julho 20, 2012

O DIA EM QUE O REPÓRTER FOI CONVIDADO PELA ACADEMIA PARA RECEBER UMA MEDALHA ( OU: QUINZE ANOTAÇÕES DE UM FORASTEIRO NO PETIT TRIANON )

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Repórter existe para fazer perguntas impertinentes, quando possível. Procurei o então presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Athayde, no início dos anos noventa, para saber: por que a Academia não elegeu o ex-presidente Juscelino Kubitschek ?

Aos que nasceram ontem: cassado pelo regime militar, JK amargava uma espécie de exílio interno no Brasil. Era o mais popular dos ex-presidentes. Mas não podia se candidatar a nada. Não havia eleição direta para prefeito de capital, governador de Estado e Presidente da República. Os generais se revezavam no Poder. A eleição de JK para uma vaga na Academia Brasileira de Letras se transformaria, obviamente, num acontecimento político. O discurso de posse seria um “acontecimento”. Quando as urnas da Academia foram abertas, no entanto, JK recebeu a pior notícia: tinha sido derrotado pelo escritor goiano Bernardo Élis.

2
Não voltei de mãos vazias de minha expedição à Academia. O presidente Austregésilo, surpreendentemente, me disse que pode ter havido um “equívoco” na eleição que derrotou JK. Resulttado da primeira votação tinha sido JK 19 x Bernardo Élis 19. Segunda votação: JK 19 x Bernardo Élis 18. Terceira votação: JK 18 x Bernardo Élis 20. Que equívoco terá sido este ? Um acadêmico pode ter se confundido na hora de votar. “O ex-presidente poderia ter sido eleito”, disse-me o então presidente da Academia, “se à última hora não tivesse havido um equívoco de um dos nossos companheiros – que deixou de votar nele. Se não fosse o equívoco desse voto, Juscelino provavelmente teria sido eleito. Um acadêmico mudou de voto naquele momento”.

Quem terá “traído” o ex-presidente ? Jamais se saberá. A eleição é secreta. Os votos viram cinza depois de embebidos em álcool e incinerados numa urna que fica guardada num sala da Academia. Minha garimpagem rendeu esta revelação: a história completa da derrota de JK traz, ainda, capítulos obscuros.

O Caso JK é uma pequena mostra de que Academia obviamente não é infensa ao rol de sentimentos que move a comédia humana : grandezas, miudezas, glórias, fracassos, belezas, vaidades, traições, luzes, sombras, esplendores, escuridão. Aqui há também cintilâncias e apagões. C´est la vie.

3
Duas décadas depois, desembarco novamente na Academia Brasileira de Letras – dessa vez, não para vasculhar os bastidores da eleição frustrada do ex-presidente, mas para receber uma medalha! Sem falsa modéstia – um sentimento que, aliás, frequentemente produz cenas patéticas – , devo confessar que tomei um susto quando recebi o comunicado da Academia. Jamais imaginei que um dia receberia um prêmio da ABL. Mas iria receber : por proposta do acadêmico Ledo Ivo, fui agraciado com a Medalha João Ribeiro, prêmio que seria entregue no dia em que a Academia comemorava cento e quinze anos de fundação. Lá vou eu.

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Meu demônio iconoclasta me sopra ao pé do meu ouvido esquerdo: “Quem diria! Você no templo acadêmico !”. Meu demônio moderado contra-argumenta, ao pé do ouvido direito : “Mas qual é o problema ? Academia é lugar em que se cultiva saber e se zela pela língua. Eis aí duas tarefas que o Jornalismo pode (e deve) exercer!. O mínimo que você pode fazer é agradecer o reconhecimento! Vá em frente, forasteiro!”.

5
O que um repórter pode fazer, além de apurar os ouvidos e observar o movimento em volta? É o que faço. Enquanto não começa a solenidade de entrega de prêmios literários ( e da medalha ), viro partícipe ou ouvinte daqueles pequenos e inofensivos diálogos que costumam preencher os minutos de espera. Um acadêmico me faz um comentário simpático: “Quando os generais de pijama pensavam que ninguém ia incomodá-los, você chegou lá com suas perguntas….”. Fala das entrevistas que fiz para a Globonews com generais do regime militar. Numa roda, o filósofo Sérgio Paulo Rouanet se declara sinceramente espantado com o canto de guerra de soldados entoado durante treinamento militar. Um dos “versos” diz: “Arranca a cabeça/e joga no mar”. Não há nada menos acadêmico do que o canto bélico, mas os versos são recitados, com sincero espanto, sob o teto da Academia.

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Digo a outro acadêmico que uma vez fiz uma longa reportagem, na Academia, sobre os bastidores da derrota de JK. O acadêmico lembra que seria impossível recontar os votos, por exemplo, para constatar se houve ou não o tal “equívoco”. Tudo vira cinza, na urna. “Não fica rastro nem das traições”, constata.

Eis aí um toque irônico nos rituais acadêmicos : a porta de entrada para a “imortalidade” passa necessariamente pela fugacidade de votos que, em questão de minutos, são reduzidos a cinza, em nome do sigilo eterno. Murilo Melo Filho, jornalista, acadêmico, lembra que testemunhou uma cena inesquecível: estava na casa de Juscelino, na noite da eleição, à espera da notícia da vitória. Toca o telefone. Josué Montello, acadêmico e cabo eleitoral de JK, avisa ao ex-presidente que “dessa vez, não deu”. Ao receber a notícia da derrota, JK esconde a prostração. Começa a dançar com uma filha. Pareceu não acusar o golpe. “Mas, depois, ele sentiu…”, diz a testemunha ocular da dança.

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Cinco da tarde. Os convidados se dirigem para o salão nobre do Petit Trianon. A presidente Ana Maria Machado abre os trabalhos lendo o texto de um discurso pronunciado pelo fundador e patrono da Academia – o grande Machado de Assis. O salão confere um ar solene a tudo o que se diz ali. Fala-se em voz baixa. Um decorador implicante poderia notar que a Academia exagerou na policromia da sala : as cadeiras são azuis; as paredes, verdes ; as cortinas, amarelas. Deve haver algum sentido oculto na escolha das cores. Deve,sim. Mas me escapa.

Do alto de uma das paredes, um busto do patrono da Academia contempla, soberano, o trânsito de mortais e imortais, cá embaixo. Esculpida provavelmente em bronze, a imagem de Machado de Assis ganhou a companhia de outros dois bustos de acadêmicos: o de Austregésilo de Athayde e o de Afrânio Peixoto. Noto que, no busto, Austregésilo de Athayde parece bem mais jovem do que era. O bronze remoça.

Meu demônio iconoclasta volta a suspirar, perto do meu ouvido : “Ah, a ilusória imortalidade conferida por votos que se transformam em cinza e rostos que se transmutam em bronze…!”. Se é verdade que as últimas palavras de Goethe foram “luz,luz, luz!”, ei-las, literalmente: seis lustres pendem do teto, outros seis enfeitam as paredes. Há uma profusão de luzes – se bem, em ou outro lustre, lâmpadas queimadas implorem pela atenção de um zelador.

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Os principal prêmio, o Machado de Assis, vai para o mais recluso dos escritores brasileiros, o minimalista Dalton Trevisan. O homem não aparece, o que já era previsível. Mas manda um texto em que atribui a ausência aos impedimentos e inconveniências provocadas pela idade algo avançada. “Ai de mim”, suspira, por escrito. A plateia faz de conta que acredita na desculpa. Mas sabe que é mais fácil um daqueles bustos bronzeados começar a dançar do que Dalton Trevisan se materializar de repente, ali, num fim de tarde de quinta-feira, sob os lustres do Petit Trianon.

Faço uma breve consulta à história deste prédio, o Petit Trianon, um presente do governo francês à Academia Brasileira. O site da ABL informa que,”no Salão Francês, o Acadêmico eleito cumpre a tradição de permanecer sozinho, em momentos de reflexão, antes da cerimônia de posse”.

Eis aí uma boa pauta para repórteres eventualmente interessados em rituais acadêmicos : em quê cada acadêmico terá pensado neste breve momento de solidão ? Se o “vampiro” Dalton Trevisan tivesse levantado voo em Curitiba para pousar no Petit Trianon, quem sabe, poderia inaugurar uma nova tradição: pedir um momento de reflexão solitária antes de receber o prêmio Machado de Assis, láurea máxima da Academia.

9
Há qualquer coisa de louvável na atitude de escritores, que, a exemplo de Dalton Trevisan, passam a vida se protegendo renitentemente das investidas do mundo exterior – aí incluídos os acenos acadêmicos. É como se dissesse: deixem-me só, as musas da literatura já me consomem todo o meu tempo, toda minha energia – que não quero gastar a bordo de aviões ou em quartos de hotel. Os espectadores da premiação da Academia entendem as razões daltonianas. Palmas para ele.

10
Os outros agraciados recebem seus diplomas: Alberto Mussa ( pelo livro O senhor do Lado Esquerdo) , Ricardo Leão ( por Os Atenienses: a Invenção do Cânone Nacional) , Manoel de Barros ( por Escritos em Verbal de Ave – também não pôde viajar ao Rio, mas mandou a filha) , Rubens Figueiredo ( pela tradução de Guerra e Paz ), Caio César Boschi ( por Exercícios de Pesquisa Histórica) , Marisa Lajolo ( por O Poeta do Exílio) , Marcelo Rubens Paiva (pelo roteiro do filme Malu de Bicicleta ).

Que se diga: Marcelo Rubens Paiva mereceria um prêmio pelo belo cronista que é, além de roteirista eventual. Fico imaginando: quanta dedicação, quantas centenas de horas de trabalho não terá consumido a empreitada de traduzir um clássico como Guerra e Paz ? Um prêmio é pouco, mas há de ser um reconhecimento.

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Os premiados não discursam. Os acadêmicos é que se revezam na tribuna, na leitura de pareceres que justificam as premiações. Nélson Pereira dos Santos, o cineasta acadêmico, deve ter esquecido os óculos em casa : lê com alguma dificuldade um parecer. O ex-ministro Eduardo Portella move-se vagaroso, amparado por uma bengala. Informa que levou uma queda ao cumprir o improvável papel de peladeiro de futebol.

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A Medalha João Ribeiro é entregue ao locutor-que-vos-fala no fim da solenidade. O autor da proposta, Ledo Ivo, sussurra, bem humorado, ao me entregar a medalha e um diploma: “Pensei que você estivesse em Nova York”….Não, não.

Sempre que ouço falar em Ledo Ivo, lembro-me da beleza dos versos que ele um dia escreveu em “A Queimada”:

“Queime tudo o que puder :

as cartas de amor

as contas telefônicas

o rol de roupas sujas

as escrituras e certidões

as inconfidências dos confrades ressentidos

a confissão interrompida

o poema erótico que ratifica a impotência

e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.

Não deixe aos herdeiros esfaimados

nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil

e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.

Viva e morra fechado como um caracol.

Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,

as variantes e os fragmentos

que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.

Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.

Não confie a ninguém o seu segredo.

A verdade não pode ser dita”.

A proposta que o poeta Ledo Ivo apresentara à Academia comete exageros – a meu favor. Refere-se com adjetivos generosos a um livro-reportagem que publiquei – o Dossiê Drummond. Atribui-me uma posição que, definitivamente, não ocupo – nem teria a mais remota pretensão de ocupar – no que ele chama de “jornalismo eletrônico”. A bem da verdade, fui levado ao “jornalismo eletrônico” pelas conspirações do acaso e pela lei da inércia. Meu planeta é o “jornalismo impresso” – sempre foi, desde quando, com treze anos de idade, vi meu nome impresso pela primeira vez no suplemento infantil do Diário de Pernambuco. ( hoje, eu diria “jornalismo escrito”, em vez de “jornalismo impresso”, já que o mundo de papel parece caminhar para as telas dos computadores e afins).

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Em suma: sou um animal estranho ao veículo onde terminei trabalhando já por tanto tempo – a TV. Quando passo em revista minha acidentada folha corrida na TV, confirmo esta impressão. Mas foi, basicamente, o trabalho em TV que motivou o acadêmico a propor a concessão do prêmio… Quem sou eu para denunciar o equívoco? A vida é assim : uma sucessão de inadequações, desencontros, vocações desperdiçadas. Agradeço sinceramente ao poeta. Bato em retirada com meus dois acompanhantes – Elizabeth e Daniel. Termina minha breve incursão ao Petit Trianon.

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Lá fora, exposta ao sereno, indiferente ao rosário de desencontros e inadequações que move o pobre mundo dos mortais, a estátua de Machado de Assis reina sobre o pátio escurecido da Academia.

Meu demônio moderado me dá um último conselho: “Hora de zarpar. Hora de zarpar”.

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Enquanto cruzo o pátio em direção à rua, imagino o que poderia escrever sobre a expedição à Academia. Faço anotações, para não esquecer dos detalhes. Neste momento, ouço o ruído inconfundível das patas de uma fera roçando a porta dos fundos: é o Cão da Subliteratura querendo entrar. Já o conheço de outros carnavais, é claro. O bicho sempre dá sinal de vida toda vez que tento cometer frases de efeito. Dessa vez, não crio caso: “Pode entrar. Não faça cerimônia. Já tenho a primeira frase do texto: “repórter existe para fazer perguntas impertinentes”. Você me ajuda a escrever o resto do texto?”.

O cão imaginário balança a cabeça. A resposta é sim.

Posted by geneton at 12:12 PM

julho 02, 2012

CARLOS EUGÊNIO PAZ, O CLEMENTE

A INCRÍVEL HISTÓRIA DO GUERRILHEIRO QUE RECRUTOU A MÃE PARA A LUTA ARMADA, PARTICIPOU DE “JUSTIÇAMENTO” E DEU AULA DE MÚSICA A CRIANÇAS: É HORA DE “JOGAR LUZ” NOS PORÕES

O último comandante militar do grupo guerrilheiro ALN faz confissão sobre execução de companheiro porque acha que é hora de todos os lados envolvidos na luta armada virem a público dizer o que aconteceu nos “porões”.

Um dos principais personagens da luta armada contra a ditadura militar confessou, diante das câmeras da Globonews, ter participado pessoalmente da execução de um companheiro - um integrante da chamada “coordenação nacional” da Ação Libertadora Nacional (ALN) que caíra em desgraça junto ao comando da organização.

Em declarações anteriores, o ex-guerrilheiro admitira que tinha participado da reunião do “Tribunal Revolucionário” que selara a execução. Mas nunca tinha admitido ter sido um dos executores da sentença.

O cenário da confissão foi o estúdio G da TV Globo, no Jardim Botânico, durante a gravação de um depoimento para o programa Dossiê Globonews (a entrevista completa vai ser reexibida neste domingo, às 17:05). O autor da declaração: Carlos Eugênio Paz, o Clemente, comandante militar da Ação Libertadora Nacional, organização criada por Carlos Marighella para combater, com armas, o regime militar.

Primeiro, Carlos Eugênio Paz falou genericamente sobre a decisão “colegiada”. Depois, ao ser perguntado pela terceira vez se tinha participado diretamente da execução, respondeu:

- É uma informação quer até hoje não dei. Você está perguntando. A verdade verdadeira é que não dei porque ninguém teve esta atitude de me perguntar diretamente. Participei – sim – da ação. Um comando de quatro companheiros participou. Não fui sozinho. Os outros três estão mortos. A execução foi feita a tiros, numa rua, nos Jardins, em São Paulo, no dia 23 de março de 1971. Tomamos aquela decisão coletivamente. Era uma decisão de organização. Não assumo sozinho. Não sou maluco, não sou louco de decidir uma coisa dessa sozinho. Isso é uma direção. A ALN considerou que ele passava a ser um perigo para a própria organização,porque era dirigente, pela quantidade de informações que ele tinha e pelo fato de que estava abandonando companheiros à própria sorte num combate. É essa a questão.

Ao quebrar um voto de silêncio que deveria durar até a morte, Carlos Eugenio Paz diz que quer dar o exemplo nestes tempos de Comissão da Verdade: se um ex-guerrilheiro confessa participação num ato “nada glorioso”, militares envolvidos em atos violentos deveriam, também, vir a público para relatar o que ocorreu nos “porões”:

- Enquanto as duas partes não falarem abertamente, vai se ficar jogando tudo para baixo do tapete. Faço uma exortação: eu estou aqui contando tudo. Conto o que dá glória e o que não dá glória. O nosso lado foi todo investigado. O que não foi investigado é: onde está Paulo de Tarso Celestino – da ALN ? Onde está Jonas? Cadê o corpo de Jonas ? ( Preso por agentes do Doi-Codi no Rio de Janeiro, em 12 de julho de 1971, o advogado Paulo de Tarso Celestino, que militava na ALN, desapareceu desde então. O ex-operário Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, um dos chefes da ALN, comandou em setembro de 1969 o operação de seqüestro do embaixador americano. Preso três semanas depois, entrou para a lista dos desaparecidos políticos). Evidentemente, mataram. Mas por que mataram ? Onde mataram ? Quem matou ? Onde está ? Isso nos importa. Porque os livros de História precisam ter estas lacunas preenchidas. Você não pode entrar na História, causar tudo o que causamos e, depois, não querer assumir as coisas. Eu assumo! Como não temos vergonha do que fizemos, contamos.

A confissão do ex-comandante militar da ALN significa, na prática, que uma cena ocorrida no dia 23 de março de 1971, na rua Caçapava, na Consolação, em São Paulo, finalmente ganhou um desfecho – quarenta e um anos depois. Naquele dia, um comando da ALN formou uma expedição punitiva para executar a tiros o militante Márcio Leite de Toledo. Ex-estudante de sociologia de vinte e seis anos de idade, Toledo tinha sido enviado a Cuba para treinar guerrilha. Voltou, clandestino, ao Brasil.

A volta coincidiu com a morte de dirigentes da ALN, capturados pelos órgãos de segurança. Márcio se tornou, então, uma espécie de dissidente dentro da organização. Tinha dúvidas sobre se a tática de luta da ALN era correta. Resultado: reunido, o comando da ALN decidiu que Toledo passara a ser um perigo para a organização. Se desertasse, levaria consigo todos os segredos sobre as táticas de luta, identidade dos militantes e planos da ALN.

A decisão extrema foi tomada: Mário seria executado. Um encontro foi marcado para a rua Caçapava. Quando chegou ao local, Márcio Toledo Leite foi surpreendido pelo comando da ALN – que abriu fogo contra ele. Panfletos deixados no local diziam que a ALN, “uma organização revolucionária em guerra declarada, não pode permitir uma defecção desse grau em suas fileiras”.

Clemente-11-300x139.jpg "Clemente": biografia agitada ( Foto: Jorge Mansur )

Os executores da sentença de morte selaram, desde então, um pacto de silêncio:

- “Um comando é designado. Os componentes fazem pacto de silêncio. O ato mais polêmico da história da ALN é cometido (…). É uma ação de sobrevivência, não nos trará glórias nem conseguiremos jamais saber se foi ou não acertada, simplesmente os tempos exigem” – escreveria Carlos Eugênio em suas “memórias romanceadas” – o livro Viagem à Luta Armada.

Numa declaração ao Fantástico,em 1996, ele finalmente reconheceria que a morte de Márcio Toledo foi “um erro”, mas não admitiu a participação direta na execução:

- O comando de quatro pessoas tomou a decisão de manter o segredo até a morte.


MISSÃO: SEQUESTRAR O COMANDANTE DO II EXÉRCITO

“Clemente” é o único sobrevivente do comando da ALN. Todos os outros estão mortos. Carlos Eugênio – que adotou como nome de guerra o sobrenome de um ex-jogador do Corinthians e do Bangu, Ari Clemente – diz, na entrevista, que um dos mais ousados ataques da ALN chegou a ser parcialmente executado, em São Paulo: nada menos que o sequestro do comandante do II Exército, general Humberto de Souza Melo, um militar de “linha dura”. O ataque não chegou a ser noticiado pelos jornais, então submetidos à censura. A guerrilha nunca tinha tentado seqüestrar um militar de alta patente.O comando da ALN decidiu, no início de 1971, que a hora tinha chegado.

A ALN descobriu que o comandante do II Exército frequentava uma igreja batista na rua Joaquim Távora, na Vila Mariana, em São Paulo. Um comando de dez guerrilheiros foi ao local. O que aconteceu foi uma cena digna de filme de Tarantino: guerrilheiros e agentes do DOI-CODI – uns apontando armas para os outros. Em meio a tudo, o comandante do II Exército, sob a mira do comandante Clemente:

-Eu estava com um fuzil. Nosso companheiro José Milton Barbosa estava com uma metralhadora alemã de nove milímetros. Chegamos a render o general na porta da igreja. Neste momento, chega uma patrulha do DOi-CODI. Ficou o general – com uma pequena comitiva – na porta da Igreja. Nós, em volta do general. E os agentes do DOI-CODI em volta da gente. Houve um “cerco dentro do cerco”. E ainda havia outro carro nosso – que estava apontando para o “cerco do cerco”. Eu disse ao general: “Aqui, vai morrer muita gente. Os agentes estão nos cercando. Mas nós estamos o cercando. Se algum tiro for disparado, a primeira rajada vai ser no peito do senhor! Vai ser um morticínio”. O general disse :”Não! Aqui, hoje, ninguém vai morrer!”.Começamos a recuar, mas sempre apontando as armas para ele. Fui o último a entrar no nosso carro – que partiu em disparada. Devo dizer que o general se portou como combatente.Há uma coisa que,nós, combatentes,prezamos: é o outro combatente se comportar como combatente. O general não demonstrou nervosismo.Neste dia, a gente salvou a vida de um bocado de gente – inclusive do general. Porque, se eles disparassem, nós iríamos disparar. O general ia morrer. Quem estava na comitiva morreria. E nós todos iríamos morrer também.

O CONSELHO DE MARIGHELLA: “UM COMANDANTE SÓ APRENDE A MANDAR QUANDO APRENDE A OBEDECER”

Carlos Eugênio cita três nomes que estavam na lista dos “sequestráveis” da ALN : o presidente do Bradesco, Amador Aguiar; o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo(Fiesp), Theobaldo De Nigris, além do presidente do grupo Ultra, Peri Igel:

-Tínhamos essa lista.Prefiro chamar de captura de agentes do inimigo, não de seqüestro.Jamais seqüestramos alguém para pedir dinheiro. Queríamos libertar nossos companheiros presos e torturados. Marighella definia muito bem: quem vai financiar nossa atuação é o capital financeiro. Não estamos tirando dinheiro do correntista. Estamos tirando dinheiro do dono do banco. Sempre foi assim. Assaltávamos bancos, expropriávamos dinheiro dos carros pagadores.

O envolvimento de Carlos Eugênio Paz, o “Clemente”, com a ALN começou cedíssimo. Aos dezessete anos de idade, ouviu a pregação de Carlos Marighella, pessoalmente. O fundador da ALN recomendou que ele servisse ao Exército no Forte de Copacabana. O conselho que recebeu de Marighella:

- Você não vai ao Exército para aprender a atirar. Porque aprender a atirar você pode aprender aqui mesmo. Quero que você vá lá para duas coisas. Primeiro: aprender a obedecer. A base de qualquer comando militar é assim: o comandante aprende a mandar quando aprende a obedecer. Um soldado disciplinado pode, então, se tornar um comandante de uma tropa de guerrilha. Você vai, primeiro, aprender a obedecer. Segundo: quero que você aprenda como raciocina um militar, para que você possa se transformar num quadro militar da guerrilha.

Assim foi feito. O alagoano radicado no Rio saiu de quartel sabendo o que é uma granada, um fuzil, uma metralhadora, uma pistola automática e o que significa hierarquia. Estava pronto para a guerrilha:

- “A direita jogou suas tropas na rua. A esquerda não jogou nada. Nossa geração queria reagir. Como é que os militares chegam, acabam com a liberdade, arrombam a porta do Palácio do Governo e do Congresso, saem cassando todo mundo ?”, diz ele. “Queríamos participar da resistência. Marighella foi o primeiro que lançou esta palavra de ordem: temos de resistir com as mesmas armas que eles usaram para tomar o poder. Ou seja: as armas de fogo. Temos de construir uma guerrilha urbana, uma guerrilha rural para derrubar a ditadura. Decidi que ia colocar minha juventude e minha vida sob o comando de Carlos Marighella(…) Qual foi o primeiro ato violento que foi feito dentro de nosso país, senão o dia 31 de março de 1964? Deram o primeiro tiro. Vi um general dizendo que nós é que demos. Não! Quem deu o primeiro tiro foram as Forças Armadas, no dia 31 de março de 1964”.

O “TRIBUNAL REVOLUCIONÁRIO” CONDENA O EMPRESÁRIO

Em outro ponto da entrevista, Carlos Eugenio dá detalhes de outra decisão extrema tomada pela ALN: a execução do empresário Henning Albert Boilesen, morto a tiros na manhã do dia 15 de abril de 1971, na rua Barão de Capanema, nos Jardins, em São Paulo. Boilesen foi condenado por um “tribunal revolucionário” da ALN por ter financiado a Operação Bandeirante,organização criada pelo II Exército em São Paulo para centralizar o combate à luta armada. Eugênio apertou o gatilho:

- Dirigi a ação. Fui autor do tiro de misericórdia. É o último tiro que é dado. Tínhamos testemunhas – vivas até hoje – que foram torturadas na frente de Boilesen. Não era um inocente. Não foi justiçado por ser empresário, mas por ser um quadro direto da repressão. Como tal, estava sujeito a sanções da guerra. Todos nós estávamos sujeitos a sanções. Boilensen também. E estas sanções,no caso de Boilesen, foram aplicadas. Eu estava sujeito também a sanções de guerra: quantas vezes não mandaram tiro em cima de mim ?

Nesta altura do depoimento, o ex-comandante militar da ALN faz a lista das “marcas da guerra”:

- Pegaram a minha mãe em 1974, em São Paulo : ela passou um mês torturada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Minha irmã foi torturada. Minha companheira que tive na vida, Ana Maria Nacinovic, foi fuzilada na luta armada, quando saía de um restaurante. Com todas essas pessoas que iam morrendo, eu morria junto também. E tinha as mortes que cometi. Veja o prejuízo que o golpe de Estado de 1964 causou: fez com que brasileiros e brasileiras tivessem de participar de um aluta fraticida. Alguém acha que estávamos ali porque gostávamos de ficar dando tiro nos outros ?

O ex-comandante militar da ALN é um caso único na história da luta armada: recrutou a própria mãe para a guerrilha. Maria da Conceição Coelho da Paz terminou entrando para a ALN. Tinha 49 anos de idade. Adotou o codinome de Joana. Passou dois em Cuba treinando enfermagem. Iria atuar como enfermeira dos guerrilheiros no Brasil. De volta ao Brasil, terminou presa e torturada, em São Paulo, para dizer onde o filho estava. Não disse. A essa altura, Carlos Eugênio já estava fora do país. Tempos depois,em Paris, disse que uma mãe não entrega um filho. Ficou com sequelas nas mãos, resultado da tortura. A cabeça de Carlos Eugênio valia ouro para os órgãos de segurança. O silêncio da mãe de Eugenio valia ouro para a guerrilha. A “Joana da ALN” morreu aos 79 anos, em 2000.

Carlos Eugênio Paz não chegou a ser preso. Conseguiu sair do Brasil pela fronteira com a Argentina. Usou, na identidade falsa providenciada pela ALN, o mais banal dos nomes: João José da Silva. Tremeu nas bases quando viu o próprio rosto estampado num cartão de “Procurados” colado na parede do posto da Polícia Federal na estação rodoviária. Mas o agente que o atendeu não notou que aquele João José Silva era Carlos Eugênio Paz. “João José” passou pela Argentina, pelo Chile,por Cuba, pela Rússia e pela Tchecoslováquia, até desembarcar em Paris.

Em Cuba, o comandante militar da ALN viu um general chamado Arnaldo Ochoa estender um mapa em cima da mesa e mostrar o plano de trazer para o Brasil um navio lotado de guerrilheiros cubanos. Eugênio recusou a oferta. Disse que a ALN, organização que carregava a palavra “nacional” no nome, não iria internacionalizar a luta armada.

Ao descobrir que a guerrilha estava sofrendo um golpe atrás do outro, o então comandante militar da ALN desistiu de voltar para o país. Passaria oito anos em Paris,refugiado. Terminou condenado, à revelia, a 124 anos de prisão, por crimes contra a segurança nacional. Eugênio calcula em cerca de oito o número de militares mortos nas ações de que participou.

De volta ao Brasil em 1981,o ex-guerrilheiro arranjou um ocupação improvável, ao percorrer os anúncios classificados de um jornal em busca de trabalho: virou professor de música de crianças na creche Acalanto, na rua Visconde de Caravelas,em Botafogo. Depois, deu aulas de música na Escola Parque, na Gávea. Abriu um curso em Ipanema. Toca violão, piano e baixo. Tinha estudado música quando criança. Considerado desertor do exército, requereu, junto à Comissão de Anistia, a reintegração nas forças armadas. Conseguiu. A portaria do Ministério da Justiça que reintegra Clemente ao Exército foi publicada no dia três de fevereiro de 2010. Hoje, é terceiro-sargento do Exército – inativo, obviamente. Precisou de dez anos de psicanálise para conviver com as “marcas da luta”. Não é tarefa para amadores. Tinha interrompido as sessões, mas retomou, há pouco. Aos 61 anos de idade, vive com a mulher no interior do Rio. Pretende, em breve, publicar um novo livro. É personagem de um documentário que, se tudo der certo, deve chegar às telas no ano que vem. Teve um enfarte, mas foi salvo por uma angioplastia, em outubro de 1988. Ainda assim, voltou a fumar, desbragadamente. Ao final da entrevista, fumou três cigarros- um atrás do outro, sem intervalo. Em troca de e-mails com o repórter, assina o nome que usava nos tempos da guerrilha: Clemente. É como se quisesse dizer: Carlos Eugênio ainda é Clemente. E Clemente nunca deixou de ser Carlos Eugênio.

(*) Trechos desta matéria foram publicados na edição desta segunda-feira de O GLOBO

Posted by geneton at 12:14 PM