Uma cena que ( não há outra palavra !) causa nojo e indignação:
um delegado-tiranete da Polícia Federal confiscando, ilegalmente, equipamento de jornalista que estava a serviço do Conselho Indigenista Missionário. As imagens foram postadas no Youtube.
Em suma: num país sério, quem deveria ir para cadeia é um delegado que imagina que o Brasil ainda vive sob as patas da ditadura. É de dar ânsia de vômito a suposta ironia do delegado.
As imagens falam :
Pode existir algo tão inútil quanto a poesia ?
“Não !”, sussurra o interlocutor imaginário, enquanto percorre um sebo em busca de versos escondidos sob a poeira. “Não pode existir nada tão inútil – nem tão indispensável”.
Bingo.
Quem faz poesia hoje ? Quem publica ? Pouca, pouquíssima gente. Numa era tão medíocre quanto a nossa, a poesia nunca foi tão inútil nem, em consequência, tão indispensável. Assim caminha a humanidade.
O Dossiê Geral faz uma pausa para celebrar dois poemas.
O locutor-que-vos-fala, consumidor eventual de versos, sócio do clube dos seguidores de Vladimir Maiakóvski, Walt Whitman, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Ferreira Gullar & cia ilimitada, teve uma surpresa tardia esta semana.
Recebi, em Brasília, um exemplar de um livro publicado já há quatro anos. O título: “Perfume de Resedá”. O autor: Paulo José Cunha. A Editora: Oficina da Palavra ( Piauí ). “Perfume de Resedá” é um poema de 111 páginas que se lê “de um fôlego só”, como se dizia antigamente.
O autor, jornalista, passou vinte e cinco anos – um quarto de século ! – sem publicar versos. O silêncio deve ter feito bem ao poeta. Porque Paulo José Cunha conseguiu produzir, em “Perfume de Resedá”, um belo poema, totalmente inspirado em lembranças de uma infância e uma juventude vividas em paisagens piauienses que, certamente, já foram riscadas do chamado “mundo real”, mas sobrevivem naquele território pétreo e inviolável que todos carregam dentro de si: a memória.
Lá vem ela, a fera onipresente : a memória. Em “Perfume de Resedá”, a memória se transforma em belos versos. É o que basta. Para que mais ?
Trechos pinçados do mergulho nas páginas do livro:
“…e naquela noite
as redes recolheram do fundo do rio
cardumes de versos e cantigas”
——-
“daqui a pouco o sol
não estará mais aqui
nem a linha de cerol
e os papagaios
que sumiam do céu
(como aquele sura azul de gladstone
que até hoje vaga entre crateras lunares )”
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“mesmo a mais severina das fomes
termina um dia
embebida na memória
e se presta quando nada
ao ofício inútil dos poetas “
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“ficou-me
na concha da mão
apartada a escória
estes grãos de ouro
que guardo de cor
para recitar
em noites de insônia”
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“mães e meninos
entanguidos pela caatinga
olhos ressequidos
apoéticos
difíceis de pegar rima”
—————————
Por algum motivo, o locutor-que-vos-fala se lembrou de outro belo poema nascido do fogo da memória do poeta Jaci Bezerra, alagoano há décadas radicado no Recife. Chama-se “Inventário do Fundo do Poço”. É parte do livro “Comarca da Memória”.
Um trecho de “Inventário do Fundo do Poço” fecha esta pequena expedição ao território dos versos e das memórias:
“O rosto do meu pai, amarga ausência que jamais alcanço,
à noite me acalanta na antiga cadeira de balanço.
(…) Minha infância, doente, se extraviava em corredores escuros,
e eu sonhava, insone, com as belezas do mar que ardia atrás dos muros.
O adulto que sou continua a cultivar no coração a insônia
dos quintais dessa infância, incendiada de verões e begônias.
(…) Na geografia do meu coração guardo um país que pouca gente nota
e um mapa de sonhos tatuado a giz nas asas das gaivotas.
(…) Tudo me dói como o mar, luminosíssima e constante presença,
farfalhando no meu coração com o rumor luminoso das avencas.
(…) Depois, no silêncio do quarto, para esquecer antigas cicatrizes,
sonhava com viagens e me perdia no azul de outros países.
(…) Recordo, hoje, que, nessa e em mais distante época, minha mãe queria
que o seu menino crescesse para ser alguém um dia.
Minha mãe não sabia, nem eu, que outro e bem melhor destino
teria sido eu ter ficado para sempre menino.
Tudo isso penso à noite, quando me dói a luminosa mágoa
e o coração, igual a um peixe, soluça dentro d`água”.
Para fechar, por ora, o capítulo UNB/Garrafas ao Mar/Darcy Ribeiro ( ver post anterior ) :
depois da exibição do documentário sobre Joel Silveira, no auditório da Faculdade de Comunicação, recebo de presente um livro comemorativo dos cinquenta anos da UNB. Chama-se "História Contada".
Lá estão, não por acaso, belas palavras de Darcy Ribeiro, o primeiro reitor da Universidade de Brasília:
"Não nos esqueçamos de organizar a defesa das instituições democráticas contra novos golpistas militares e civis, para que em tempo algum do futuro ninguém tenha outra vez de enfrentar e sofrer e depois esquecer os conspiradores, os torturadores, os censores e todos os culpados e coniventes que beberam nosso sangue e pedem nosso esquecimento".
Uma notícia rápida: nesta sexta, nosso documentário GARRAFAS AO MAR, sobre Joel Silveira, maior repórter brasileiro, foi exibido no auditório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília,a UNB.
Um momento que me emocionou profundamente foi ouvir a voz de Darcy Ribeiro logo no início do documentário ecoando naquela sala lotada de estudantes.
Um pequeno momento que valeu a viagem a Brasília.
Para quem não viu o documentário: Darcy,um dos criadores da Universidade, diz que é uma ofensa ver um jovem desiludido com o Brasil.
Faz uma declaração de princípios comovente : diz que, uma a uma, as causas que ele defendeu ao longo da vida fracassaram
( como salvar os índios, fazer uma reforma agrária ou criar uma educação pública digna deste nome ) mas pouco importa. O que ele não queria era estar do lado dos vencedores.
Em suma: as causas perdidas podem ser as melhores.
Sempre foi assim.
Ouvir a declaração de princípios de Darcy Ribeiro, ali, no meio dos estudantes, foi comovente.
Nem preciso falar das palavras generosíssimas que ouvi de um dos maiores documentaristas brasileiros, o grande Vladimir Carvalho.
Nunca tinha ido ao campus da UNB.
Não vou esquecer o que vi lá hoje.
Se eu fosse sociólogo, faria uma tese sobre uma característica essencialmente brasileira: a incompetência simpática.
O Rio de Janeiro resume este espírito. Nada funciona direito. Ninguém chega na hora.Tratos (comerciais ou pessoais) são desrespeitados.
A qualidade do serviço é das piores do planeta. Mas haverá sempre um meio sorriso nos lábios,um tapinha nas costas,uma tirada engraçada.
É bem diferente da eficiência antipática de outros povos. Nosso problema é a SIS (Síndrome da Incompetência Simpática), doença epidêmica aqui instalada há séculos, sem perspectivas imediatas de cura.
Deus do céu, protegei-nos deste vírus, amém.
Aviso aos nevegantes, especialmente jornalistas, iniciantes ou dinossauros: GLOBONEWS reexibe neste sábado,às 21:30, na Faixa Acervo, entrevista completa com um dos pais do Novo Jornalismo, o célebre Gay Talese. O que Talese diz vale por uma "aula de jornalismo".
Por exemplo: confessa que não teria o menor interesse em entrevistar grandes astros do cinema, porque vivem repetindo o que assessores de imprensa lhes sopram. Dificilmente pronunciam alguma coisa relevante. Talese é daqueles que acreditam que a gente anônima pode ser - e é - dez vezes mais interessante que as chamadas "celebridades". Bingo.
Basta ver a maioria das entrevistas com celebridades: em geral, são um desfile constrangedor de obviedades, insufladas por repórteres-vôlei. Ou seja: aqueles que vivem levantando a bola para o entrevistado. Trágico, trágico, trágico.
Talese fala do personagem de uma das primeiras reportagens que fez: ao transitar por uma rua de Nova York, ficou imaginando quem seria o homem que operava aqueles placares luminosos que anunciavam as notícias do dia. Teve a curiosidade de procurá-lo. Produziu uma reportagem interessante a partir de uma pauta original.
Idem com um dos clássicos do Novo Jornalismo: Talese escolheu como personagem uma figura anônima da redação - o redator de obituários, aquele sujeito que passava o tempo imaginando que frase de efeito poderia escreveria quando um grande nome morresse.
O resultado do trabalho de Gay Talese é um perfil excepcional, um dos capítulos da coletânea "Fama e Anonimato".
Eis aí o enésimo exemplo de que não existe assunto desinteressante. O que existe é jornalista desinteressado.
É uma figura cem por cento nociva à profissão, porque transforma o Jornalismo num monumento à chatice.
O Jornalismo tinha tudo para ser vívido, interessante, curioso. É o que acontece quando retrata personagens como os que despertaram a curiosidade de Talese. Mas, na "vida real", é sufocado por burocratas que passam a vida "derrubando matéria" (ou seja: jogando no lixo da redação assuntos que, com toda certeza, interessariam ao público).
Neste exato momento, às 11 horas da manhã do dia três de maio de 2013, em alguma redação, um sujeito com ar entediado acaba de decretar, com os olhos semi-cerrados: "Isso não é notícia. Isso não vale. A "concorrência" já deu"....
Assim caminha a humanidade.
Uma das mais belas pichações produzidas durante a rebelião de maio de 68 em Paris foi feita na parede de uma das mais tradicionais universidades francesas por um estudante provavelmente ingênuo : "E se a gente incendiasse a Sorbonne ?" - perguntava ele.
O jornalismo poderia melhorar se cada iniciante ( e cada dinossauro! ) refizesse todo dia, logo pela manhã, a pergunta ingênua que o pichador de 68 fez na parede da universidade : "E se a gente incendiasse o Jornalismo ?".
Em última instância, é o que o sr. Talese fez: de certa maneira, incendiou o jornalismo, com imaginação.
Não existe outro combustível contra a mesmice, o tédio e a chatice do jornalismo burocrático.
Um Gay Talese aparece de cinquenta em cinquenta anos. Mas um jornalista que aposte na ousadia e na imaginação e não se deixe contaminar pelo tédio dos burocratas não é uma flor tão rara.
Como diz aquele música bonita dos Rolling Stones, Angie: "Você não pode dizer que a gente nunca tentou".
Fica, então, o aviso: vale a pena ouvir o que Gay Talese tem a dizer sobre esta profissão estupenda e desgraçada, o tal do Jornalismo: reapresentação do DOSSIÊ GLOBONEWS neste sábado, às 21:30.