Recomendado: depois de duas décadas, Carlos Vereza resolveu voltar - em dose tripla - aos palcos. É autor, diretor e ator da peça "O Teste".
Vai reestrear, nesta sexta-feira, no Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico. A temporada segue às sextas, sábados (21h) e domingos (20h). Fui ver quando a peça fez uma primeira temporada, na Barra. Em uma frase : vale a pena !
Vereza , nos palcos e nas telas, sempre foi sinônimo de intensidade. Para completar,a atriz Carolinie Figueiredo é uma bela surpresa.
É a história de um cinegrafista "decadente" que trabalha numa dessas produtoras que oferecem promessas de emprego a candidatas a atrizes.
Estudantes de jornalismo de Belo Horizonte - repórteres do jornal Contramão - me pedem um depoimento sobre aquele velho senhor, o Jornalismo. Primeiro, penso com meus fatigados botões: "Vocês não tinham ninguém melhor para entrevistar ?".
Ainda assim, topo o convite. Como conheço o bicho ( ou seja: o tal do Jornalismo ) há décadas, tento balbuciar digo duas ou três coisas sobre ele. Tipo: toda entrevista precisa ser - necessariamente - exploratória. Não pode ser congratulatória.
Entrevista em que entrevistador e entrevistado ficam trocando congratulações é, em geral, constrangedora.
Ou : sem qualquer pretensão, prefiro não me enquadrar no "universo mental" do jornalista clássico. Porque "jornalista clássico" é aquele que, depois que fica velho ou vira chefe, passa a vida jogando no lixo o entusiasmo dos repórteres. Estou fora:
Fernando Gabeira foi contratado pela Globonews. Fez para o Jornal das Dez deste domingo uma primeira reportagem - sobre o sumiço do pedreiro Amarildo, na Rocinha. Vai fazer um programa semanal.
Aos 72 anos, tinha tudo para ser um "figurão". Poderia ficar no "conforto" do ar-condicionado. Mas não: numa conversa de corredor, foi logo me dizendo que não gosta de ficar em redação. Prefere botar o pé da estrada.
Ainda bem !
Além de repórter, Gabeira é o cinegrafista de suas reportagens: bota a câmera debaixo do braço e vai sujar os sapatos na poeira.
É o que se chamava antigamente de jornalismo.
Confesso uma leve estranheza por ter, como "colega de redação", alguém que foi personagem de um livro que publiquei nem faz tanto tempo : o "DOSSIÊ GABEIRA" ( http://goo.gl/DsglO ).
O livro nasceu de uma uma entrevista de horas e horas e horas que gravei com Gabeira, num hotel em Ipanema: um balanço das tempestades que ele atravessou.
O que me fez procurar Gabeira para a entrevista que virou livro foi apenas a curiosidade de repórter (*) .
Agora, é bom ver o próprio Gabeira dedicado à reportagem, depois da expedição pela política.
Com toda razão, Gabeira não quer ser visto eternamente como o ex-guerrilheiro. Chega. Basta. Já foi.
Uma passagem do DOSSIÊ GABEIRA trata da quase-morte do guerrilheiro. Baleado em São Paulo por dois "agentes da repressão", Gabeira tinha certeza de que iria morrer. Pensou, então, numa morte gloriosa.
Um trecho do nosso DOSSIÊ :
"Enquanto via o sangue lhe escapar do corpo pela ferida, o guerrilheiro Fernando Gabeira começou a viver o que hoje parece a cena de um delírio. Era como se estivesse encenando, como ator principal, uma daquelas sequências em que o fotógrafo do filme usa um filtro para deixar a imagem propositadamente embaçada.
A diferença é que a cena que Gabeira protagonizou era dramaticamente real: caído no chão, já sem forças para recomeçar a fuga, viu desfilar, diante dos olhos, a imagem de líderes revolucionários que tinham perdido a vida para tentar salvar esta entidade incerta chamada América Latina.
Tinha certeza de que iria morrer. Se era assim, se o destino estava selado, se a vida se esvaía naquelas golfadas de sangue, já não poderia fazer nada, além de tentar dar um tom grandioso ao último ato.
Não queria que a morte se consumasse, anônima, num chão de terra batida numa tarde de sol suburbana. Ah, não. A aventura em que ele tinha embarcado para tentar salvar o Brasil não poderia terminar daquele jeito: anônima, inglória, misturada a sangue e areia, varada de balas.
Era preciso dar um toque épico à própria morte, imaginar um fim heroico para um filme que parecia condenado a terminar melancolicamente, numa sessão vespertina de cinema de subúrbio, sem platéia, sem aplausos, o silêncio quebrado apenas pelo estampido das balas disparadas por um dos agentes que o perseguiam.
Gabeira agarrava-se à imaginação – o último recurso que lhe restava. Fazia o papel de um alpinista que, em queda livre, estendia as mãos para tentar alcançar uma corda invisível no ar.
Imaginou, então, hordas de estudantes fazendo um minuto de silêncio para homenageá-lo, a multidão cantando, quem sabe, os versos do poeta Capinam na letra de Soy Loco por Ti América: “Espero a manhã que cante/ el nombre del hombre muerto/ Não sejam palavras tristes/ soy loco por ti de amores/ Um poema ainda existe com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra/ Quem sabe, canções do mar/ ai, hasta te comover/ ai, hasta te comover”
Como acontecia naquelas manifestações contra a ditadura, um estudante gritaria com um megafone o nome do novo mártir: “Fernando Gabeira!”. A multidão responderia: “Presente!”, “presente!”, “presente!”. O chão da Candelária iria tremer. Richard Nixon, a tua hora vai chegar! Sim, Richard Nixon, o presidente dos Estados Unidos: aquele que, ao saber que o embaixador americano tinha sido seqüestrado num bairro do Rio de Janeiro, teria perguntado, cheio de espanto, ao secretário de Estado, William Rogers: “Que merda é essa, Rogers?”.
A merda é essa, Rogers: o corpo baleado de Fernando Gabeira vai incendiar corações e mentes, vai acender um rastilho de pólvora pelos campos e cidades desta república sul-americana, vai servir de guia na caminhada de operários e camponeses rumo ao destino inevitável, hasta la vitória, siempre.
Depois de ter participado do sequestro do embaixador americano, Gabeira estava em São Paulo para cumprir, na clandestinidade, uma missão que, tempos depois, já na época da abertura política, seria desempenhada por um sindicalista barbudo chamado Luiz Inácio Lula da Silva: agitar o operariado do ABC paulista. Mas a bala certeira atrapalhou tudo.
O agente que tinha atirado aponta novamente a arma para Gabeira. Quer dar o tiro de misericórdia, liquidar a fatura, acabar logo com aquela brincadeira brutal de esconde-esconde. Mas o outro impede: não, é melhor levar o bicho para o Hospital das Clínicas. A dupla joga o prisioneiro no banco traseiro de uma caminhonete Veraneio. Toca para o pronto-socorro.
A trilha sonora bem que poderia ser uma voz sussurrando os versos engajados que Ferreira Gullar: “Teu fim está perto/não basta estar certo/para vencer a batalha/Ernesto Che Guevara, não estejas iludido/a bala entra em teu corpo/como em qualquer bandido/Ernesto Che Guevara, é chegada a tua hora/e o povo ignora se por ele lutavas”.
A visão, turva, enxerga agora luzes brilhando lá no alto. Deve ser o “precipício de luzes” da canção. Deve ser. Mas, não: são as luzes do teto do corredor do hospital – que agora desfilam diante dos olhos semi-cerrados do guerrilheiro estendido numa maca. “Num precipício de luzes/ entre palmeiras/ trincheiras/ canções de guerra/ quem sabe, canções de mar”.
Fernando Gabeira só se lembra da voz firme de um médico: “Nome? Ocupação? ”. Ainda encontra forças para responder: “Ocupação: guerrilheiro!”. Os policiais que o cercam riem. A morte arde. Gabeira finalmente desmaia, dopado, a caminho da mesa de cirurgia".
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(*) Nota de pé de página: sempre fui admirador da tribo dos que preferem acreditar que jornalismo se faz na rua. Bem ou mal, jogo nesse time. Considero perdido para sempre cada minuto que desperdicei no jornalismo em outras atividades fora da reportagem. Nunca quis ser chefe de ninguém. Jamais tive interesse por cargos. "A bem da verdade", vivi um pequeno desastre profissional: passei anos e anos e anos no veículo errado - a TV. Paguei um preço pelo equívoco : o de ter perdido um tempo irrecuperável. Quando o assunto é profissão, já deu para notar, sou um péssimo gestor de mim mesmo. É tudo uma questão de vocação: a minha sempre foi a de "repórter da imprensa escrita", desde as priscas eras no Diário de Pernambuco, há quatro décadas...Não deveria ter saído de jornal. Por puro acidente, caí em praias televisivas. Mas tudo bem. A essa altura do carnaval, é tarde para rodar o pires na praça. O corvo de Edgar Allan Poe me sopra, ao pé do ouvido: "Nunca mais, nunca mais, nunca mais". Como sempre, a razão fica com os poetas: Drummond já dizia que a vida não passa de um "vácuo atormentado, um sistema de erros". Bingo. Vale para a profissão, também. Mas devo confessar: quando já conto os minutos para pendurar as ferraduras, fico intimamente comovido ao testemunhar,no Gabeira repórter, um ânimo de estagiário. Próxima pauta, por favor.