NUM FIM DE TARDE DE DOMINGO EM IPANEMA, MILLÔR FERNANDES CONFESSA DIANTE DO GRAVADOR: “NÃO FUI DOMINADO POR QUADROS ACADÊMICOS NEM PELA IGREJA NEM PELO MARXISMO”
Millôr Fernandes nasceu no vigésimo-quarto dia de agosto do vigésimo-quarto ano do século XX ( havia “controvérsia” sobre a data exata). Bateu em retirada neste fim de março. Viveu 87 anos, portanto. A morte é sempre uma lástima, uma lástima, uma lástima. De qualquer maneira, o balanço final, no caso de Millôr Fernandes, é extremamente positivo. Porque, durante décadas, ele soube transformar uma inteligência fulgurante em textos, desenhos, peças, filosofia.
A TIB (Taxa de Inteligência Brasileira) sofreu uma redução espetacular depois das mortes de Millôr Fernandes e de Chico Anysio. Millôr Fernandes passou a vida combatendo a vulgaridade. Chico Anysio deu alegria a milhões. Não é pouco. Cumpriram com brilho o script.
Tive a chance de entrevistar Millôr Fernandes longamente, numa tarde de domingo, no apartamento de Ipanema que ele usava como estúdio, ateliê e refúgio. Era uma espécie de bunker - de onde disparava petardos contra a vulgaridade geral. Terminada a gravação, pude alinhavar um decálogo do que ouvi do homem. O que um repórter pode fazer de útil na vida, além de ligar o gravador ? Reviro meus arquivos não tão implacáveis. Eis o principal do que ele disse:
“Jornalismo cultural brasileiro é extremamente mafioso”
“O ceticismo é uma indagação permanente – que leva à criatividade”
“Não fui dominado por quadros acadêmicos nem pela Igreja nem pelo marxismo”
“Sou uma pessoa lamentavelmente feliz”
“Há a babaquice inerradicável do intelectual brasileiro”
“O ser humano sempre chorou à beira do abismo”
“O homem é um animal inviável. Mas eu sou viável !”
“Popularidade é extremamente vulgar”
“Não quero andar na rua e ser reconhecido”
“Brigar com os poderes públicos é sempre uma coisa nobre”
Diante de tanto ceticismo, é exagero dizer, para Millôr Fernandes, a vida é uma doença hereditária ?
Millôr : “A vida é – mas não para mim. Sou uma pessoa lamentavelmente feliz. Não cobro do passado o fato de não ter nascido príncipe da Inglaterra. Ou mais bonito, mais inteligente e mais capaz do que eu sou.
Sempre tive boa saúde. Sempre tive em torno de mim pessoas me amando, gostando de mim intensamente e me fazendo sentir bastante protegido. É o que interessa, em última análise. Quanto ao resto, sou cético. Ainda assim, todo o meu trabalho, durante minha vida inteira, sempre foi solicitado, o que me dá segurança. Há sempre gente querendo que eu faça mais do que eu faço. Não tenho amargura, portanto.
Não vou cobrar o dinheiro que não tive. Não vou cobrar as viagens que não fiz. Não vou cobrar o curso de linguística em Masachussets que não pude fazer. Não tive nenhuma formação acadêmica, o que tem um lado negativo e um positivo. Não fui dominado por quadros acadêmicos nem pela Igreja – que é uma bitola fundamental – nem pelo marxismo. Para o bem e para o mal, tenho o meu próprio pensamento. Você me dá uma coisa – e eu penso. Sou uma pessoa profundamente interessada em pensar as coisas.
Não sou, definitivamente, paranóico. Não tenho doenças. E sei que, à proporção que a gente vive, a morte se aproxima. Quanto tem dez anos de idade, você é eterno. Com 20 ou 30 anos, também. Mas um momento em que você sabe que não é eterno. Não é um medo. É uma constatação”.
“Torre de marfim – reserva três para mim” – é o que você diz, num Hai Kai. Você admite que vive numa torre de marfim ?
Millôr: “Não tenho dúvida! Basta ser branco e de classe média no Brasil para já estar numa posição privilegiada. O que é que eu ganho, meu Deus do céu ? Vamos dizer que eu ganhe 50, 100 salários mínimos, o que for. Basta ganhar 50 salários mínimos para ser superprivilegiado. Não tenho do que me queixar. Consegui uma coisa que é absolutamente rara. Digo mais: rara, rara, rara. Nunca tive, a não ser através da violência estatal, uma coisa minha cortada em qualquer órgão de imprensa em que trabalhei.
Brigar com os poderes públicos é sempre algo nobre. O que me deixa humilhado é , por causa de um empreguinho, você aceitar que cortem suas ideias”.
Em que grande causa você acredita ainda hoje ?
Millôr: “Estou completamente cético. Vou dizer uma coisa trivial: o mundo tem, hoje, pela primeira vez na história, a capacidade de se auto-exterminar. Acrescento: o que não faria mal à economia do cosmo.
Chegamos aqui e vamos sair sem que ninguém perceba nada. Talvez seja este o próprio processo ecológico. Sem considerar estas causas metafísicas, acho que o ser humano sempre chorou à beira do abismo. Sempre ia acabar, sempre ia morrer, mas vem fazendo progressos sistemáticos através dos tempos. Ainda que não pareça, o ser humano progrediu do lado ético e moral. O que impede hoje a pena de morte não são fatores como “essa medida vai aumentar a credibilidade” ou “vai diminuir”. Não. O melhor ser humano de hoje – que somos nós dois, no caso – não admite moralmente a pena de morte. Ponto”.
Um dos seus Hai-Kais fala do “cético sábio que ri com um só lábio”. O Hai-Kai é ilustrado, no livro, com um auto-retrato. Você se reconhece na figura do “cético sábio” ?
Millôr : “Eu me reconheço no cético. Mas me reconhecer no sábio seria uma petulância !”.
Você prefere ser chamado de humorista ou de escritor ?
Millôr : “Eu, até há pouco tempo, tinha vergonha quando via o meu nome como escritor. E humorista é algo que há em mim. Se você quiser um termo, é escritor. Ninguém é humorista o tempo todo. Eu, na maior parte do tempo, não sei se estou escrevendo coisas engraçada ou não engraçada”.
Se o homem, como você diz, é um “bípede inviável” – e se é tão difícil acreditar em alguma coisa -, qual é a força que faz você criar ?
Millôr : “Criei uma série de frases no Pasquim. Ziraldo – que se diz a toda hora meu seguidor – vive repetindo-as. Apesar de nossas brigas – este é o lado positivo de Ziraldo - ,ele me corteja através da televisão ( ri). Mas Ziraldo de vez em quando me acusava, dizia que aquela ideia de que o homem era um bípede inviável era de direita. Eu dizia: “Não, Ziraldo ! O homem é um animal inviável ! Mas eu sou viável !”.
Não sou inviável ! Se você quiser falar mal de mim, aconselho você a vir aqui amanhã quando minha empregada estará aí – e falar mal de mim. Experimente falar mal de mim com as pessoas com quem trabalho intimamente – e até com minhas amigas, no sentido mais amplo da palavra. Dificilmente você encontrará alguém que diga que sou um calhorda ou que, na intimidade, não represento aquilo que as pessoas pensam. Isso é que é importante”.
A TV – você escreveu – “é um meio inventado pelo homem medíocre para ser utilizado pela mediocridade para a mediocridade”. A hostilidade que você faz questãode cultivar em relação à TV não corre o risco de parecer anacrônica diante de casos de intelectuais e artistas insuspeitos, como Ziraldo e Paulo Francis, que emprestaram o rosto à TV ?
Millôr: “De Ziraldo não sei qual é a posição. Paulo Francis vive esculhambando a TV. As pessoas vão para a TV tentadas pela coisa humana que é aparecer, algo que não tenho. O pouco que tinha refreei. Popularidade é extremamente vulgar. Não quero andar na rua e ser reconhecido. Mas gosto de um certo prestígio. Gosto de ir a um lugar e não ficar sozinho.
Quanto à TV, é atraente exatamente por esta razão: as pessoas não resistem a mostrar a bunda para um número maior de espectadores. “Calma, você está mostrando a bunda para 30 mil espectadores !”. “Não, mas na outra emissora são 30 milhões…”. É como disco. Se o cantor vende um milhão e passa a vender 800 mil, fica infeliz.
Juro a você: não estou preocupado com essas coisas. Quero que meu trabalho tenha o alcance suficiente para que eu possa continuar a fazê-las”.
Carlos Drummond de Andrade lamentou, dias antes de morrer, que hoje há no Brasil escritores premiados que sequer sabem dominar a língua. Você, como intelectual cultíssimo, constata a vitória do despreparo ?
Millôr : “Totalmente ! É impressionante. E é um dos sintomas da desagregação de um país que não chegou a se agregar completamente. O que se escreve mal…Não falo de ortografia, porque de vez em quando aparece um bobalhão para dizer que você errou ao escrever uma palavra qualquer com “z”, o que é uma bobagem. Ortografia não entra em questão. O que entra é todo o problema sintático do conhecimento, invenção, riqueza e propriedade da língua. A maior das pessoas anda escrevendo muito mal. Isso choca muito. Não vou falar de pessoas que, mal ou bem, são colegas. Parece que você quer ficar apontando erros…
Há poucos dias, saiu um lobby pago pelo Divaldo Suruagy (ex-governador de Alagoas) em todos os jornais. Você lê a matéria paga e vê que aquilo é caso para botar esse rapaz na cadeia. É um analfabeto ! O lobby de Suruagy arranjou dinheiro para pagar aquilo. Gastou uma fortuna. O texto publicado em todos os jornais é de um analfabetismo total, como escritura e como empostação. Como é que ele paga, para ampará-lo como um “grande candidato” ao cargo de ministro da Educação, uma porção de nomezinhos que não têm a menor importância ? Só mostra que não tem a menor noção do que são os fatores culturais do país.
Há pouco, apontei 40 e tantos erros num texto da Petrobrás. Fiz também sobre o Banco do Brasil. Isso sem você querer ser preciosista ! São apenas erros indiscutíveis. Mas, se você procurar coisas mal escritas e os textos em que o autor quer dizer uma coisa e diz outra, encontrará todo dia”.
O intelectual deve ser implacável com todos os governantes, indistintamente ?
Millôr : “Indistintamente. Se você pegar tudo que escrevi, raramente você verá um ataque meu à pessoa física. Com os poderosos, não quero nem saber. Mas procuro ser justo. Evidentemente, não vou fazer um ataque a Afonso Arinos. Posso fazer uma restrição. Mas não vou fazer como faço com Sarney. Desde o princípio, eu sabia que Sarney era um idiota. Infelizmente, eu estava certo. Amanhã, posso fazer restrições a Valdir Pires. Mas não vou tratar Valdir Pires como trato Figueiredo”.
A posição de independência e crítica intransigente a todos os governantes é uma questão ética, para você ?
Millôr: “É uma questão ética, com esta gradação : se amanhã Valdir Pires for presidente, não o tratei, é evidente, como trato Sarney. Ainda que você seja injusto, o homem do poder público tem sempre uma tribuna e meios muito maiores do que você tem para reagir e anular o mal que ocasionalmente você lhe faça”.
Você sempre se refere aos idiotas com irritação, nos textos que você escreve. Qual é o maior exemplo de idiotice hoje no Brasil ?
Millôr : “Quem gostava de falar de idiota era Nélson Rodrigues. Se você quiser saber hoje quem é o maior idiota – pode parecer agressivo, mas não é – vamos botar: entre os maiores idiotas do Brasil está Sarney ( quando da gravação da entrevista, Sarney era presidente da República). Não estou brincando com você. Eu o livro que ele escreveu. É um subintelectual. Absolutamente subintelectual. Uma pessoa a quem a vida deu uma oportunidade histórica inconcebível – e ele jogou a oportunidade no lixo, individualmente e sob o ponto de vista nacional. Se você não classificar esta pessoa como idiota, não sei quem você vai classificar”.
O jornalismo cultural que se faz no Brasil presta ?
Millôr: “Infelizmente, não. Sobretudo, ele é extremamente mafioso. Deixa se seduzir por qualquer coisa, desde o poderoso que oferece uísque na piscina até o amiguinho que não tem nenhuma capacidade de transpor esse perigoso ciclo do envolvimento. Não entro no mérito da qualidade intelectual – aí, vão sempre se salvar algumas pessoas”.
É raríssimo ver Millôr Fernandes falando na imprensa, fora das colunas que você escreve. Em TV, praticamente você não aparece nunca. É excesso de timidez, zelo com a imagem ou patrulhagem ?
Millôr : “É cuidado com a imagem. E, mais do que timidez, um imenso tédio. Vejo tanta gente dizendo besteira e tanta gente salvando a humanidade na TV…Outra coisa: pela minha própria profissão, apareço demais. Há outro ponto fundamental: nestas duas últimas vezes em que fui à TV – inclusive num programa a que todo mundo quer ir, o de Roberto D´Ávila – fui pago. Só fui porque me pagaram. Sou um profissional. Não vou encher a hora do seu Roberto Marinho, Saad ou lá quem seja com um tempo da minha vida – que levei anos e anos para valorizar.
Há a babaquice inerradicável do intelectual brasileiro. Ora, o intelectual brasileiro é até hoje um provinciano que acha bonitinho ir à televisão e aparecer. Acha bonitinho escrever nos jornais. Digo que não são só os intelectuais novos e os que não têm nome. Se você pegar a Folha de S. Paulo, é escândalo que inúmeros daqueles colaboradores socialistas do jornal – dou os nomes: Severo Gomes, Fernando Henrique Cardoso – não se dêem conta de que estão fazendo uma lamentável concorrência desleal aos profissionais do setor. São grande nomes, necessários à imprensa. Mas deveriam se reunir, fazer um salário-piso e doar o dinheiro, se acham que não precisam. Mas não podem é escrever de graça. O sistema é mesquinho”.
O que é que tira inteiramente o humor de Millôr Fernandes ?
Millôr: “Sou uma pessoa de um ceticismo muito grande. Não confundir com pessimismo ! O ceticismo é uma indagação permanente – que leva à criatividade. É o contrário do babaca que é o idealista perene ou que aceita o moderno que existe em tudo hoje: existe no feminismo, na pintura, no teatro. O cara vê um movimentozinho qualquer que lhe parece moderno e fica seguro do não-reacionarismo porque entra naquela corporação e naquela ideia. Mas, na verdade, a única coisa que não perdoo – e é realmente imperdoável – é a participação na violência. Não perdoo os políticos que estão aí, inclusive Sarney. Participou. Só não participou mais porque é um abúlico, assim como não participa deste governo até hoje.
Você pode ser o que quiser. Pode ser de direita. Penso que a direita tem todo o direito de estabelecer um critério. Qual é o critério básico da direita ? A superioridade das elites. O que não pode é levar à violência, não pode é dar soco na cara do inimigo, não pode é alijar o inimigo de maneira atrabiliária. O resto ? Podem dizer o que quiserem”.
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*Entrevista gravada em outubro de 1987. Trechos publicados na edição de 07/11/1987 do Jornal do Brasil, no caderno Idéias
CARLOS VEREZA DESCREVE DELÍRIO VIVIDO NUMA CLÍNICA, NA CAMA DE RAUL SEIXAS
Carlos Vereza faz parte de uma liga especial de atores: aqueles que, sem aparentar grandes esforços, são capazes de “incorporar” os personagens que interpretam, como se fossem médiuns.
Quando estrelou “Memórias do Cárcere”, Carlos Vereza incorporou, na tela, a figura do escritor Graciliano Ramos. É um dos grandes momentos do cinema nacional.
Agora, o ator que se transfigurou em tantos personagens decide se desnudar em público, num livro chamado “Efeito Especial : Estilhaços Biográficos”. É um texto curto, mas intenso e envolvente.
O “médium” Vereza fará uma noite de autógrafos no dia 25 de março, a partir das 18 horas, na livraria República do Bardo ( Rainha Elizabeth, 122, loja E, Copacabana).
Vereza passou anos atormentado por um “zumbido interno” que lhe incomodava desde que tombou vítima da explosão de um tiro de festim numa cena da série “Delegacia de Mulheres”. Terminou internado numa clínica em São Paulo. Batizou o cenário de Morro dos Ventos Uivantes.
Quando desembarca na clínica, Vereza é informado de que iria repousar na cama que tinha sido usada por outro paciente ilustre – Raul Seixas. O enfermeiro lhe deu a notícia na vã tentativa de animá-lo.
Eis uma avant-première do texto autobiográfico de Vereza:
1
” CLÍNICA DO MORRO DOS VENTOS UIVANTES. 1990 . A clínica, suntuosa, ficava no alto de uma colina. São Paulo, inverno, vento cortante. Não sei por que me veio à mente um plano geral do filme O Morro dos Ventos Uivantes, onde o som da chuva e tempestade por instantes confundia-se com o zumbido, o que me proporcionou um grande alívio – era isso: tinha sempre que ter um grande ruído que cobrisse aquele horror na minha cabeça.
O Dr. O… dono da clínica, recebeu-me com extrema delicadeza, mas não conseguia conter a perplexidade ao apertar minha mão.
Meu aspecto era o de um aidético em fase terminal, eu estava com um pouco mais de 40 kg, trêmulo, amparado por um enfermeiro e Delma que ficou comigo, no mesmo quarto na primeira semana.
O Dr. O… e uma equipe de atendentes colocou-me em uma cadeira de rodas e conduziram-me por um interminável corredor até o quarto que eu deveria ocupar. Um dos enfermeiros, talvez para me animar, sussurrou no meu ouvido-sirene:
– Aí, ó! Você vai ficar no mesmo quarto que o Raul Seixas ficou.
Balancei a cabeça “agradecido” e o cara concluiu:
– Vai ver até que é a mesma cama!
Entramos. Era um quarto amplo, com a tal cama, uma mesa, duas cadeiras e uma pesada cortina cobrindo o que deveria ser uma janela.
(….) A enfermeira aproximou-se com a seringa, eu deitado na cama de Raul, como regularmente me era lembrado e, com o tom de voz de menininha que não cresceu:
– Senhor Vereza, sua veia é do tipo bailarina, mas fique tranqüilo, que eu sempre consigo pegar.
Pegou. Senhoras e senhores! No mesmo instante em que o líquido era injetado em minha veia, entendi por que o Seixas se internou naquela clínica: todos os tipos de drogas experimentadas na década de 70 não passavam de Melhoral Infantil comparados àquela aplicação.
Imediatamente me vi girando numa espécie de disco 78 RPM, só que meio inclinado, e cada faixa era de uma cor. Eu agarrava uma banda do tal 78 e tive a sensação de sair voando pela janela, atravessando cortinas, vidraças e o que mais tivesse pela frente!
Vi-me criança, depois adolescente, indo do Lins de Vasconcelos para Cascadura, com a merenda embrulhadinha em papel de pão e envolta num guardanapo branquinho. Vi o Zepelim no quintal de minha madrinha, e comecei a escorregar de faixa em faixa até o que me pareceu ser o pino central que fazia o disco girar.
Lá estava eu de fardinha, esperando o meu padrasto na Avenida Presidente Vargas, expedicionário que voltava da Itália: fim da Segunda Guerra Mundial. Percebi minha mãe, atravessando o cordão de isolamento e correndo atrás do jipe e tentando beijar meu padrasto e acabou batendo a cabeça no capacete dele. Ouvi até o som daquela porradinha romântica.
Aos poucos, o disco foi girando cada vez mais lentamente, meio rouco enquanto arco-íris transmutavam-se em lanternas multifacetadas brilhantes e deslocavam-se, pouco a pouco, subindo pelas paredes do quarto e, como balões japoneses, flutuavam sobre minha cabeça. Não sei quanto tempo durou.
Quando consegui abrir os olhos, a enfermeira com voz de bebê não estava mais no quarto e, em seu lugar, uma moça sentada numa cadeira ao lado de minha cama chorava copiosamente. Soube depois que se tratava de uma psiquiatra que acompanhara toda a minha “gravação” em 78 RPM”
2
“BREVE SOLILÓQUIO: A minha ida a Paris não teve nada a ver com o glamour de autoexilado perseguido pela ditadura (embora eu tenha sido), nem o charme de sentar-me à mesa do Café de Flore, próximo ao de Sartre e Simone. Não: o fato em si, como já disse, foram os prêmios que me possibilitaram esta viagem. Se eles tivessem como destino o Alasca, o Tibete ou o Kilimanjaro, enfim, qualquer lugar que fizesse frio e ficasse bem distante do Brasil, eu teria ido da mesma maneira.
Fui sequestrado duas vezes, torturado comme il faut, minha mãe, em consequência, teve um aneurisma e morreu em sete dias, segurando a minha mão, e eu tive que ordenar aos médicos que desligassem os aparelhos.
Minha mãe, que num conjugado de vinte metros quadrados, escondera parte do Comitê Estadual do Partido Comunista, porque o filho pedia. Eu queria sair, desaparecer deste absurdo de país, que conseguiu ir da descoberta à decadência, sem fazer baldeação. Este povo apático, desfibrado… A verdade é que a Ditadura acabou, porque não interessava mais aos Estados Unidos. Os militares dizimaram os guerrilheiros e ainda contavam com o apoio de grande parte da classe média. Poderiam, se quisessem, permanecer mais uns dez anos no poder”.
3
“MURO DA VERGONHA. Berlim, 1986. Antes de voltar ao Brasil, Larissa perguntou-me o que era liberdade. Como não sei o significado até hoje, aluguei um carro por 250 francos, comprei tinta, pincéis, um balde e fomos até Berlim.
Mostrei-lhe o muro – realmente uma vergonha – expliquei-lhe que aquele paredão era a falta de liberdade; que famílias estavam separadas há anos e, quem tentasse fugir do lado Oriental para o Ocidental, era sumariamente executado.
Larissa não hesitou: “pegou o espírito da coisa”, mais um pincel e pichou em azul no muro: PAZ! BRASIL! Olhou para mim toda orgulhosa…
E ali, no olhar de minha filha, esvaneceu-se o comunista dentro de mim…”