu queria – como, provavelmente, todo menino brasileiro apaixonado por futebol – era um autógrafo de um dos meus ídolos.
Fui a pé de minha casa até o estádio do Náutico, na avenida Rosa e Silva. Uma multidão de torcedores esperava pela chegada da seleção, para o treino. Lá vem o ônibus. Tumulto. Gritaria. Empurrões.
Eu me lembro de ter visto Tostão e Clodoaldo acenando na janela. Ou terá sido Gérson? Quem sabe, Jairzinho. Não importa: os craques dos meus times de botão estavam ali, materializados, a dois palmos de distância.
O treino ia ser fechado. Mas eram tantos os torcedores correndo atrás do ônibus que a Federação resolveu abrir os portões do estádio.
Aquele punhado de fanáticos teve, então, o privilégio de assistir a um treino da seleção que, meses depois, entraria para a história do futebol mundial nos gramados do México como o melhor time de futebol de todos os tempos.
O que diabos eu estava fazendo na arquibancada do estádio dos Aflitos, na manhã de um dia de semana? Aos doze anos de idade, eu estava descobrindo que o futebol é a mais importante das coisas menos importantes da vida.
Dizem que a gente só guarda na memória rostos, datas e nomes que, por um ou outro motivo, nos são realmente importantes. O trator dos neurônios soterra o resto.
Pois bem: meu professor de desenho no Colégio São Luís – que Deus o perdoe – passou o ano tentando me fazer entender que “o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”. Eu passei o ano preocupado com outro problema: o Sport Club do Recife, afinal de contas, ia ou não barrar a caminhada do Náutico rumo ao título de heptacampeão pernambucano? O meu time de botão ia ou não ganhar o dificílimo campeonato que a gente organizava na rua Dom Manoel da Costa, no bairro da Torre?
Enquanto o professor – com cara de zagueiro alemão – tentava me familiarizar com o fantástico mundo da geometria, eu ficava pensando com meus botões: quem é hipotenusa? O que significa cateto? Onde fica a saída, pelo amor de Deus? Cadê o meu timaço de botão?
Hoje, séculos depois, declaro-me formalmente incapaz de explicar o que significa a soma dos quadrados dos catetos - mas sei de cor a escalação do time do Sport: Miltão; Baixa, Bibiu, Gílson e Altair; Válter e Vadinho; Dema, Zezinho, Acelino e Fernando Lima. Não preciso consultar nenhum jornal antigo para recitar de trás pra frente a escalação do meu time de botão – o Palmeiras de 1968: Perez; Scalera, Baldochi, Minuca e Ferrari; Dudu e Ademir da Guia, Gildo, Sevílio, Tupãzinho e Rinaldo. Eis uma prova matemática dessa verdade fundamental: das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante. Se não fosse, eu não teria guardado tantos nomes.
O meu exercício de memória, obviamente, não vale nada. Mas o que é a vida, se não uma coleção de gloriosas inutilidades ? Sou igualmente capaz de recitar o meu time de botão do Botafogo de 1969: Cao, Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César. É pouco? Lá vai o time do Santos: Cláudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manoel Maria, Toninho, Pelé e Edu.
Minha memória sepultou no cemitério dos esquecimentos todo o palavrório que meu professor mobilizou na inglória missão de me apresentar aos mistérios dos catetos e hipotenusas. Não tive coragem de dizer a ele, mas, desde o primeiro dia de aula, eu tinha certeza absoluta de que o futebol era mais importante do que a soma dos quadrados dos catetos. Não me perguntem por quê. Eu era um menino brasileiro. Não se deve pedir explicação a nenhum menino brasileiro apaixonado por futebol.
Esquecido das hipotenusas, guardei na memória duas cenas do dia em que corri desembestado atrás do ônibus da seleção brasileira. Primeira cena: Clodoaldo saiu de campo chorando, machucado. Segunda cena: termina o treino. Nós, os desocupados meninos do Brasil que saímos de casa numa manhã de dia de semana para correr atrás do ônibus da seleção, tentávamos agora vislumbrar por uma fresta numa das paredes do estádio nossos craques se preparando para ir embora. Parecia filme de Fellini. Nós nos revezávamos no posto de observação. Cada um podia olhar por cinco, dez segundos o que estava acontecendo no vestiário dos nossos deuses. Quando chegou minha vez, o que vi? Clara, nítida, diante de mim, a imagem do Rei Pelé ensaboado da cabeça aos pés. O Rei estava nu.
Quando os jogadores voltaram para o ônibus, pararam para saciar nossa fome de autógrafos. Devo ter guardado em algum lugar esta relíquia. Onde estará este meu pequeno tesouro, pessoal e intransferível ? Lá estão os autógrafos de Tostão, Rivelino, Brito, entre outros que terminaram ficando no caminho, na odisseia rumo ao México – como Paulo Borges, ponta-direita do Corinthians.
A seleção que foi treinar no campo dos Aflitos trazia as estrelas que reluziriam na campanha do México: Félix, Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho,Tostão e Pelé. Quando o ônibus partiu, repetiu-se a gritaria, o tumulto, a vibração, os acenos. Nova correria atrás do ônibus.
O que terá acontecido naquele ano na vida do menino brasileiro apaixonado por futebol ? O meu professor de desenho me reprovou, é claro. Meu pai me deu uma bronca de dimensões bíblicas: disse que eu passaria os próximos meses proibido de ir ao estádio. O meu time do Palmeiras perdeu o campeonato da rua Dom Manoel da Costa na penúltima rodada. O juiz com certeza deve ter roubado. O Santa Cruz – tragédia – venceu o campeonato pernambucano. O Sport ficou a ver navios, na Ilha do Retiro.
O menino brasileiro – um entre milhões – aprendeu ali que a vida é feita também de derrotas, fracassos, reprovações. Mas é também feita de lembranças que só aparentemente são desimportantes. Uma paixão infantil pelo escrete deve ter começado ali, na corrida atrás daquele ônibus.
Então, dou um conselho aos meninos brasileiros: corram atrás do ônibus da seleção, se tiverem a chance. Ou do carro de bombeiros no desfile da vitória. Quantas lembranças, quantas paixões pelo escrete não surgirão entre esses meninos que correrão, desembestados, com uma folha de papel em branco nas mãos ?