O DIA EM QUE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ GRITOU, DENTRO DE UM RIO GELADO: “NÓS SOMOS FLORES TROPICAIS ! O QUE É QUE ESTAMOS FAZENDO AQUI ?”
A Globonews exibe neste sábado, às 21:05, com reprise no domingo, ao meio-dia e meia, uma entrevista com um dos mais importantes intelectuais latino-americanos : o mexicano Carlos Fuentes.
Ex-embaixador do México em Paris, professor visitante de universidades como a de Cambridge, na Inglaterra, Fuentes aponta, na entrevista, um novo fenômeno : o medo que o crescimento do Brasil inspira em outros países da América Latina.
Fuentes é amigo íntimo do Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez. Perguntei se ele já havia vivido, em companhia de Márquez, alguma cena digna de uma página do “realismo mágico”.
Fuentes não titubeou: citou a viagem que fez, no fim dos anos sessenta, à Tchecoslováquia, em companhia de Gabriel García Márquez e de Julio Cortázar, a convite de Milan Kundera. A Thecoslováquia – país que vivia sob as asas da União Soviética – experimentava, na época, a chamada Primavera de Praga, uma tentativa de criação de um “socialismo com face humana”. O problema é que a União Soviética não gostou nada da experiência liberalizante: Moscou mandou para Praga tanques que trataram de esmagar a Primavera. A linha-dura moscovita venceu.
Kundera tinha sido militante do Partido Comunista mas rompera com a linha dura desde o fim dos anos quarenta. Adepto da Primavera de Praga, chamou os amigos Márquez, Cortázar e Fuentes porque queria que eles testemunhassem o movimento.
A expedição do quarteto rumo à Primavera de Praga terminou produzindo uma cena inesquecível, digna de um conto: García Márquez mergulhado num rio gelado gritando “Nós somos flores tropicais !” .
Quatro décadas depois, é esta a grande lembrança que Fuentes guarda da viagem.
O relato de Fuentes:
“Minha relação com García Márquez é de longa data. São 40 anos de amizade. Não tenho como escolher só um momento. Escolho os 40 anos! Em 1968, um dos anos cruciais na História, houve os acontecimentos de maio em Paris e os de outubro, no México, além da Primavera de Praga. Como estava muito envolvido na Primavera de Praga, Milan Kundera convidou vários escritores a visitarem Praga. Era uma situação surreal, porque o exército soviético havia cercado Praga e estava esperando. Fingimos que Praga ainda era um lugar socialista democrático, mas já não era. Milan convidou também Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Também convidou Günter Grass. Depois, chamou García Márquez, Julio Cortázar e a mim. Estávamos em dezembro. Fazia muito frio. Continuávamos fingindo que o socialismo democrático tinha futuro na Tchecoslováquia, mas, quando chegou janeiro, já sabíamos que não era o caso. Milan Kundera nos disse que, em Praga, as paredes tinham ouvidos. Tudo que dizíamos era gravado. O único lugar seguro era a sauna. Fomos conversar na sauna, então. Mas Cortázar foi logo dizendo: “Não entro em saunas! Sou alto demais e magro demais. Eu me recuso a ser visto em uma sauna!”. García Márquez e eu acompanhamos Milan Kundera - que nos contou suas ideias sobre a Primavera de Praga. Estava muito quente na sauna, é lógico. Eu, então, disse: “Cadê o chuveiro? Estamos suando de calor!” Milan pediu que o seguíssemos. Abriu a porta e nos levou até o rio Vltava. Lá, ele nos jogou na água! García Márquez dava pulos e dizia: “Sou uma flor tropical!” Depois, voltou a mergulhar. Não me lembro do que disse, porque estava frio demais. Kundera ria um bocado. É uma lembrança. Imagine um rio em Praga em dezembro. Blocos de gelo passavam ao lado. E havia dois escritores latino-americanos dizendo: “Somos flores tropicais! O que é que estamos fazendo aqui?”
“Cortázar era um homem extraordinário. Extremamente inteligente e bondoso. Era um homem bondoso, gentil. Também era muito corajoso e se enfurecia com certos acontecimentos, especialmente com o que se viu na Argentina. Acima de tudo, foi um grande escritor. Contou grandes histórias. “Rayuela” é um grande romance. São monumentos ao gênio que foi Cortázar. Quando ele morreu repentinamente, eu estava em Nova York. Vi no jornal. Telefonei para García Márquez – que estava no México. Disse: “Gabo, tenho uma notícia terrível. Nosso grande amigo Julio Cortázar morreu!”. Houve um momento de silêncio. Depois, García Márquez disse: “Não acredite em tudo que lê nos jornais….”
PAULO FRANCIS: “EU ERA UMA CRIANÇA QUE CONFUNDIA DESEJO COM REALIDADE” ( (AQUI, O RELATO DE DOIS ENCONTROS COM O “LOBO HIDRÓFOBO”)
Faz quinze anos Paulo Francis morreu. Meus arquivos-não-tão implacáveis guardam o relato de dois dos tantos encontros que este locutor teve com a fera :
PRIMEIRA ESCALA : RIO DE JANEIRO, 1994
A presença de Paulo Francis intimida, porque ele é um caso clássico de “monstro sagrado” do jornalismo. Quando Jack Nickolson, no papel de âncora de telejornal de rede, vai visitar um escritório regional provoca em torno de si uma onda de silêncio reverente pontuado por olhares inquisidores, no momento em que, superior, entra na redação. A cena é do filme “Nos Bastidores da Notícia”.
Paulo Francis não chega a tanto, mas, quando sai, deixa ecos atrás de si. Fiz uma entrevista com ele para o “Fantástico”. Um dia depois do programa, Paulo Francis foi à redação, para, civilizadamente, dizer que tinha gostado do material. Fez uma cópia da entrevista em VHS. Ia levar para Nova Iorque. Segundos depois da saída de Francis, ouvi comentários de todo tipo. Um amigo, brincalhão, simpatizante do PT, saiu-se com essa :”Ok,agora só falta você fazer matéria com o outro Paulo – o Maluf” – uma referência enviezada às críticas contundentes que Paulo Francis passou anos fazendo à administração Erundina na Prefeitura de São Paulo. Outro amigo veio correndo me cumprimentar: “Gostei de ver ! Paulo Francis veio bater continência !”. Luiz Petry,excelente poeta que nas horas vagas é editor do Fantástico, confessa, ao lado, que aprendeu com Paulo Francis a escrever em estilo direto, com frases curtas. O que mais um jornalista pode querer, além de espalhar influências pelas redações ?
Hélio Fernandes rugiu na Tribuna da Imprensa : “Melancólica,humilhante,ridícula e até vergonhosa a apresentação de Paulo Francis no Fantástico. É natural que ele queira iludir os espectadores para vender o seu livreco”. Ninguém fica indiferente à fera.
Ao contrário de todas as aparências, Paulo Francis não late nem morde. É um “doce de pessoa” – dizem os que convivem profissionalmente com ele. Bem humorado, brincalhão, solta gargalhadas quando conta piadas sobre a aparição do “horto florestal” de Lílian Ramos no camarote de Itamar Franco, no Sambódromo. Parece sinceramente espantado quando lhe faço um breve relato das reações raivosas que provocou em Pernambuco quando deu uma pichada no suposto provincianismo do então ministro Gustavo Krause. Disse que depois elogiou a posição correta de Krause numa votação no Congresso. Além de tudo, chamou o Nordeste de região “desgraçada” – não os nordestinos.
“Desgraçado”, entre outras coisas, quer dizer “muito pobre,miserável,indigente”, informa o Dicionário Aurélio, nosso pai. Era,certamente, o que Paulo Francis queria dizer sobre o Nordeste. Por acaso é mentira ? Num comentário bem-humorado feito ao jornalista pernambucano George Moura – que o escolheu como tema de uma tese universitária – Francis disse, sorrindo, que o filme “Os Imperdoáveis” é sucesso em Pernambuco….
Provincianismo existe em Pernambuco e em Nova Iorque. Pausa para uma digressão na primeira pessoa do singular. Convidado a escrever um punhado de linhas sobre um livro escrito, impresso e lançado no Recife, vi meu texto, reescrito, ser trucidado por erros de concordância. Pensei em comprar uma página inteira para dizer, em matéria paga, que Pernambuco é o único lugar do mundo em que você é convidado a fazer um elogio a um livro e o que acontece ? Suas palavras são reescritas, desarrumadas,distorcidas e, finalmente, impressas na orelha do livro. Pode existir caso maior de provincianismo ? Isso também é sintoma de desgraça. Não quer dizer que se deva condenar o Nordeste a arder no quinto dos infernos. Ponto. Parágrafo.
Francis começa a falar.Vai logo escolhendo um político pernambucano entre os pouquíssimos de quem seria capaz de comprar um carro usado. É sinal de armistício com Pernambuco ? Pode ser.”Bandeira branca, amor”.
Francis diz estar plenamente convencido de que não tem influência alguma sobre o comportamento dos outros. Mas tem, sim. Ninguém precisa concordar com o que ele diz ,é claro. Mas a gente aprende com Francis a -pelo menos- tentar ser independente, a marcar posições, a não avalizar a mediocridade, a não seguir o rebanho geral com a docilidade de um boi zebu cabisbaixo a caminho do matadouro, a não referendar as imposturas dos poderosos. Ok, nem precisa tanto. Aprender com Paulo Francis a tentar escrever simples, direto, já é uma grande coisa. É tudo o que um jornalista deve querer.
O lobo vai falar. Senhoras e senhores, com vocês, Paulo Francis, o lobo hidrófobo – de volta às paradas de sucesso nas páginas do livro recém-lançado “Trinta Anos Esta Noite”, um texto que é um achado, porque mistura em doses certas a memória pessoal com a memória nacional.
1-De qual dos políticos brasileiros você compraria um carro usado ?
Francis – De vários. Tasso Jereissati, Fernando Henrique Cardoso – a quem dou um crédito de confiança grande, porque sei que é uma pessoa honesta, que vem fazendo o melhor que pode. Como é o nome daquele prefeito do Recife ? Jarbas Vasconcelos. Três já bastam.
2-Você é frequentemente criticado porque teria se transformado de revolucionário em conservador. Você aceita essas críticas ?
Francis – Passei de criança a adulto. Eu era uma criança que confundia desejo com realidade. Eu tinha certos desejos -que eram fraternais com relação à minha situação privilegiada e à situação desprivilegiada de outras pessoas. Mas descobri, ao ver o mundo aí fora, que a maneira de resolver esses problemas não é a maneira pregada pelos principais grupos populares aqui do Brasil. A grande transformação foi esta. Vi que os países ricos são paises que se abrem para o capital e fazem iniciativa privada. Como é que você vai empregar os brasileiros sem iniciativa privada ? Vai fazer de todo mundo funcionário público ? As repartições públicas já estão falindo ! E com esses milhões que estão aí o que é que você vai fazer ? É preciso abrir desde botequim a fabrica.Isso só com capital privado !
3-Você confessa hoje que tem simpatias pela social-democracia. O caminho para o Brasil pode ser esse ?
Francis – Certamente. A social democracia é imperfeita -sem dúvida- mas é a coisa mais justa que há. Porque garante o mínimo necessário a quem não pode lutar pela sobrevivência e, ao mesmo tempo, permite que quem pode se expanda sem ditadura sem nada. Veja os países mais avançados do mundo : sÃo os escandinavos. A própria Alemanha é uma social-democracia,a França … E os Estados Unidos são uma social democracia – desorganizada, mas, se você falar assim nos Estados Unidos, eles acham que você é comunista. O que tem de auxílio às pessoas necessitadas é igual a qualquer social-democracia européia.
4-Você se considera o último representante de um tipo de jornalista que tem opinião própria e ocupa espaço privilegiado na grande imprensa ? Hoje,você é um caso único no Brasil…
Francis – Há vários outros que estão por aí. A minha tendência – escrever, discutir,ter opiniões – caiu muito de moda. A tendência hoje é fazer tudo curto, tudo pequenininho – mas trabalho também no curto e no pequenininho. Tanto é que faço comentário de um minuto na televisÃo. Mas há um desequilíbrio hoje entre as duas tendências. O período da minha juventude foi um grande período jornalístico, com Carlos Lacerda, Joel Silveira, Moacyr Werneck de Castro, Paulo Silveira, Octavio Malta – são incontáveis. Todos eram pessoas com opiniões definidas que se expressavam. Não estou nem julgando tendências. Só estou falando da qualidade. Hoje,na imprensa brasileira, há uma falta grande de gente que discute e dá opiniÕes. Eu de fato sou um dos que vai contra a corrente.
5-Quando publicou o romance Cabeça de Papel,você ficou deprimido com a falta de repercussÃo cultural aqui no Brasil.Isso ainda assusta você ?
Francis – NÃo. Resolvi botar o freio nos dentes e ir em frente(rindo). Você deve fazer aquilo que quer. “Trinta Anos esta Noite” é um livro que senti muito prazer em escrever. Afinal de contas, 1964 foi o acontecimento decisivo na minha geração. Eu tinha a idade de Cristo – 33 anos. O mundo que eu imaginava era completamente diferente do que viria a acontecer. As gerações mais jovens – que não têm idéia do que foi l964 -sofreram sem saber uma influência profunda do acontecimento. Por isso, eu quis tornar público o meu depoimento, porque há poucas histórias de 1964. Não estou dizendo que a minha história seja a única. Mas é uma versão da história que eu conheço e testemunhei. Não pretendo saber o que estava na cabeça de A,B ou C.
6-Como é que você espera ver o Brasil nesses próximos anos ?
Francis – Eu li em sete de fevereiro de 1994 uma nota surpreendente -para mim,pelo menos – no Wall Street Journal : em 1992 e 1993,entraram mais de 50 bilhões de dolares no Brasil. Você sabe a que isso se deve ? A pequenas entreaberturas que o senhor Fernando Collor fez quando presidente, como baixar tarifas, por exemplo. Se o Brasil abrir,entram 500 bilhões de dólares ! Vai haver emprego e vai haver prosperidade. É essa a minha esperança.
7-Em qual dos atuais presidenciáveis você apostaria uma ficha ?
Francis – Não cheguei ainda a uma conclusão. Certamente não apostaria em Lula. Não há a menor dúvida, porque ele quer um retrocesso quando fala em reestatizar .O maior problema brasileiro são as estatais ! A grande dívida interna brasileira, a razão central da inflação – não a única – é esta máquina estatal que devora os recursos e toma todo o capital.Você não pode abrir uma empresa porque os juros estão na lua ! Pela constituição,o governo não pode imprimir dinheiro. Então,ele tem de tomar dinheiro emprestado. Para emprestar a um governo desse,você tem de emprestar a juros altíssimos. Quanto mais diminui o dinheiro, mais aumentam os juros.
8-E se JoÃo Goulart tivesse resistido em 1964 ?
Francis – Você teria certamente o início de uma guerra civil,mas, dado o temperamento brasileiro, haveria um acordo, um armistício dos militares. Talvez se convocasse uma eleição. Nós estávamos a um ano de uma eleição. A verdade era essa. Teríamos com toda certeza uma guerra civil, porque Jango tinha amplas condições de resistência. Quanto à guerra civil, tenho certeza. Quanto ao acordo, estou especulando – haveria um acordo entre os militares para o cessar-fogo. Haveria uma eleição que estava prevista para o ano seguinte, onde Carlos Lacerda defrontaria Juscelino Kubitscheck.
9-Jango estava mal informado sobre a conspiração ?
Francis – A meu ver, estava totalmente desinformado, porque ele nÃo tinha uma assessoria capaz,o que é um problema aliás muito de político brasileiro. A assessoria militar de Jango era especialmente fraca. Eu me refiro a Assis Brasil – que era um homem de grande coragem pessoal,general corajoso pra chuchu,mas um homem entediado. Não informava Jango da disposição de outros generais, como deveria informar.
Vou fazer uma revelação a você : participei como espectador de uma reunião -nem contei no livro, é uma coisa confidencial,não posso nem dar o nome das pessoas. Mas participei de uma reunião de generais que me mostrou -a mim e a outros civis- como os quadros do Terceiro Exército que tinham empossado Jango estavam sendo pouco a pouco substituídos por generais hostis ao presidente.
10-Quem foi a vedete que ia ver João Goulart no exílio ?
Francis – Há uma frase em inglês que diz:”Kiss and tell”-beijar e contar.Sou inteiramente contra essa frase….(rindo).
11-Qual foi a melhor e a pior herança deixada por 1964 ?
Francis – A melhor foi a do crescimento econômico. Pela estrutura montada no governo Castelo Branco pelo senhor Roberto Campos e pelo senhor Gouveia de Bulhões, o Brasil nos períodos seguintes -no governo Médici- cresceu como nunca na história. A pior foi a despolitização total do nosso povo- uma espécie de névoa que caiu sobre a sociedade civil brasileira e arruinou várias gerações que poderiam ter sido líderes políticos e não vieram a ser. Hoje,estamos aprendendo duramente com esses líderes de quinta categoria que temos aí.
12-Você diz que quando era criança parecia um cão hidrófobo .E hoje,você se parece com o quê ?
Francis – Que tal um lobo hidrófobo ?
13-O fato de ser imitado em programas de humor incomoda voce ?
Francis – De jeito nenhum.Acho que se voce e uma figura publica – como e o caso de um jornalista de televisão – voce tem de estar preparado para tudo. A imitação é a mais expressiva forma de lisonja – esta é que é a verdade.
14-Qual o personagem mais interessante da história recente do Brasil ?
Francis - Getúlio Vargas inventou o Brasil moderno, o Brasil uniformizado. A influência de Getúlio Vargas é tão positiva quanto nefasta. Ele é contraditorio. O sujeito mais difamado do Brasil é um homem que participou de todas as decisões econômicas importantes do Brasil. Chama-se Roberto de Oliveira Campos – que, indiscutivelmente, é uma presença intelectual fortíssima na vida brasileira, mas negada pelos seus inúmeros inimigos, tanto quando Getúlio Vargas foi uma presença política muito mais forte do que qualquer outra pessoa no nosso tempo.
15-Quando é afinal que o Brasil vai ser um pais rico e feliz ?
Francis – O Brasil só não é rico porque não quer. Viajei para o Brasil com o diretor de uma grande empresa americana – que adora o nosso país.Vai se aposentar aqui. Fica estupefacto com as chances que nós perdemos de ficarmos ricos.Temos de vencer uma certa infantilidade que há no nosso temperamento,uma confusão de desejo com realidade. Mas felicidade é um conceito mais complexo. Ser rico não significa necessariamente ser feliz. Mas é claro que ficar rico ajuda bastante. O Brasil tem um dever consigo próprio de eliminar as necessidades básicas do ser humano – e o Brasil não cumpre isso,os governos não cumprem isso,a nossa sociedade não cumpre isso”.
SEGUNDA ESCALA : LONDRES, 1996
Cenas londrinas. O locutor-que-vos-fala passa numa livraria num fim de tarde, para, num exercício de masoquismo, checar o QI (Quociente de Ignorâncias ). A visão de vitrines abarrotadas de livros que jamais serão lidos, por absoluta falta de tempo, provoca temores íntimos.
Diante de prateleiras superlotadas de títulos novos, um sentimento parece inevitável: é frustrante saber que o Quociente de Ignorâncias permanecerá alto até o dia do blecaute final. Resta um consolo: deve ser saudável a compulsão íntima de passar o resto dos dias, meses e anos em silêncio aboluto, numa ilha do Oceano Pacífico, a milhares de quilômetros de qualquer aglomeração humana, em companhia de livros que – estes sim – fazem falta.
“O inferno são os outros”, já dizia o velho Jean Paul Sartre, coberto de razão da primeira vogal à última consoante. Desde então, não surgiu sob o sol ninguém capaz de alinhavar dois argumentos razoáveis contra esta verdade indiscutível. Bendita seja a solidão dos Robinsons Crusoés. Porque eles terão, na solidão de duas ilhas imaginárias, tempo e silêncio para ler todos os livros que ninguém jamais lerá.
O locutor-que-vos-fala vai articulando este discurso silencioso entre uma e outra prateleira de uma livraria, em Piccadilly, quando é surpreendido por um tapa ( amistoso ) nas costas. Surpresa ! Quem se materializa, ali, numa tarde de sábado da primavera de Londres ? O lobo hidrófobo em pessoa – Paulo Francis.
“Vendo os clássicos ? Meus parabéns: é a única seção que presta aqui…” – exclama, enquanto chama a mulher, a simpática Sônia Nolasco. Um dia antes, no escritório da TV Globo, Francis falava do holocausto nefrológico ocorrido em Caruaru. Reclamava da reação tímida do governador Miguel Arraes, sinal de “desprezo pela opinião pública”. Queixava-se também do tempo insuficiente dedicado pelas TVs à cobertura da tragédia. Comparou: os telejornais noturnos dos Estados Unidos levaram ao ar reportagens de dez minutos sobre o caso daquela menina que morreu ao tentar pilotar um avião. Se uma tragédia como a de Caruaru tivesse ocorrido nos Estados Unidos – diz Francis – “dez repórteres estariam lá entrevistando todo mundo”.
A Editora Objetiva publica um livro que o jornalista pernambucano George Moura escreveu sobre um Paulo Francis praticamente desconhecido – o ator, diretor e crítico de teatro. A pesquisa teve cenas de odisseia: George Moura localizou, em velhos exemplares do já extinto Diário Carioca, nada menos de 1.238 críticas de teatro assinadas por Paulo Francis, ali pelo final de década de cinquenta, início da década de sessenta.
A redescoberta dos artigos tem um sabor extra: há décadas, Paulo Francis já exercitava, naquele estilo de frases curtas, sem rodeios, a indispensável “metralhadora giratória”. Tal virulência faz falta no jornalismo cultural que se pratica no Brasil.
A virulência do jornalismo cultural de Paulo Francis – exercido com brilho nas críticas teatrais – deve ser saudada com fogos. É óbvio que ninguém precisa concordar com os julgamentos de valor que ele faz. De resto, Francis não é candidato a nada, não anda à procura do voto de ninguém. Prefere dizer o que pensa. E o que ele pensa não se adapta à mentalidade mediana fundada sobre boas intenções “politicamente corretas”.
O alvoroço provocado por um comentário de Francis sobre o Nordeste é típico. Num artigo, ele chamou o região de “desgraçada”. O dicionário ensina que o adjetivo desgraçado se aplica a quem é “muito pobre, miserável, indigente” – cenário extremamente familiar a nós, nordestinos. Ou será que não ? É facílimo constatar. Basta passar quinze minutos em qualquer ruela da zona da mata, habitada por gente infestada de esquistossomose, crianças que jamais tiveram a chance de se alfabetizar, trabalhadores braçais que cumprem a rotina animalesca de trabalhar feito bichos para conseguir o mínimo necessário à sobrevivência – e assim por gerações & gerações & gerações.
A convivência com a miséria, já incorporada à paisagem nordestina, cega o observador. De tão visto, o quadro de absurdos passa a soar tão natural quanto o por-do-sol. Não é, obviamente. Acostumado a ver a fome como mera referência literária, qualquer europeu bem informado certamente se chocaria com a visão da desgraça em estado bruto nos grotões nordestinos. Se a paisagem da miséria não é “desgraçada”, então o que será ?
…Mas o livro do pernambucano George Moura sobre Paulo Francis são entra, obviamente, na discussão semântica sobre a palavra “desgraçado”. Apenas mostrará que um jornalismo cultural exercido com independência, com rigor de julgamento e com senso crítico extremado é um produto que faz bem a qualquer país em qualquer tempo.
Admiradores ou desafetos de Paulo Francis ganharão com a descoberta deste ex-crítico de teatro que agora, neste fim de tarde de um sábado de primavera, transita anônimo entre prateleiras de uma livraria no centro de Londres.
(*) O artigo “Quatro ou Cinco Coisas que Devem ser Ditas sobre o sr. Paulo Francis” foi publicado em maio de 1996, no Diário de Pernambuco. Meses depois desta expedição londrina, Francis estava morto. That´s life.
A Revista da TV ( O Globo ) pede que o locutor-que-vos-fala diga o que vê e viu na TV. O questionário foi publicado neste domingo. Voilà a íntegra :
O GLOBO: Qual é a sua a primeira lembrança televisiva?
GENETON MORAES NETO: quando criança, via “Além da imaginação”. Não deveria. Ia dormir morrendo de medo de que um daqueles personagens – em geral, mortos que voltavam de outra dimensão – reaparecessem de repente no meio da madrugada, naquela rua do bairro da Torre, no Recife. Jamais perdia um episódio de “O fugitivo”. O Dr. Richard Kimble, médico que passava a vida fugindo de cidade em cidade para tentar escapar da acusação injusta de ter matado a mulher, era ídolo absoluto. Adulto, comprei DVDs das duas séries. A gente passa a vida procurando – em vão – reconquistar o paraíso perdido.
O que falta na programação?
GENETON: Eu gostaria de ver – quem sabe, numa madrugada – um programa jornalístico que tratasse de temas que a TV aberta descartou nos últimos tempos.
Cena mais marcante que lembra de ter visto na TV.
GENETON: Minha lista não difere dos clássicos: a morte de Kennedy, os astronautas na Lua, os aviões do 11 de Setembro. Uma cena marcante que vi aos quatorze anos – quando passava férias na casa de tios, no já remotíssimo ano de 1971 – teve a TV como “personagem”: enquanto a televisão transmitia imagens de astronautas da Apollo 14, a cozinheira dispensou intermediários e foi para a janela observar diretamente a Lua. Guardei aquela cena: uma mistura de comovente ingenuidade com sincera curiosidade. A propósito: um dos primeiros “choques de realidade” quem me deu foi a TV: quando tinha exatamente dez anos, fui chorar escondido no quarto, depois de ver no “Repórter Esso” que Walt Disney tinha morrido. Pronto. Falei.
Gosta de séries?
GENETON: A versão original de “The office” é genial. Tudo ali deu certo. Rick Gervais é gênio: cínico, politicamente incorreto, provocador, naturalmente engraçado. Sou anglófilo em matéria de humor e de imprensa. Ninguém faz humor como os ingleses. E ninguém faz TV (nem jornais) como eles, com as exceções de praxe. Das brasileiras: “O auto da compadecida”, dirigida por Guel Arraes, é tudo o que uma teledramaturgia brasileira pode ter de bom.
Que atração você não perde?
GENETON: Sou o clássico zapeador. Passo sempre pela Globo News para ver se o planeta sofreu algum abalo ou para ouvir algum entrevistado interessante. “Chegadas & Partidas”, com Astrid Fontenelle, no GNT, é excelente, sem pieguice. É programa para ver sem ninguém por perto. Porque é chororô na certa. Pronto. Falei. Gosto do “CQC” desde que começou. O clima no “Esquenta” é sempre fervente. Quando posso, não perco o “Late show” com David Letterman. “Altas Horas” vale a vigília. Jô Soares é uma parada quase obrigatória. Marília Gabriela é uma boa entrevistadora. Sempre passo pelo Canal Brasil. Os silêncios de Paulo César Peréio entrevistando são ótimos. E devo ter me esquecido de outros tantos.
E não vê de jeito nenhum?
GENETON: Corrida de cavalo. Leilão de joia. Partida de golfe. Pregação religiosa, seja qual for. Não há qualquer motivo especial: é por pura preguiça. Ou alguma idiossincrasia. Mas, a princípio, não me recuso a ver nada. Vejo programas como aqueles do NGT em que apresentadores fazem os trejeitos e a empostação de Silvio Santos, com bailarinas desajeitadas fazendo caras e bocas para a câmera, cenários toscos, “atrações” que dublam os números musicais… Imperdíveis.
Programa que você adora e que ninguém imaginaria.
GENETON: Como passo por quase tudo, eu mesmo não me surpreendo com as paradas que faço. De qualquer maneira, se eu parar no momento em que o Freddie Mercury Prateado tenta fazer o segurança rir, no “Pânico na TV”, fico por ali. Se estiver passando “Backyardgans” e Beatriz (neta de quase três anos) e João (neto de quase dois) estiverem por perto, vejo até o fim. O olhar atento dos dois vale mais do que qualquer outra coisa.
Qual foi a entrevista mais memorável que você fez na TV?
GENETON: Reportagem é a única coisa que me interessa no jornalismo desde que comecei, aos dezesseis anos de idade. É assim até hoje, aos 55, quando faço contas para bater em retirada. Assim, caminhei pelo cais de onde saiu o Titanic, em companhia da mais jovem sobrevivente do naufrágio, Milvina Dean. Tive a chance de entrevistar o promotor britânico que, no Tribunal de Nuremberg, mandou para a forca os maiores criminosos de guerra nazistas. Duvidei da confissão de inocência que ouvi do homem que matou o herói negro Martin Luther King. Não vou me esquecer dos relatos que ouvi de quatro astronautas que pisaram na Lua. Faz pouco tempo, tive a chance de entrevistar, simultaneamente, dois Prêmios Nobel: o ex-presidente Jimmy Carter e o arcebispo Desmond Tutu. Isso acontece uma vez na vida. Fazer jornalismo pode ser simples: é ver, ouvir e passar adiante – da maneira mais fiel e mais interessante possível. Ou seja: produzir memória. É o que tento fazer.
E qual foi a mais difícil?
GENETON: As entrevistas com os generais Newton Cruz e Leônidas Pires Gonçalves, feitas para a Globo News, tiveram momentos difíceis, porque, várias vezes, eles me “devolviam” perguntas – eventualmente, em tom irritado. Nem sempre respondi, porque meu papel, ali, não era o de fazer “discurso”, mas o de ouvi-los, para levar ao público o que duas figuras importantes do regime militar tinham a dizer. Repórter não pode ser militante. O maior pecado que um jornalista pode cometer é exercer patrulhagem ideológica na hora de entrevistar alguém ou de tratar de um assunto. Quer ser militante ou patrulheiro? Inscreva-se num partido político.
Quem você gostaria que te entrevistasse?
GENETON: Um dos outros mil pecados capitais de jornalistas é o fato de se julgarem mais importantes do que realmente são. Em geral, a pretensão descabida resulta em cenas risíveis. E seria “pretensioso” eu escalar um entrevistador. Feita esta ressalva, quero dizer que acho uma empulhação esta história de que “jornalista não é notícia”. Já li centenas de matérias interessantes sobre jornalistas. Para aprender, eu leria uma entrevista de duzentas páginas de Elio Gaspari. Por que não? Fiz uma entrevista de vinte horas com Evandro Carlos de Andrade, ex-diretor de jornalismo da TV Globo. Tinha o que contar. Por que não? Devolvo, aqui, a gentileza que meu amigo Pedro Bial me fez, nesta mesmíssima seção, ao dizer que me escolheria como entrevistador e entrevistado.
E quem ainda falta entrevistar?
GENETON: A lista daria para encher um catálogo telefônico. Mas – de cara – adoraria ter a chance de entrevistar George W. Bush e Fidel Castro. São dois grandes personagens jornalísticos. Sem patrulhagem ideológica, eu teria uma enorme lista de perguntas para fazer a cada um dos dois.
UMA CENA DOS BASTIDORES DO REGIME MILITAR : O CORONEL QUE PODERIA TER SIDO PRESIDENTE
Bato na porta da casa de um personagem que poderia ter sido presidente da República durante o regime militar.
(Aos que desembarcaram ontem no Planeta Brasil: nem faz tanto tempo, a escolha do nome de quem ocuparia o posto de presidente da República não era tarefa dos milhões de eleitores. Dependia da vontade de um fechadíssimo colegiado de militares. O Congresso Nacional apenas referendava o nome de quem já tinha sido escolhido nos quartéis).
Quando o marechal Costa e Silva morreu, em 1969, o nome do coronel da reserva Jarbas Passarinho chegou a ser cogitado para sucedê-lo na Presidência da República.
Quem resolveu botar o nome de Passarinho na roda foi um general que, por coincidência, viria a ser o ungido : Emílio Garrastazu Médici. Coronel da reserva, Passarinho ocupava o Ministério do Trabalho no governo Costa e Silva.
O plano de Médici – o de submeter o nome do coronel da reserva Jarbas Passarinho ao crivo do colegiado verde-oliva como possível sucessor de Costa e Silva - não prosperou. Quando, por fim, foi indicado para a Presidência, o general Médici nomeou Passarinho para o Ministério da Educação. Em resumo : o homem que Médici queria ver na presidência terminou virando ministro do próprio Médici. Adiante,o general emitiria outro sinal de que queria ver Passarinho na Presidência.
Quem descreve estas cenas de um tempo em que voto popular para Presidência era um luxo inalcançável é o homem que esteve no centro destas cenas de bastidores do poder militar.
Ei-lo: o ex-ministro, ex-senador e ex-governador Jarbas Passarinho mora no fim de uma rua de pouquíssimo movimento no Lago Norte, em Brasília.
Solitário, contempla os livros da biblioteca abarrotada. Lá estão volumes e volumes de memória política e militar de personagens de todos os “matizes ideológicos”. Aqui, a ex-dama de ferro britânica Margareth Thatcher se mistura com o trotskista Jacob Gorender, autor de um volume que passa em revista a luta armada contra a ditadura militar.
Nossa expedição ao refúgio do ex-ministro rendeu um programa, o DOSSIÊ GLOBONEWS. Tive o cuidado de levar para a entrevista o áudio da famosa reunião em que o regime militar decretou o AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968. Ao justificar por que estava votando a favor do ato, o então ministro Passarinho fez, naquela sexta-feira aziaga de 1968, duas declarações marcantes. Primeiro, admitiu, sem meias palavras, que o país estava mergulhando numa ditadura. Em seguida, disse que mandava “às favas” todos os “escrúpulos de consciência”. Tanto tempo depois, o ministro ouviu, circunspecto, a gravação. Disse que, sob circunstâncias idênticas, assinaria de novo o ato, porque os chefes militares o convenceram de que, dentro da normalidade democrática, não conseguiriam manter a ordem. Certo de que,um dia, seria cobrado por ter assinado um ato que teria um efeito devastador sobre a democracia, Passarinho teve o cuidado de fazer um bilhete manuscrito, endereçado à mulher - D. Ruth – e ao filho mais velho. A reunião do AI-5 foi, claro, um dos temas da entrevista. O vídeo pode ser visto aqui:
http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1622262-17665-337,00.html
Dias depois, voltei a procurá-lo, para que ele descrevesse cenas que não chegaram a ser abordadas na gravação para a TV : o dia em que o general Médici emitiu um sinal de que queria ver Jarbas Passarinho entronizado no Palácio do Planalto.
A gravação:
O senhor foi cotado para suceder o presidente Costa e Silva. Em algum momento, o general Médici tratou com o senhor sobre este assunto ?
Jarbas Passarinho: “Daniel Krieger (senador pelo Rio Grande do Sul) conta que, quando Médici comandava o III Exército, o chamou a Porto Alegre para dizer que gostaria de levar ao comando uma chapa para a sucessão de Costa e Silva. A chapa que Médici submetia a Krieger seria: eu para a presidência da República e Daniel Krieger para a vice.
Num ato de extrema dignidade, Krieger, que era nosso guru político, concordou. Eu tinha passado pouco tempo no Senado naquele tempo, porque fui logo para o ministério. Médici trouxe a sugestão. E não foi bem sucedido na proposta de apresentar esta chapa ao colégio eleitoral”.
A chapa não foi bem sucedida porque o senhor não era general : era apenas coronel ?
Jarbas Passarinho: “A cena é atribuída a um dos generais mais prestigiosos – que disse: ”Gosto muito de Passarinho, mas não bato continência para coronel”…Isso foi muito falado – e nunca admitido”.
A frase é atribuída ao general Orlando Geisel…
Passarinho: “A frase foi atribuída a ele, mas não confirmada….”
Em algum momento na sucessão de Costa e Silva o general Médici chegou a falar com o senhor ou só falou com o senador Daniel Krieger ?
Passarinho: “O general Médici falou com Krieger, mas também com o Estado Maior do III Exército,em Porto Alegre. O coronel Hestel,membro do Estado Maior, me comunicou que o general Médici tinha dito a eles que iria fazer a proposta”.
Obviamente, a possibilidade de ser presidente da República lhe passou pela cabeça. O senhor chegou a pensar no que faria ?
Passarinho: “Não cheguei, talvez porque tivesse chegado, quase tranquilamente, à conclusão de que era, no caso da sucessão de Costa e Silva, o momento era muito prematuro para mim. Já no caso da sucessão do próprio Médici, ele teve uma palavra que fica comigo. Vim dos Estados Unidos, onde estava numa reunião dos ministros do trabalho das Américas. Médici me recebeu na Ilha do Governador, no Rio, onde estava preparando o governo. Neste momento, ele mostrou claramente, com palavras, algo que tenho guardado comigo….”
Ou seja: ele citou o senhor como o possível sucessor ?
Passarinho: “Houve um fato concreto: Médici estava fumando. Acabou de fumar. Enrolou o que restou do cigarro no maço e me passou aquilo. Como eu não fumava, na hora não entendi o gesto. Médici, então, me disse: “Quero lhe passar o bastão”. O governo Médici não tinha nem começado! Àquela altura, sete dos generais da minha turma já tinham as quatro estrelas. Hélio Fernandes tinha dito,na Tribuna da Imprensa, que eu não era benquisto. Os sete generais, então, escreveram uma carta em que falavam, claríssimamente, sobre o apoio que me davam”.
A cena do cigarro foi a última vez em que ele insinuou que o senhor poderia ser indicado ?
Passarinho: “Sim. Seis meses depois, numa conversa com Médici, eu disse: “Presidente, tenho muitas dificuldades, entre nós mesmos…”. E ele fez com a cabeça um sinal de “sim”, sem dar uma palavra”.
As ”diferenças” eram militares ?
Passarinho: “Não. Eu não sentia diferenças militares, porque nunca senti agressão neste sentido. O Exército sempre foi muito honroso para mim, o tempo todo, em todas as funções posteriores que exerci. Deu-me o título de professor emérito da Escola do Estado Maior e o diploma de doutor em ciências militares”.
As diferenças eram políticas, então. Havia grupos que não queriam que a candidatura Passarinho prosperasse. Que grupos eram esses ?
Passarinho: “Não identifiquei. Quando falei com o Presidente Médici, sabia que havia resistências a mim. Chegaram a pensar que eu era “infiltrado” na Revolução….”
Quanto à frase atribuída ao general Orlando Geisel – de que não bateria continência para um coronel : vem daí a distância do senhor em relação ao presidente Geisel ?
Passarinho : “A distância minha com Geisel era muito marcada porque o gabinete, chefiado na Casa Civil pelo general Golbery, tinha, contra mim, argumentos políticos que envolviam o Pará. Defendiam o rapaz que foi meu aluno, meu cadete e, depois, meu tenente, com quem fui capitão e com quem eu tinha rompido- o tal do Alacid ( Passarinho refere-se a Alacid Nunes – que foi indicado pelo general Geisel,em 1978, para governar o Pará). O general Moraes Rego, meu colega na Escola Preparatória de Cadetes, em Porto Alegre, também era deste grupo – que procurava me atingir de qualquer maneira, ainda que sem nenhum motivo. Não apresentavam nenhum fato real. Era apenas : “Não cabe, não tem sentido” . De qualquer maneira, não fiz nada no sentido de voltar ao governo do Pará. Não tinha nenhuma aspiração. O meu desejo era ficar junto com os meus. Não iria me separar da família aqui em Brasília. Fui, então, deslocado para o posto de líder do governo Figueiredo. O presidente Geisel,numa carta que tenho, diz que não teve nada com a escolha,mas que compreendeu que minha ida para o governo Figueiredo era muito mais importante. O “ciclo militar”, aliás, já estava declinante. Chamo de “ciclo”. Regime militar o que conheci no Peru. Quando fui lá, em visita oficial, o general Alvarado começou o discurso dizendo assim: “O governo das Forças Armadas e do povo do Peru”. Isso é que entendi como governo militar”.
O principal motivo,nos anos dos governos militares, foi, afinal, o fato de a patente do senhor não ser a de general ?
Passarinho: “Nunca foi confirmada nem nunca foi desmentida esta história de que Orlando Geisel teria dito que não bateria continência para coronel. Orlando Geisel me tratava muitíssimo bem, diferente do Ernesto Geisel- que tinha reservas que membros do gabinete constituíram…Quando já estávamos no governo Figueiredo, Golbery me disse : “Eu não podia comparar Alacid com vosmicê”…Golbery tinha a mania de chamar os outros de “vosmicê”. Mas disse que foi subordinado do general Cordeiro de Farias. E Cordeiro era inteiramente ligado a Alacid – que foi ajudante de ordens…”.
O fato de não ter sido,no final das contas, Presidente da República virou uma frustração para o senhor ?
Passarinho: “Digo, com absoluta sinceridade, que não virou”.
MEMÓRIAS LONDRINAS: O DIA EM QUE MARGARETH THATCHER, A DAMA DE FERRO, DISSE QUE NÃO CONSEGUIRIA SE DEFINIR EM UMA SÓ PALAVRA
Os arquivos não tão implacáveis do locutor-que-vos-fala guarda este relato de um breve encontro, em Londres, com a ex-primeira ministra britânica Margareth Thatcher – que acaba de ser retratada por Meryl Streep no filme A Dama de Ferro :
Lá vem ela, lá vem a baronesa. Vista a dois palmos de distância, Margareth Hilda Thatcher é um atestado ambulante de que o poder, quando falta, envelhece os poderosos. As rugas da pele, pálida como uma folha de papel, vão redesenhando os traços do rosto. Setenta anos, afinal, não são setenta dias. A pele pende do pescoço. A magreza, adquirida depois que deixou de ser a Dama de Ferro para se transformar na Baronesa, surpreende.
Assessores cochicham que o abatimento se deve a um tratamento dentário. Se um mero tratamento dentário é capaz de tal devastação, então Papai Noel existe, a lua é vermelha e Edmundo Animal é um modelo de bom comportamento. O vestido, longo até os calcanhares, é de um azul sóbrio. Um broche – será diamante ? – reluz no peito esquerdo da Dama.
Quando começa a falar diante de um púlpito, a baronesa desfaz a má impressão causada pela aparência abatida. O grande tema deste final de século mobiliza todas as forças da Dama de Ferro: qual deve ser, afinal, o papel do Estado na vida das sociedades ? A resposta de Thatcher é mais do que clara : o Estado deve se intrometer o menos possível na vida do cidadão comum. “Só um governo mínimo pode tornar máximo o potencial de cada um”, repete, como se estivesse recitando um mandamento que não admite contestação.
A oradora Thatcher ganha de novo o viço que parecer ter se evaporado. A plateia – duas mil pessoas aglomeradas no Westminster Central Hall em reverente silêncio para ouvir a vestal dos conservadores – explode em aplausos quando a baronesa solta frases fortes com aquele tom de voz de professora exigente diante de alunos relapsos.
Cada frase é pontuada por gestos incisivos coreografados com o punho fechado. “Eu detesto ser oposição . Detesto ! Porque oposição só fala, fala, fala. Não faz nada. E eu sou de fazer”. Delírio no anfiteatro. Depois de reinar por onze anos e meio como soberana da política inglesa – entre 1979 e 1990 -, Thatcher passou o bastão para o também conservador John Major. Mas, se medalhões da política se recusam a vestir o pijama da aposentadoria quando se retiram da cena, por que a Dama de Ferro iria vestir a camisola ? “Meu elixir secreto é o trabalho” – ela avisa aos navegantes. “Não penso em me aposentar”.
Se quem foi primeira-ministra nunca perde a majestade, Thatcher recebe por onde passa reverências dispensadas a super-estrelas. Além de exalar carisma, a baronesa exercita uma qualidade reconhecida até por adversários : a paixão com que defende suas ideias – com um fervor que frequentamente traz pitadas de autoritarismo. Que o digam os ministros defenestrados do gabinete por discordarem da Dama de Ferro durante os anos em que ela reinava. Ainda assim, a legião de admiradores é imensa.
Fãs disputam com guarda-costas um palmo de espaço para um foto ao lado da baronesa, antes, durante e depois da conferência no Westminster Central Hall. Um admirador arranca murmúrios da plateia ao pagar um mico sem o menor constrangimento: depois de faturar um autógrafo, oferece a ela uma medalha, beija-lhe a mão e quase se ajoelha diante da musa, em sinal de reverência.
Um japonês solitário quer porque quer tirar uma foto ao lado de Thatcher: implora ao vizinho na plateia que não perca a chance de registrar para a posteridade, com uma dessas máquinas fotográficas amadoras, a pose que ele fará ao lado de Thatcher na hora de colher um autógrafo.
Um funcionário da editora termina virando fotógrafo improvisado: fica encarregado de pegar máquinas fotográficas dos fãs para flagrá-los ao lado da estrela. Assessores e guarda-costas delicadamente vão guiando os intrusos para a porta de saída, depois que cada um desfruta dos quinze segundos regulamentares diante de Thatcher – tempo suficiente para a obtenção de um livro autografado.
Pergunto à Dama de Ferro se ela poderia se definir em uma só palavra. “Você quer que eu me defina em uma só palavra ? ” – desta vez, ela é que me pergunta, com ar de espanto.”Não, não posso me definir em apenas uma palavra. Vou assinar o meu nome e escrever a data de hoje. Thank you very much !” – diz a baronesa, com aquela polidez estudada de quem ouve todo tipo de pedidos. A essa altura, um segurança que não faria feio como adversário de Rambo numa luta de boxe encerra a tentativa de entrevista.
Volta e meia, a Dama de Ferro pousa de novo nas manchetes. Virou uma espécie de oráculo dos conservadores. A última investida de Thatcher é o recém-lançado segundo volume de memórias – um tijolaço de 656 páginas batizado de The Path to Power. O lançamento do livro se transforma num excelente pretexto para que ela repita a pregação contra os demônios do Estado onipresente:
- O século vinte assistiu a uma experiência política e econômica sem precedentes. O modelo de sociedade baseado no controle centralizado foi tentado de várias formas – seja através do totalitarismo comunista ou nazista, seja através dos vários modelos de social-democracia e de socialismo democrático, seja através de um corporativismo tecnocrático não-ideológico. O modelo descentralizado liberal também foi tentado – principalmente, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos dos anos oitenta. O balanço do século mostra uma mensagem irresistível: qualquer que seja o critério de julgamento, seja ele político, social ou econômico, o coletivismo fracassou. Já a aplicação dos princípios clássicos liberais tem transformado países e continentes para melhor.
A Dama de Ferro garante que esta foi “a mais importante vitória política do século”. Para ilustrar o que diz, recorre a exemplos do dia-a-dia do cidadão comum: “O que as pessoas querem é poder aproveitar os frutos do próprio trabalho, é gastar o próprio dinheiro do jeito que quiserem, terem suas próprias casas, em benefício dos seus próprios filhos”.
O que é, então, que um “governo mínimo” deve fazer ? Thatcher dá um exemplo que arranca aplausos da plateia: em vez de gastar dinheiro público construindo conjuntos habitacionais, o governo deve diminuir os impostos para que cada cidadão, com mais dinheiro no bolso, possa fazer o que quiser com o salário – inclusive, comprar uma casa.
A adesão de países latino-americanos aos mandamentos do credo liberal arranca exclamações da baronesa. Sem citar nominalmente o Plano Real, Thatcher classifica como “sério” o esforço do governo brasileiro para eliminar o fantasma da inflação:
- O Brasil, um dos maiores e mais populosos países, com enormes recursos minerais, indiscutivelmente tem o maior potencial na América Latina. As taxas de crescimento comprovam este potencial – apesar de políticas econômicas equivocadas adotadas no passado. Agora, medidas sérias foram tomadas para domar a inflação e o endividamento do governo e para promover a privatização. Mas ainda há muito o que fazer, para limitar os piores excessos da presença exagerada do governo e a consequente corrução” – diz a baronesa, em The Path to Power.
A Dama pode ser de ferro, mas nem tanto : depois de levantar a voz no púlpito para celebrar “a mais importante vitória política do século”, asssinar centenas de exemplares de suas memórias e exercitar os músculos do rosto incontáveis vezes em sorrisos para as máquinas fotográficas dos admiradores, a baronesa emite sinais de cansaço.
A plateia oferece-lhe um último gesto de simpatia: Thatcher é aplaudida de é, numa ovação que dura cerca de cinco minutos. O odio dos adversários só é correspondido, em igual medida, pelo entusiasmo de fãs conservadores.
Não existem meias palavras para Thatcher. Talvez ela tenha razão: com esse currículo de paixões e ódios, não deve ser nada fácil se definir em uma só palavra.
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O ano era 1995. Desde então, a baronesa Margareth Thatcher se retirou de cena. Reclusa, faz raríssimas aparições públicas. Passou a exibir, nos últimos anos, sinais de “demência”, conforme revelou a filha. Voltou a ser notícia com o lançamento do filme A Dama de Ferro. O debate sobre o tamanho do Estado continua.