Guardei silêncio durante dez meses sobre uma ofensa intolerável que me foi feita no Twitter, um dos territórios livres da Internet. Eu poderia sair atirando petardos virtuais contra quem me agrediu, mas preferi recorrer à Justiça. Queria criar um precedente que considero importante: não, ninguém pode usar a Internet ( nem que seja um mero tweet – uma frase de míseros 140 caracteres) para atacar os outros impunemente. Não pode. No pasarán !
A boa notícia é que a Justiça, afinal, se pronunciou – a meu favor. Respiro aliviado. Fiz a minha parte: queria provar que não, Internet não é lixeira. Se alguém escreve um absurdo ( não importa que seja numa página lida por três gatos pingados ) , deve responder por ele. Por que não ? Eu não poderia ficar calado.
Resolvi adotar como lema o verso bonito de “Consolo na Praia”, aquele poema de Carlos Drummond de Andrade : “À sombra do mundo errado, murmuraste um protesto tímido”. É o que tentei fazer – em 99% dos casos, sem qualquer resultado. Neste caso, ao murmurar meu “protesto tímido”, tentei, na verdade, defender o bom Jornalismo na selva da Internet. O bom Jornalismo ! Tão simples: é aquele que, entre outras virtudes, não comete calúnia nem injúria nem difamação. Diante do pronunciamento da Justiça, tive vontade de gritar: é gol ! O Jornalismo venceu.
Pequeno esclarecimento aos caríssimos ouvintes : ao contrário do que o grito de gol imaginário possa sugerir, minha relação com o Jornalismo é profundamente acidentada. Detalhes no final do texto (*)
O fato de me julgar um perfeito alienígena no Planeta Jornalismo não me impede de defender o Jornalismo na hora em que as tropas inimigas se aproximam. Bem ou mal, é a atividade que, já por tanto tempo, consome minhas parcas energias. Lá vou eu, então, para a Sala de Justiça.
A Internet é a maior invenção dos últimos séculos ? É provável que seja. Quem imaginaria a vida sem um terminal de computador ? Quase ninguém. Hoje, qualquer um pode criar, em um minuto, uma conta no Twitter ou no Facebook ou no Orkut ou num hospedeiro de blogs para se manifestar sobre o que bem entender. Em questão de segundos, qualquer texto, qualquer imagem, qualquer frase,qualquer pensamento podem ser replicados incontáveis vezes. Eis a oitava maravilha do mundo!
Em meio a tantas maravilhas, uma dúvida vibra no ar : que proteção existe contra o internauta que usa o Twitter, por exemplo, para atingir a honra alheia ? Agora, posso dizer: a Justiça. Há uma dificuldade: nem sempre é fácil localizar o autor da ofensa. A autoridade judiciária me disse – com razão – que a Justiça talvez não tenha como localizar e intimar um agressor que se esconde sob pseudônimo na imensa floresta da Internet. Se o autor é “encontrável”, pode acabar “nas barras dos tribunais”, como se dizia.
Em resumo: abri um processo por calúnia, injúria e difamação contra o autor de um comentário ofensivo publicado no Twitter. O que dizia o comentário estúpido ? Que eu simplesmente tinha “roubado” de um trabalho de conclusão de curso de alunos de Jornalismo as perguntas que fiz a Geraldo Vandré, o compositor que resolvera quebrar o silêncio depois de passar trinta e sete anos sem dar entrevista para TV. É óbvio que, diante da chance raríssima, fui – voando – ao encontro do enigmático Vandré. Que jornalista não teria a curiosidade de ouvir um grande nome que sumira do mapa por tanto tempo ? Mas a última coisa que eu faria, na vida, seria “roubar” perguntas de quem quer que seja.
A entrevista foi ao ar na Globonews, em setembro de 2010 ( aqui, o link para o vídeo completo: http://goo.gl/qp4v7 ). Diante da ofensa publicada no Twitter, parti para a briga. O juiz remeteu o processo ao Ministério Público. O passo seguinte: uma audiência preliminar no Quarto Juizado Especial Criminal, no Leblon, às 14:45 da terça-feira, vinte e seis de julho do ano da graça de 2011.
Não tinha sido difícil achar o autor da ofensa publicada no Twitter: é um jornalista que trabalha numa emissora de rádio importante de São Paulo. Imagino que tenha poucos anos de formado. Salvo algum desvio, deverá ter uma carreira pela frente. Vou, aqui, ter um gesto de “magnanimidade” que o autor da agressão não teve para comigo: não vou citar nomes, para não prejudicá-lo nem deixar rastros na Internet. Idem com a mulher que repetiu a ofensa e chamou a entrevista de “farsa” num comentário enviado a um site ( neste caso, a dificuldade citada pela autoridade judiciária se confirmou: não foi possível localizá-la). Também não vou citar, aqui, o nome desta pobre coitada. Tenho perfeita noção de como funciona este circo: qualquer referência que “caia na rede” virá sempre à tona a cada vez que alguém fizer uma busca no Google…
A citação dos nomes envolvidos no processo 0336624-21.2010.8.19.0001, em última instância, nem é indispensável. O que vale, neste caso, é o exemplo, a situação, a tentativa ( bem sucedida !) de abrir um precedente.
Chegou a hora da audiência. O sistema de alto-falantes do Quarto Juizado Especial Criminal chama os envolvidos no caso. Sou citado como vítima. Dentro da sala, o clima era de constrangimento absoluto. O autor da agressão no Twitter tinha vindo de São Paulo, acompanhado de um advogado : estava sentado do outro lado da mesa, diante de mim. Ao meu lado, estava o advogado Marcelo Alfradique.
Sem falsa modéstia, sou um orador que, num julgamento generoso, poderia se situar na tênue fronteira entre o ruim e o péssimo. Não me arriscaria a falar de improviso, mas não queria de maneira alguma perder a chance de marcar posição. Rabisquei, então, o que eu gostaria de dizer diante de uma autoridade da Justiça e de quem usou o Twitter para cometer uma agressão intolerável.
Pedi a palavra. Já engoli sapos monumentais, gigantescos, monstruosos ao longo da vida. Mas, ali, era hora de soltar os cachorros:
“Quero dizer que, para mim, o fato de estar aqui é constrangedor. É a primeira vez que processo alguém. Fiz questão absoluta de recorrer à Justiça porque somente a Justiça poderia dar uma lição que me parece indispensável : ninguém pode usar impunemente a Internet para escrever o que quiser e agredir a honra alheia. Uma das obrigações do jornalista é usar as palavras com toda precisão possível. Se escrevo que alguém “roubou” alguma coisa, eu o estou chamando de “ladrão”. Ponto. Quem comete uma farsa é um farsante. Ponto. Fui chamado – portanto – de ladrão e farsante pelo crime de ter feito uma entrevista com Geraldo Vandré! O caso é tão absurdo que nem vale a pena entrar em detalhes”.
“O que aconteceu ? Uma jornalista me enviou um trabalho de conclusão de curso sobre Geraldo Vandré. Meses depois, fui escalado, às pressas, na TV, para gravar uma entrevista com ele. A produtora Mariana Filgueiras conseguira marcar uma entrevista com Vandré, no dia em que ele completava setenta e cinco anos de idade. Eu nem tinha lido o trabalho enviado pela estudante, por pura falta de tempo. Todo o mérito da obtenção da entrevista com Vandré, aliás, cabe à produtora, algo que digo com toda clareza no texto do programa. A produtora, igualmente, não tinha lido o trabalho”.
“Quando a entrevista foi ao ar, na Globonews, fui acusado publicamente – ou seja: através da Internet – de ter “roubado” as perguntas do trabalho escolar que me fora enviado. Como se, depois de quase quarenta anos de profissão, eu precisasse recorrer a um trabalho escolar para fazer as perguntas de uma entrevista ! Comecei a trabalhar cedo, aos dezesseis anos de idade, em 1972. Perdi a conta das entrevistas que fiz – com presidentes da República, políticos, artistas, escritores, atletas, gente anônima e famosa, aqui e no exterior. Nunca – repito: nunca, jamais, em tempo algum – fui acusado de falta de ética ou de imprecisão ou de “roubar” o que quer que seja”.
“Não quero fazer bravatas. Mas agora, diante de uma autoridade, nesta sala de Justiça, quero declarar oficialmente o seguinte : se o autor da agressão provar que “roubei” perguntas seja de quem for, ao longo desses trinta e nove anos de profissão, eu assino um documento legal transferindo para ele tudo o que eu vier a receber como pagamento por minha atividade profissional de hoje até o fim da minha vida. Isso não é uma bravata. É um compromisso”.
“Fui chamado – em público – de ladrão e farsante. Fiquei em silêncio até agora. Não escrevi nada sobre o ataque porque preferi aguardar a palavra da Justiça. Se eu chamasse publicamente os autores da agressão de “ladrões da honra alheia”, estaria usando a mesmíssima arma que usaram contra mim, irresponsavelmente. Não”.
“Para ilustrar o absurdo da situação : em 2005, como editor-chefe da revista Almanaque Fantástico, publiquei uma reportagem sobre Geraldo Vandré, escrita por um colega de redação, Alberto Villas. Se eu quisesse cometer uma ignomínia igual à que foi cometida contra mim, eu poderia acusar os autores do trabalho de escolar de terem “roubado” a pauta da revista do Fantástico. Mas eu não seria tão estúpido”.
“Uma ofensa cometida na Internet se multiplica rapidamente. Depois da publicação da ofensa no Twitter, “x” – que não conheço – escreveu numa caixa de comentários de um site o seguinte: “Existe um livro do qual o repórter está de posse e do qual foram “sugadas” as perguntas”. Logo depois, um ex-cineasta chamado “x” insinuou, com ironia, que minha entrevista foi “inspirada” no trabalho dos alunos….Ou seja: repassaram a calúnia” ( aqui, omito nomes)
“Isso virou ponto de honra para mim ! Faço questão absoluta de que os autores da ofensa provem que sou ladrão de perguntas e farsante. O patrimônio profissional mais valioso que um jornalista pode obter é a credibilidade. Isso é conquistado em anos, anos e anos de trabalho duro e dedicação. É uma questão de caráter, também. Não posso aceitar, sob hipótese alguma, que algo conquistado com tanto esforço, com tantas madrugadas de trabalho, com tantos fins de semana – em que eu deveria estar convivendo com meus filhos - seja atacado de maneira tão irresponsável. Não, não e não. Não me interessam desculpas. Não, não e não. Não me interessam recompensas financeiras. Não, não e não. Se houver, que seja doada à escola mais necessitada do sertão do Piauí ou à creche mais pobre da Favela da Rocinha”.
“A única coisa que, sinceramente, espero é que a Justiça mostre, a todos os blogueiros, a todos os twitteiros, a todos os internautas – a mim, inclusive - que abusos deste tipo não podem ser cometidos, impunemente, via Internet – que corre o risco de virar Terra de Ninguém. Não, não e não”.
O autor da ofensa ouviu tudo calado. Não disse uma palavra sequer. Só deu uma “justificativa”, no início da audiência: disse que tinha escrito o tweet em “solidariedade” à amiga que me enviara o malfadado trabalho de conclusão de curso sobre Geraldo Vandré. A Justiça se pronunciou. Desta vez, quem recebeu solidariedade fui eu.
Uma alternativa me foi oferecida: se eu não quisesse dar o caso por encerrado ali, poderia levar o processo adiante, para a esfera criminal. Em suma: poderia pedir uma indenização pela injúria, pela calúnia, pela difamação. Preferi dar o caso por encerrado, porque, na prática, já tinha conseguido o que queria: uma demonstração de que, no território livre da Internet, ninguém pode escrever, impunemente, contra a honra alheia.
Pelo menos neste caso, pude ver que nem sempre a Internet nem sempre é terra de ninguém. Twitter não é lixeira : é um meio de comunicação importante. Idem com o Facebook, o Orkut, os blogs – e todas as outras plataformas. O que se escreve ali pode ter consequência. Devem ser usados, portanto, com responsabilidade.
Preferi não prolongar o trabalho que estava dando à Justiça – que, como se sabe, já vive sobrecarregada. Dei-me por satisfeito.
A autoridade determinou que o autor da ofensa no Twitter prestasse vinte horas de serviço comunitário numa das instituições cadastradas no Quarto Juizado Especial Criminal – ou então fizesse um pagamento que, a bem da verdade, me pareceu simbólico: seiscentos reais. O dinheiro é recolhido pela Justiça e repassado a uma das instituições habilitadas para receber a ajuda. Detalhe: nestes próximos cinco anos, caso reincida, o autor já não poderá dispor do benefício da “transação penal” ( ou seja: uma espécie de acordo que susta a evolução do processo, como aconteceu agora ).
Terminei mostrando que agressão infundada e gratuita – ainda que seja cometida no espaço ínfimo dos 140 caracteres de um tweet, numa página com poucos seguidores – pode levar o autor a enfrentar o constrangimento de ouvir, diante de uma autoridade, palavras que ele certamente não gostaria de ter ouvido. Se pudesse escolher, eu não gostaria de ter dito. Mas, ali, eu não tinha escolha. Era “ponto de honra” : eu confiava que a Justiça iria criar um precedente.
Atenção, todos os carros; atenção, twitteiros, facebookeiros, blogueiros, orkuteiros : a tribuna da Internet é livre, mas, quando forem escrever, meçam as palavras, como fazem jornalistas responsáveis. Ou então tratem de ir preparando os cheques : as instituições de caridade cadastradas na Justiça vão agradecer penhoradamente a ajuda, ainda que forçada.
—————–
(*) Ah, sim: como eu ia dizendo antes de ser interrompido pela narração de minha incursão pelos corredores da Justiça, minha relação com esta joça popularmente conhecida como Jornalismo é acidentada. Meu demônio da guarda me sopra de meia em meia hora, ao pé do meu ouvido esquerdo : “Get out ! Get Out ! Get out ! Bata em retirada! Baixe a cortina! O Jornalismo não é , nem de longe, o que você pensava quando chegou numa redação aos dezesseis anos de idade ! Você era um inocente imberbe, achava que fazer Jornalismo era simplesmente contar da maneira mais atraente possível o que você tinha visto e ouvido na rua, era descobrir personagens fascinantes que ninguém conhecia, era se esforçar para fazer as perguntas certas na hora certa a anônimos ou famosos, era tentar retratar da maneira mais fiel a Grande Marcha dos Acontecimentos, era olhar a vida como se fosse uma criança que estivesse vendo tudo pela primeira vez, era devorar todos os jornais e revistas que lhe caíam nas mãos para aprender com quem sabia fazer, era não deixar jamais que o veneno do engajamento político contaminasse o exercício da profissão, era ler e reler os textos dos mestres, era ter a certeza de que não existe assunto desinteressante: o que existe é jornalista desinteressado. Quá-quá-quá ! Deixe de ser estupidamente ingênuo! Jornalistas de verdade jogam notícia no lixo; criam dificuldade para tudo; apostam na mesmice mais cinzenta; deixam de publicar uma história interessante porque “a concorrência já deu”; fazem Jornalismo pensando nos outros jornalistas, não no público; pontificam sobre todos os temas do Universo; participam de campeonatos de vaidade; escorregam na autorreferência obssessiva, na pretensão descabida, no egocentrismo delirante, no exibicionismo vulgar. Os jornalistas estúpidos, feito você, acham que é tudo um absurdo indefensável. Para que, então, prolongar este equívoco ? Get out ! Get out! Get out ! Mas você não me obedece. Você, bobo, tenta preservar os sinais vitais do menino ingênuo que, lá atrás, apostou no Jornalismo. Você sabe que a tentativa é rigorosamente inútil, mas é a única coisa a fazer. Continue tentando, então. Pode ser divertido ! ” . Depois de me soprar estas palavras, num ritual que se repete há anos, meu Demônio da Guarda se recolhe, sorridente, porque tem certeza de uma coisa : quase nunca eu o obedeço, mas, no fundo, sei que ele tem toda razão )
Guardei silêncio durante dez meses sobre uma ofensa intolerável que me foi feita no Twitter, um dos territórios livres da Internet. Eu poderia sair atirando petardos virtuais contra quem me agrediu, mas preferi recorrer à Justiça. Queria criar um precedente que considero importante: não, ninguém pode usar a Internet ( nem que seja um mero tweet – uma frase de míseros 140 caracteres) para atacar os outros impunemente. Não pode. No pasarán !
A boa notícia é que a Justiça, afinal, se pronunciou – a meu favor. Respiro aliviado. Fiz a minha parte: queria provar que não, Internet não é lixeira. Se alguém escreve um absurdo ( não importa que seja numa página lida por três gatos pingados ) , deve responder por ele. Por que não ? Eu não poderia ficar calado.
Resolvi adotar como lema o verso bonito de “Consolo na Praia”, aquele poema de Carlos Drummond de Andrade : “À sombra do mundo errado, murmuraste um protesto tímido”. É o que tentei fazer – em 99% dos casos, sem qualquer resultado. Neste caso, ao murmurar meu “protesto tímido”, tentei, na verdade, defender o bom Jornalismo na selva da Internet. O bom Jornalismo ! Tão simples: é aquele que, entre outras virtudes, não comete calúnia nem injúria nem difamação. Diante do pronunciamento da Justiça, tive vontade de gritar: é gol ! O Jornalismo venceu.
Pequeno esclarecimento aos caríssimos ouvintes : ao contrário do que o grito de gol imaginário possa sugerir, minha relação com o Jornalismo é profundamente acidentada. Detalhes no final do texto (*)
O fato de me julgar um perfeito alienígena no Planeta Jornalismo não me impede de defender o Jornalismo na hora em que as tropas inimigas se aproximam. Bem ou mal, é a atividade que, já por tanto tempo, consome minhas parcas energias. Lá vou eu, então, para a Sala de Justiça.
A Internet é a maior invenção dos últimos séculos ? É provável que seja. Quem imaginaria a vida sem um terminal de computador ? Quase ninguém. Hoje, qualquer um pode criar, em um minuto, uma conta no Twitter ou no Facebook ou no Orkut ou num hospedeiro de blogs para se manifestar sobre o que bem entender. Em questão de segundos, qualquer texto, qualquer imagem, qualquer frase,qualquer pensamento podem ser replicados incontáveis vezes. Eis a oitava maravilha do mundo!
Em meio a tantas maravilhas, uma dúvida vibra no ar : que proteção existe contra o internauta que usa o Twitter, por exemplo, para atingir a honra alheia ? Agora, posso dizer: a Justiça. Há uma dificuldade: nem sempre é fácil localizar o autor da ofensa. A autoridade judiciária me disse – com razão – que a Justiça talvez não tenha como localizar e intimar um agressor que se esconde sob pseudônimo na imensa floresta da Internet. Se o autor é “encontrável”, pode acabar “nas barras dos tribunais”, como se dizia.
Em resumo: abri um processo por calúnia, injúria e difamação contra o autor de um comentário ofensivo publicado no Twitter. O que dizia o comentário estúpido ? Que eu simplesmente tinha “roubado” de um trabalho de conclusão de curso de alunos de Jornalismo as perguntas que fiz a Geraldo Vandré, o compositor que resolvera quebrar o silêncio depois de passar trinta e sete anos sem dar entrevista para TV. É óbvio que, diante da chance raríssima, fui – voando – ao encontro do enigmático Vandré. Que jornalista não teria a curiosidade de ouvir um grande nome que sumira do mapa por tanto tempo ? Mas a última coisa que eu faria, na vida, seria “roubar” perguntas de quem quer que seja.
A entrevista foi ao ar na Globonews, em setembro de 2010 ( aqui, o link para o vídeo completo: http://goo.gl/qp4v7 ). Diante da ofensa publicada no Twitter, parti para a briga. O juiz remeteu o processo ao Ministério Público. O passo seguinte: uma audiência preliminar no Quarto Juizado Especial Criminal, no Leblon, às 14:45 da terça-feira, vinte e seis de julho do ano da graça de 2011.
Não tinha sido difícil achar o autor da ofensa publicada no Twitter: é um jornalista que trabalha numa emissora de rádio importante de São Paulo. Imagino que tenha poucos anos de formado. Salvo algum desvio, deverá ter uma carreira pela frente. Vou, aqui, ter um gesto de “magnanimidade” que o autor da agressão não teve para comigo: não vou citar nomes, para não prejudicá-lo nem deixar rastros na Internet. Idem com a mulher que repetiu a ofensa e chamou a entrevista de “farsa” num comentário enviado a um site ( neste caso, a dificuldade citada pela autoridade judiciária se confirmou: não foi possível localizá-la). Também não vou citar, aqui, o nome desta pobre coitada. Tenho perfeita noção de como funciona este circo: qualquer referência que “caia na rede” virá sempre à tona a cada vez que alguém fizer uma busca no Google…
A citação dos nomes envolvidos no processo 0336624-21.2010.8.19.0001, em última instância, nem é indispensável. O que vale, neste caso, é o exemplo, a situação, a tentativa ( bem sucedida !) de abrir um precedente.
Chegou a hora da audiência. O sistema de alto-falantes do Quarto Juizado Especial Criminal chama os envolvidos no caso. Sou citado como vítima. Dentro da sala, o clima era de constrangimento absoluto. O autor da agressão no Twitter tinha vindo de São Paulo, acompanhado de um advogado : estava sentado do outro lado da mesa, diante de mim. Ao meu lado, estava o advogado Marcelo Alfradique.
Sem falsa modéstia, sou um orador que, num julgamento generoso, poderia se situar na tênue fronteira entre o ruim e o péssimo. Não me arriscaria a falar de improviso, mas não queria de maneira alguma perder a chance de marcar posição. Rabisquei, então, o que eu gostaria de dizer diante de uma autoridade da Justiça e de quem usou o Twitter para cometer uma agressão intolerável.
Pedi a palavra. Já engoli sapos monumentais, gigantescos, monstruosos ao longo da vida. Mas, ali, era hora de soltar os cachorros:
“Quero dizer que, para mim, o fato de estar aqui é constrangedor. É a primeira vez que processo alguém. Fiz questão absoluta de recorrer à Justiça porque somente a Justiça poderia dar uma lição que me parece indispensável : ninguém pode usar impunemente a Internet para escrever o que quiser e agredir a honra alheia. Uma das obrigações do jornalista é usar as palavras com toda precisão possível. Se escrevo que alguém “roubou” alguma coisa, eu o estou chamando de “ladrão”. Ponto. Quem comete uma farsa é um farsante. Ponto. Fui chamado – portanto – de ladrão e farsante pelo crime de ter feito uma entrevista com Geraldo Vandré! O caso é tão absurdo que nem vale a pena entrar em detalhes”.
“O que aconteceu ? Uma jornalista me enviou um trabalho de conclusão de curso sobre Geraldo Vandré. Meses depois, fui escalado, às pressas, na TV, para gravar uma entrevista com ele. A produtora Mariana Filgueiras conseguira marcar uma entrevista com Vandré, no dia em que ele completava setenta e cinco anos de idade. Eu nem tinha lido o trabalho enviado pela estudante, por pura falta de tempo. Todo o mérito da obtenção da entrevista com Vandré, aliás, cabe à produtora, algo que digo com toda clareza no texto do programa. A produtora, igualmente, não tinha lido o trabalho”.
“Quando a entrevista foi ao ar, na Globonews, fui acusado publicamente – ou seja: através da Internet – de ter “roubado” as perguntas do trabalho escolar que me fora enviado. Como se, depois de quase quarenta anos de profissão, eu precisasse recorrer a um trabalho escolar para fazer as perguntas de uma entrevista ! Comecei a trabalhar cedo, aos dezesseis anos de idade, em 1972. Perdi a conta das entrevistas que fiz – com presidentes da República, políticos, artistas, escritores, atletas, gente anônima e famosa, aqui e no exterior. Nunca – repito: nunca, jamais, em tempo algum – fui acusado de falta de ética ou de imprecisão ou de “roubar” o que quer que seja”.
“Não quero fazer bravatas. Mas agora, diante de uma autoridade, nesta sala de Justiça, quero declarar oficialmente o seguinte : se o autor da agressão provar que “roubei” perguntas seja de quem for, ao longo desses trinta e nove anos de profissão, eu assino um documento legal transferindo para ele tudo o que eu vier a receber como pagamento por minha atividade profissional de hoje até o fim da minha vida. Isso não é uma bravata. É um compromisso”.
“Fui chamado – em público – de ladrão e farsante. Fiquei em silêncio até agora. Não escrevi nada sobre o ataque porque preferi aguardar a palavra da Justiça. Se eu chamasse publicamente os autores da agressão de “ladrões da honra alheia”, estaria usando a mesmíssima arma que usaram contra mim, irresponsavelmente. Não”.
“Para ilustrar o absurdo da situação : em 2005, como editor-chefe da revista Almanaque Fantástico, publiquei uma reportagem sobre Geraldo Vandré, escrita por um colega de redação, Alberto Villas. Se eu quisesse cometer uma ignomínia igual à que foi cometida contra mim, eu poderia acusar os autores do trabalho de escolar de terem “roubado” a pauta da revista do Fantástico. Mas eu não seria tão estúpido”.
“Uma ofensa cometida na Internet se multiplica rapidamente. Depois da publicação da ofensa no Twitter, “x” – que não conheço – escreveu numa caixa de comentários de um site o seguinte: “Existe um livro do qual o repórter está de posse e do qual foram “sugadas” as perguntas”. Logo depois, um ex-cineasta chamado “x” insinuou, com ironia, que minha entrevista foi “inspirada” no trabalho dos alunos….Ou seja: repassaram a calúnia” ( aqui, omito nomes)
“Isso virou ponto de honra para mim ! Faço questão absoluta de que os autores da ofensa provem que sou ladrão de perguntas e farsante. O patrimônio profissional mais valioso que um jornalista pode obter é a credibilidade. Isso é conquistado em anos, anos e anos de trabalho duro e dedicação. É uma questão de caráter, também. Não posso aceitar, sob hipótese alguma, que algo conquistado com tanto esforço, com tantas madrugadas de trabalho, com tantos fins de semana – em que eu deveria estar convivendo com meus filhos - seja atacado de maneira tão irresponsável. Não, não e não. Não me interessam desculpas. Não, não e não. Não me interessam recompensas financeiras. Não, não e não. Se houver, que seja doada à escola mais necessitada do sertão do Piauí ou à creche mais pobre da Favela da Rocinha”.
“A única coisa que, sinceramente, espero é que a Justiça mostre, a todos os blogueiros, a todos os twitteiros, a todos os internautas – a mim, inclusive - que abusos deste tipo não podem ser cometidos, impunemente, via Internet – que corre o risco de virar Terra de Ninguém. Não, não e não”.
O autor da ofensa ouviu tudo calado. Não disse uma palavra sequer. Só deu uma “justificativa”, no início da audiência: disse que tinha escrito o tweet em “solidariedade” à amiga que me enviara o malfadado trabalho de conclusão de curso sobre Geraldo Vandré. A Justiça se pronunciou. Desta vez, quem recebeu solidariedade fui eu.
Uma alternativa me foi oferecida: se eu não quisesse dar o caso por encerrado ali, poderia levar o processo adiante, para a esfera criminal. Em suma: poderia pedir uma indenização pela injúria, pela calúnia, pela difamação. Preferi dar o caso por encerrado, porque, na prática, já tinha conseguido o que queria: uma demonstração de que, no território livre da Internet, ninguém pode escrever, impunemente, contra a honra alheia.
Pelo menos neste caso, pude ver que nem sempre a Internet nem sempre é terra de ninguém. Twitter não é lixeira : é um meio de comunicação importante. Idem com o Facebook, o Orkut, os blogs – e todas as outras plataformas. O que se escreve ali pode ter consequência. Devem ser usados, portanto, com responsabilidade.
Preferi não prolongar o trabalho que estava dando à Justiça – que, como se sabe, já vive sobrecarregada. Dei-me por satisfeito.
A autoridade determinou que o autor da ofensa no Twitter prestasse vinte horas de serviço comunitário numa das instituições cadastradas no Quarto Juizado Especial Criminal – ou então fizesse um pagamento que, a bem da verdade, me pareceu simbólico: seiscentos reais. O dinheiro é recolhido pela Justiça e repassado a uma das instituições habilitadas para receber a ajuda. Detalhe: nestes próximos cinco anos, caso reincida, o autor já não poderá dispor do benefício da “transação penal” ( ou seja: uma espécie de acordo que susta a evolução do processo, como aconteceu agora ).
Terminei mostrando que agressão infundada e gratuita – ainda que seja cometida no espaço ínfimo dos 140 caracteres de um tweet, numa página com poucos seguidores – pode levar o autor a enfrentar o constrangimento de ouvir, diante de uma autoridade, palavras que ele certamente não gostaria de ter ouvido. Se pudesse escolher, eu não gostaria de ter dito. Mas, ali, eu não tinha escolha. Era “ponto de honra” : eu confiava que a Justiça iria criar um precedente.
Atenção, todos os carros; atenção, twitteiros, facebookeiros, blogueiros, orkuteiros : a tribuna da Internet é livre, mas, quando forem escrever, meçam as palavras, como fazem jornalistas responsáveis. Ou então tratem de ir preparando os cheques : as instituições de caridade cadastradas na Justiça vão agradecer penhoradamente a ajuda, ainda que forçada.
—————–
(*) Ah, sim: como eu ia dizendo antes de ser interrompido pela narração de minha incursão pelos corredores da Justiça, minha relação com esta joça popularmente conhecida como Jornalismo é acidentada. Meu demônio da guarda me sopra de meia em meia hora, ao pé do meu ouvido esquerdo : “Get out ! Get Out ! Get out ! Bata em retirada! Baixe a cortina! O Jornalismo não é , nem de longe, o que você pensava quando chegou numa redação aos dezesseis anos de idade ! Você era um inocente imberbe, achava que fazer Jornalismo era simplesmente contar da maneira mais atraente possível o que você tinha visto e ouvido na rua, era descobrir personagens fascinantes que ninguém conhecia, era se esforçar para fazer as perguntas certas na hora certa a anônimos ou famosos, era tentar retratar da maneira mais fiel a Grande Marcha dos Acontecimentos, era olhar a vida como se fosse uma criança que estivesse vendo tudo pela primeira vez, era devorar todos os jornais e revistas que lhe caíam nas mãos para aprender com quem sabia fazer, era não deixar jamais que o veneno do engajamento político contaminasse o exercício da profissão, era ler e reler os textos dos mestres, era ter a certeza de que não existe assunto desinteressante: o que existe é jornalista desinteressado. Quá-quá-quá ! Deixe de ser estupidamente ingênuo! Jornalistas de verdade jogam notícia no lixo; criam dificuldade para tudo; apostam na mesmice mais cinzenta; deixam de publicar uma história interessante porque “a concorrência já deu”; fazem Jornalismo pensando nos outros jornalistas, não no público; pontificam sobre todos os temas do Universo; participam de campeonatos de vaidade; escorregam na autorreferência obssessiva, na pretensão descabida, no egocentrismo delirante, no exibicionismo vulgar. Os jornalistas estúpidos, feito você, acham que é tudo um absurdo indefensável. Para que, então, prolongar este equívoco ? Get out ! Get out! Get out ! Mas você não me obedece. Você, bobo, tenta preservar os sinais vitais do menino ingênuo que, lá atrás, apostou no Jornalismo. Você sabe que a tentativa é rigorosamente inútil, mas é a única coisa a fazer. Continue tentando, então. Pode ser divertido ! ” . Depois de me soprar estas palavras, num ritual que se repete há anos, meu Demônio da Guarda se recolhe, sorridente, porque tem certeza de uma coisa : quase nunca eu o obedeço, mas, no fundo, sei que ele tem toda razão )
ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE -10 (FINAL) : E O CHEFE DA REDAÇÃO CONSPIRAVA COM MILITARES, POR TELEFONE, CONTRA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Um novo trecho da entrevista inédita com o jornalista Evandro Carlos de Andrade – que morreu há exatamente dez anos, em junho de 2001, quando ocupava o cargo de diretor da Central Globo de Jornalismo :
Encerrada a breve aventura de estréia jornalística na redação do Correio Radical, no início dos anos cinqüenta, Evandro Carlos de Andrade desembarcou no Diário Carioca . Em pouquíssimo tempo,viraria chefe, por obra e graça de um convite de Pompeu de Sousa. Teve a sorte de estar “no lugar certo na hora certa” : as inovações estilísticas adotadas pelo Diário da Carioca são tidas, hoje,como um momento marcante no processo de modernização da imprensa brasileira.
“Dos jornais da época em eu estava iniciando a carreira, no Rio, qual era o mais charmoso, o mais irreverente, o mais irresponsável, o mais politiqueiro ? O Diário Carioca” , responde Evandro. “Pompeu de Sousa, chefe da redação, era um conspirador político permanente : toda noite, ficava horas a fio conspirando com oficiais da Aeronáutica contra o presidente Getúlio Vargas – pelo telefone ! O clima era esse quando cheguei à redação. Mas o Diário Carioca era, sobretudo, um jornal que renovou a linguagem jornalística”.
“Duas pessoas exerceram, na redação do Diário Carioca, influência direta sobre mim. Com Paulistano, o chefe de reportagem, aprendi sobretudo como se apura um jornalismo popular, porque me ocupava de assuntos policiais e sindicais. Luís Paulistano viria, depois, a ser o assessor de imprensa de Roberto Silveira, governador do Estado do Rio. Teve uma morte horrível : era um ocupantes do helicóptero do governador – que bateu numa árvore e pegou fogo assim que decolou do Palácio para uma viagem de inspeção a área inundadas numa enchente no norte do Estado,em fevereiro de 1961. Paulistano não morreu na hora. Ficou cego, todo queimado, sofreu dores atrozes até morrer – dias depois. O resto do meu aprendizado foi com Pompeu de Sousa, porque ele é que imprimia uma personalidade ao Diário Carioca. A propriedade do jornal podia ser de Horácio de Carvalho – e era. Mas, para nós, jornalistas, o Diário Carioca era de Pompeu. Anos depois, quando eu estava no Globo e Pompeu cumpria um mandato de senador em Brasília, ele me ligou para reclamar contra qualquer coisa : estigmatizava com ênfase os procedimentos da “grande imprensa” até que eu o aparteei : “Mas Pompeu, não há nada que eu faça que não tenha aprendido com você !”.
“Pompeu era um grande conspirador político. Mas não se pode imaginar, hoje, o chefe da redação conspirando para derrubar um governo, metido com militares da Aeronáutica –que iam à redação do Diário Carioca tratar de tirar Getúlio Vargas do poder. É uma cena hoje impensável. Aqueles militares que queriam derrubar Getúlio estavam se aproximando de Carlos Lacerda. Quando, em agosto de 54, houve o atentado contra Carlos Lacerda na rua Toneleros, os militares da Aeronáutica tomaram a frente das investigações no Galeão. Passamos, então, a chamar Pompeu de “Presidente da República do Galeão” porque ele tinha uma influência incrível”.
“Qual foi a marca que a convivência com Pompeu de Sousa na redação do Diário Carioca deixou em mim ? Pode ter sido a seguinte : a recusa em levar as coisas muito a sério. Diferentemente de Pompeu,o chefe de reportagem Luís Paulistano levava tudo muito a sério. Talvez por essa razão, tenha sido levado a sofrer e a beber. Minha formação inicial, como repórter, se deu com Paulistano. Quem me comandava era ele – que tinha o hábito de descer da redação para beber cachaça na rua. Primeiro, entornava um pouco da bebida para o “santo”. Depois, ao engolir a cachaça, fazia aquela caretona horrorosa. Eu, que sempre detestei cachaça, era incapaz de acompanhá-lo no ritual. Entre os jornalistas, bebia-se muito naquela época. Tinha-se que beber – o que, para mim, era horrível, porque eu abominava a bebida. Beber, no meu caso, era um sacrifício. Mas Paulistano ,meu chefe, me chamava. Todo dia, eu testemunhava -umas seis,sete vezes - aquela cena : o meu chefe de reportagem bebendo cachaça. Quando a noite se acabava, lá íamos nós para o restaurante Colombo, onde os jornalistas se reuniam , na alta madrugada, depois do fechamento dos jornais”.
“Aprendi ali ,naquele início de carreira, no Diário Carioca, a não levar a sério sobretudo as estrelas e os figurões. Vi que se deve – sempre - ver o figurão apenas como um ser humano que as circunstâncias empurraram para uma determinada posição. E só”.
ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE -9/ O JORNAL TINHA UM CONTÍNUO QUE FICARIA FAMOSO: CARTOLA. E UM COPIDESQUE QUE VIRARIA CINEASTA: NÉLSON PEREIRA DOS SANTOS
Evandro Carlos de Andrade conviveu, na redação do Diário Carioca, com personagens que, anos depois, ficariam célebres, por motivos que nada tinham a ver com o jornalismo. Aqui, o homem que, no futuro, dirigiria redações importantes faz uma confissão: ficou “tentado” a aceitar o convite para atuar num filme que entraria para a história do cinema brasileiro:
“Uma lembrança que guardei da redação : Cartola, que depois ficaria famoso como compositor,era nosso contínuo no Diário da Carioca. Homem modestíssimo, contínuo simpático e prestativo, já era relativamente conhecido como sambista, mas não cantava na redação. Vivia numa pobreza tremenda. Nélson Pereira dos Santos, que viria a dirigir o filme “Vidas Secas”, também estava no Diário Carioca – na equipe de copidesques do jornal. Luis Carlos Barreto, fotógrafo do O Cruzeiro que estava começando a produzir cinema, me chamou para trabalhar num filme que seria dirigido por Nélson Pereira – “Vidas Secas”. Que maluquice! Eu seria um dos piores canastrões da história do cinema nacional. Quando eu disse à minha mulher, em casa, que tinha recebido o convite, ela não admitiu de jeito nenhum. Pensei : entre o casamento e o cinema, fico com a família. Renunciei ao meu posto cinematográfico. Cedi o lugar a Átila Iório. Luís Carlos Barreto me achou com pinta de galã. Infelizmente,não concordo com ele. Mas fiquei levemente tentado pelo convite. O problema é que eu era –e sou – um tímido. Ficava trêmulo quando tinha de falar em público”.
“Nunca cheguei a levar a sério a possibilidade de seguir uma carreira artística. Para dizer a verdade, como cantor, eu era razoavelmente afinado.Um rapaz que morava perto da minha casa, na São Francisco Xavier, na Tijuca, uma vez organizou um pequeno grupo para cantar. Chamou-me para fazer o grave. Eu tinha dezoito anos. O autor do convite tinha um talento incrível. Era conhecido como Johnny Alf – pseudônimo com que ficou famoso, anos depois, como compositor e intérprete de “Eu e a Brisa”. Começamos a ensaiar. Mas o grupo se desfez logo. Havia outro grupo – que também não durou muito – chamado Os Modernistas, sob a liderança de João Donato, um tremendo músico, um craque do acordeon. Donato liderava as apresentações do grupo Os Modernistas no Tijuca Tênis Clube. Nosso grupo não passou da fase de ensaios. A primeira música que ensaiamos, sob o comando de Johnny Alf, foi “I Don’t Know Why”, lançada por Frank Sinatra”.
“Depois de décadas, me encontrei com Johnny Alf – que estava tocando,com um ar meio entediado, numa casa noturna na Lagoa. Resolvi me aproximar : “Johnny Alf,você se lembra daquele grupo que você organizou lá na rua São Francisco Xavier ? “. Ouvi a seguinte resposta : “Não ! Não me lembro ” .
“Não, não me lembro….”. “Devo confessar que a resposta de Johnny Alf me deu um frio na barriga – uma horrorosa sensação de desconforto”.
O SEGREDO QUE ITAMAR GUARDOU ATÉ O FIM: O DIA EM QUE RECEBEU, NA PRESIDÊNCIA, UMA PROPOSTA MAIS “TENEBROSA” DO QUE FECHAR O CONGRESSO NACIONAL
Definitivamente, “Itamar não é fácil”. A presidência da República também não. Ponto. Parágrafo.
Quando assumiu o poder, no rastro do furacão de denúncias que varreu Fernando Collor do Palácio do Planalto, Itamar Franco aprendeu logo duas lições. Primeira: ao contrário do que as aparências fazem supor, a presidência é, essencialmente, um cargo solitário. (Daqui a pouco, ele falará sobre a sensação de ver desfilar diante dos olhos, em seus “momentos de reclusão” palaciana, nos fins de noite, as imagens de tudo o que poderia acontecer num país eternamente sujeito a solavancos.)
Segunda lição: quem ocupa a presidência deve estar preparado para ouvir propostas capazes de tirar o sono. Itamar Franco seria surpreendido pela proposta de um grupo de parlamentares – e se o presidente, num arroubo, fechasse o Congresso Nacional para depurar o parlamento da presença de roedores do dinheiro público?
O depoimento que o ex-presidente gravará neste final da manhã foi precedido de incertezas tipicamente itamarinas: durante quatro meses, houve troca de e-mails e telefonemas com assessores do homem, em Juiz Fora e na Embaixada do Brasil em Roma. A matéria complexa chamada Itamar Franco poderia render um curso intensivo: as aulas valeriam inclusive para amigos próximos- que, somente assim, aprenderiam a antever as reações do ex-presidente. Forasteiros, como repórteres interessados em extrair confissões da esfinge, aprendem logo a lição: nada é cem por cento fácil com ele.
Lá vem ele. São onze da manhã. Itamar prefere gravar a entrevista na sede da TV Panorama, em Juiz de Fora. Quando desce do banco traseiro de um carro de vidros escuros, exibe a inconfundível contribuição capilar dada à iconografia política brasileira: o célebre topete, alegria dos cartunistas. Não faz frio, mas Itamar enverga um suéter sob o paletó azul escuro. A gravata é vermelha.
Como se fosse um candidato prestes a debater com adversários eleitorais, o ex-presidente traz debaixo do braço uma pasta com documentos que compulsará para reforçar o que diz. Guarda com especial cuidado um texto em que o ex-ministro Delfim Netto elogia a performance do governo Itamar na área da economia. As palavras de Delfim são a arma que Itamar faz questão de empunhar para se defender da rejeição que (ele jura) São Paulo lhe devota. Não se conhecem demonstrações da suposta rejeição paulista a Itamar. Mas, na intricada psicologia itamarina, há sempre espaço vago para acomodar desconfianças desse calibre.
Uma frase famosa, atribuída a Tancredo Neves, diz que Itamar guarda rancor na geladeira. Eis um exemplo: o ex-presidente não engole até hoje a capa que a revista Veja lhe dedicou no início do mandato, com uma manchete que questionava a estatura do ministério recém-nomeado. Quando Itamar deixou o governo, contudo, a mesmíssima Veja publicou um balanço que lhe era francamente favorável.
Assinada pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo, a longa matéria – “Enfim, um presidente que deu certo” – lembrava o marco zero da era Itamar: “Um veterano sócio do clube juiz-forano, Mauro Durante, já advertira, semanas antes, ao observar que o movimento no gabinete do vice aumentava na medida em que se tornava mais real o impeachment de Collor: ‘Os urubus estão chegando’. Agora, urubus, perigosas águias, pacíficas pombas, papagaios tagarelas e caladas corujas, sem esquecer os tucanos, comprimiam-se naquele pequeno espaço, em que encontravam um presidente tão falto de solenidade que nem preparara discurso para a ocasião”.
Pois bem: Itamar, hoje, não cita os elogios da revista. Prefere guardar, em prateleira de honra da geladeira dos rancores, a capa que o enfureceu. “Itamar não é fácil” é a frase que se ouve à exaustão entre os que tiveram a oportunidade de conviver com ele.
Quando convidado por Fernando Collor para ser candidato a vice, nas eleições presidenciais de 1989, Itamar Franco protagonizou de novo intermináveis cenas de suspense antes de tomar a decisão. Disse “sim”. Terminou virando presidente, o que lhe garantiu de uma vez por todas a fama de “sortudo”. Itamar Franco aceita de bom grado o adjetivo, mas despachará diretamente para a geladeira dos rancores quem disser que ele escalou a rampa da política por obra e graça do “acaso”. Com uma ponta de irritação, lembra que virou presidente não por acaso, mas porque a Constituição assim determinava. Recusa-se a estender a pesada troca de farpas com o antigo cabeça-de-chapa, Collor. Fora da gravação, diz que começou a discordar do então presidente já na primeira semana de governo, quando do traumático confisco do dinheiro depositado em cadernetas de poupança e em contas correntes. “Ali aconteceu o primeiro conflito”, confessa.
Os vocábulos estocados nos dicionários da língua portuguesa não são suficientes para adjetivar a personalidade do engenheiro Itamar Augusto Cautiero Franco. O homem já foi chamado de temperamental. Imprevisível. Surpreendente. Indecifrável. Enigmático. Um adjetivo, contudo, ficou colado ao nome de Itamar Franco quase como se fosse outro sobrenome: “mercurial”. O problema é que a palavra não existe nos dicionários – pelo menos, não no sentido usado pelos cronistas políticos para se referir ao ex-presidente. Lingüistas, correi: Itamar Franco conseguiu criar um problema para os dicionaristas.
Dono de uma coluna que trata da língua portuguesa no site da revista eletrônica No Mínimo, o jornalista Sérgio Rodrigues foi abordado por um leitor intrigado com o uso da palavra “mercurial” para definir personalidades sujeitas a rompantes – como, por exemplo, o presidente da Argentina, Nestor Kirchner, capaz de abandonar pelo meio uma reunião internacional, sem disfarçar o tédio ou o descontentamento. Rodrigues foi a campo para matar a curiosidade do leitor: de fato, lexicógrafos brasileiros limitam-se a dar ao adjetivo mercurial o sentido de “relativo a mercúrio”. Nada a ver com oscilações de temperamento. O que explica, então, o uso da palavra com sentido tão diferente?
A explicação do tira-dúvidas Rodrigues: “Mercurial é um estrangeirismo semântico, isto é, uma palavra que teve o sentido tradicional alterado ou estendido por contágio de outro idioma. Em dicionários de inglês, encontraremos a seguinte definição: ‘sujeito a alterações bruscas e imprevisíveis; que tem comportamento errático; temperamental’. Exatamente como Kirchner, o bocejador. Ou, a propósito, Itamar Franco, certamente a pessoa que mais foi chamada de ‘mercurial’ na história da imprensa brasileira”. Resumo da ópera: para tentar definir Itamar Franco, os cronistas tiveram de recorrer aos dicionários de inglês.
Quando fala, como vai fazer agora, a esfinge de Minas sabe guardar segredos. Cita, mas não revela, um conselho “tenebroso” que teria recebido enquanto ocupava a presidência – algo ainda pior do que a sugestão de fechar o Congresso. Mas termina fornecendo pistas reveladoras sobre os métodos que seguiu quando era o homem mais poderoso do Brasil. Admite que passava a imagem de um presidente cerceado pelo poderoso “primeiro-ministro” Fernando Henrique Cardoso. Mas avisa aos navegantes: a encenação era planejada. Não havia amadorismo ali.
“Itamar não é fácil”: até as pedras das ruas de Juiz de Fora sabem que o ex-prefeito, ex-senador, ex-governador e ex-presidente nunca foi dado a fazer confidências a repórteres. Quando baixa a guarda, porém, o mercurial-mor da República é capaz de produzir depoimentos reveladores para quem tenta entender o enigma Itamar Franco.
CONFIRMADO : POLÍTICOS SUGERIRAM AO PRESIDENTE ITAMAR QUE FECHASSE ,POR UM TEMPO, O CONGRESSO NACIONAL
Que segredo o senhor teve de guardar quando estava na presidência mas hoje pode contar?
Não sei se posso contar todos os segredos. De pronto, posso mencionar um, ocorrido quando assumimos o governo. Dentro da turbulência e da falta de auto-estima que o País vivia, nosso primeiro objetivo, naquele momento, era a manutenção do estado de direito e da democracia. Eu, particularmente, tinha lutado pela democracia desde jovem, desde que tinha sido prefeito de Juiz de Fora. A primeira preocupação, portanto, era essa.
Quando estava tentando formar o ministério, falei com uma figura muito importante, que ocuparia um cargo fundamental. A resposta que obtive foi: “Itamar, gosto tanto de você, mas, pelo amor de Deus, me deixe onde estou, porque você não vai durar 48 horas na presidência”. Aquilo realmente me trouxe preocupação.
Resolvi substituir os ministros militares, por quem tinha muito respeito. Sempre tive, aliás, muito respeito pelas Forças Armadas. Mas eu tinha de fazer a substituição dos ministros militares. Fernando Henrique Cardoso, a quem nós já havíamos escolhido para ser ministro das Relações Exteriores, assustou-se um pouco: achou que aquilo poderia impedir a continuidade do governo.
Tivemos durante algum tempo a sensação de que poderia não haver uma continuidade – sobretudo depois que determinada revista, já na primeira semana após a nossa posse, publicou, na capa, um título provocado pelo fato de que não havíamos nomeado nenhum ministro de São Paulo para a área do Ministério da Fazenda ou do Planejamento. Tínhamos escolhido um nordestino e um mineiro: Gustavo Krause, para a Fazenda, e Paulo Haddad, para o Planejamento, dois grandes ministros, dois grandes amigos. Mas a revista veio assim: “Ministros pífios”(O ex-presidente refere-se à Veja – que, na edição de 7 de outubro de 1992, estampava na capa o seguinte título: “Início pífio: Itamar monta um ministério de compadres”). A gente já imaginava que atrás daqueles “ministros pífios” poderia haver outro movimento…
O importante é que, ao longo do processo que vivi como presidente da República, sempre me preocupei, até por formação, com a manutenção do estado de direito. É uma formação que vem de dentro de casa e também da atividade política, desde os tempos de prefeito da minha querida cidade de Juiz de Fora. Tantos lutaram pelo estado de direito, um ideal que perseguimos ao longo da vida. Queríamos também dar ao País uma nova ordem econômica, o que terminou acontecendo, realmente.
É verdade que o senhor recebeu uma sugestão para fechar o Congresso?
Você vai me colocar numa situação difícil. Mas é verdade. Só não vou dizer o nome dos parlamentares. Vou preservar o nome dos parlamentares porque acho que devo manter esse detalhe sem uma revelação pública. Nós estávamos no palácio, quando dois deputados e um senador entraram de repente, abruptamente, no gabinete e disseram: “O Congresso enfrenta uma crise muito séria. Há corrupção generalizada na área da comissão de orçamento. Quem sabe, você fecharia o Congresso? Faria uma limpeza e, então, daríamos uma nova ordem institucional ao País”.
Falei: “Não! Não! Eu quebraria tudo aquilo que aprendi desde jovem, tudo aquilo que sinto. O Congresso é fundamental num processo democrático. Comigo não contem! Vamos resolver a crise no Congresso. O governo dará todo o apoio que for necessário”. Tanto deu que criou uma comissão de notáveis, encarregada de dar tudo aquilo que a comissão orçamentária precisasse. O que se viu ? Deputados foram cassados.
Quando ouvi a proposta, vivi uma hora difícil. Houve uma segunda vez, um diálogo mais particular. “Vamos fechar o Congresso, vamos limpar, vamos fazer assim, tipo De Gaulle?” (Em meio à crise provocada pelos protestos de estudantes e operários em 1968 em Paris, o general Charles De Gaulle, presidente da França, dissolveu o parlamento, convocou novas eleições e obteve grande vitória eleitoral). Respondi: “Como ‘tipo De Gaulle’? Nós estamos longe da França! Vamos manter a situação. A minha idéia é: custe o que custar, nós entregaremos a faixa ao novo presidente da República, que será eleito democraticamente, como exige e quer a sociedade brasileira. Tenho pedido a Deus que me dê sempre humildade, sabedoria e, sobretudo, equilíbrio para que possa entregar o governo ao sucessor de uma maneira democrática”.
Em que altura do mandato o senhor recebeu a sugestão dos deputados e do senador para fechar o Congresso Nacional?
A proposta foi feita logo que houve a crise da Comissão de Orçamento. Deve ter sido em outubro, novembro de 1993. A crise continuou em 1994. Por que fechar o Congresso? Por que o Congresso não poderia resolver os seus problemas? Há um aspecto importante: em toda crise, sempre respeitamos as decisões do Congresso. Mas, quando a crise ocorria no Executivo, nós sustávamos imediatamente o problema.
Tive um problema com o chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, amigo fraternal, a quem eu conhecia há anos. O pai de Hargreaves tinha sido meu líder na Câmara dos Deputados. Tenho, portanto, uma amizade fraterna com o ministro Henrique Hargreaves. Quando houve um episódio em que estavam querendo envolvê-lo, o próprio Hargreaves me procurou: “Itamar, é melhor eu sair. Depois, se você quiser, volto. Mas só depois que eu resolver o problema”. Assim aconteceu. (Acusado de ter ligações com irregularidades descobertas na Comissão de Orçamento do Congresso, o chefe da Casa Civil se afastou em novembro de 1993 e voltou ao cargo em fevereiro de 1994, depois de inocentado.)
O então ministro da Fazenda, hoje deputado, Eliseu Resende, é um grande amigo que tenho. Mas eu dizia: “Você é o ministro. Quando o Senado da República começa a discutir quem pagou suas diárias de hotel em Nova York, diminui muito o ministro da Fazenda. Infelizmente, você não pode continuar até resolver esse problema”. (Eliseu Resende perdeu o cargo depois da publicação de denúncias de que favoreceria a empreiteira Norberto Odebrecht). A mesma coisa aconteceu com o ministro das Minas e Energia que, de repente, faz um bilhete em que dizia que uma obra deveria ser dirigida para apoiar o candidato Fernando Henrique Cardoso. Tive de tirá-lo também. (Em memorando interno que vazou para a imprensa, o então ministro de Minas e Energia, Alexis Stepanenko, recomendava a assessores que programassem a inauguração de obras para antes das eleições.)
Internamente, portanto, agíamos na mesma hora. Não deixávamos. Podem me negar tudo – menos a percepção de que, em qualquer crise, nós sabíamos que o poder legislativo deveria ter, sempre, a solução dos problemas atinentes.
UM MISTÉRIO : O CONSELHO “TENEBROSO” QUE ITAMAR RECEBEU ERA AINDA “PIOR” DO QUE FECHAR O CONGRESSO
Qual foi o pior conselho que o senhor ouviu quando era presidente da República?
Prefiro não dizer. Recebi conselhos complicados. Em um regime presidencialista, o presidente é um homem solitário. Não se deve achar que o presidente tem aqueles que o cercam, os amigos, os ministros. É diferente quando o presidente vai para o quarto: em seus momentos de reclusão, ele vê passar rapidamente diante dos olhos e na mente tudo o que acontece e o que pode acontecer no País. Certos conselhos que recebi prefiro não revelar: foram tão tenebrosos que prefiro lembrar das coisas boas do meu governo.
Mas o pior foi o de fechar o Congresso?
Houve um pior.
Não quer dar nenhuma pista?
Não. Mas vamos ser sinceros: fechar o Congresso é complicadíssimo. Tivemos um presidente que fechou o Congresso durante dias. (O Congresso Nacional foi posto pela última vez em recesso no governo do general Ernesto Geisel, em abril de 1977, com base no Ato Institucional nº 5 – que conferiu poderes ilimitados ao Poder Executivo de dezembro de 1968 a outubro de 1978). Não foi bom para o País. Como não é boa para o País nenhuma crise. O governo acha que a crise não existe. Pensa que a crise pode ser tamponada e escondida, tenta impedir que uma Comissão Parlamentar de Inquérito se instale. Isso é mau para o País. Porque a crise se agrava e se aprofunda. É o que acontece também quando o presidente resolve manter nos cargos elementos do governo que estão processados pelo Supremo Tribunal Federal ou acusados deste ou daquele delito. Não estou entrando no mérito. Mas estou dizendo que são quistos que não devem existir. Isso, no entanto, é problema de cada presidente.
Qual foi o momento mais dramático que o senhor viveu no Palácio do Planalto?
Quer queira ou não, o presidente é um homem solitário no regime presidencialista – sobretudo, nas crises e nos momentos em que precisa tomar decisões difíceis. São decisões que, às vezes, chocam a alma e a mente do presidente. Defendo o regime parlamentarista desde que era rapaz, desde os tempos de estudante de engenharia. Basta dizer que o meu diretório acadêmico foi um dos primeiros a imprimir o parlamentarismo no estatuto. Imagine só: engenheiros estudando o parlamentarismo! Coincidentemente, fui orador da turma de engenharia: meu paraninfo, o doutor José Bonifácio, fez um discurso de apologia ao parlamentarismo, uma idéia que sempre me impregnou.
O parlamentarismo resolve facilmente as crises. É o que se vê na Itália. O presidente fica imune a qualquer crise. Cai o primeiro-ministro ou cai o gabinete, mas a nação não sofre nenhuma perturbação forte. Já as turbulências do presidencialismo podem levar a crises institucionais, se não se tomar cuidado. São crises institucionais que, às vezes, independem do presidente e independem da própria sociedade. Mas, quando a crise avança… Costuma-se dizer no Senado: “A gente sabe como uma CPI começa, mas nunca sabe como termina”.
Os momentos mais dramáticos foram as primeiras noites. Aquilo martelava os meus ouvidos: “Não dura 48 horas. Não dura 48 horas.” Devo dizer que aquilo não apenas martelava os ouvidos, mas machucava a alma e obrigava a mente a achar que aquela era uma expressão que não vingaria num país que tinha lutado tanto para alcançar a democracia.
Qual foi o comentário mais surpreendente que o senhor ouviu de um dirigente estrangeiro?
Sempre imaginaram que o Brasil não era um país realmente democrata. Pensavam que não éramos um país que buscava, como sempre buscou, o estado de direito. O Brasil vivia sob um estado de direito no final do meu governo. Fomos nessa época, em dezembro de 1994, à famosa Cúpula das Américas, a reunião em que se ia discutir a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), em Miami.
Resolvi levar comigo o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso. Eu era o presidente da República, ele era o presidente eleito. O fato de eu levar o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso e dar a ele todas as honras, a ponto até de me afastar um pouco, surpreendeu aos que pensaram “O Brasil, então, mudou! O Brasil tem um presidente que traz o presidente eleito!” Por que eu levei? Porque ele tinha sido eleito por nós. A eleição de Fernando Henrique Cardoso dependeu do Plano Real, sobretudo. Pode ele não gostar, porque costuma dizer que ele é quem fez o Plano Real.
Não discuto nem brigo: um dia, vão ver que a assinatura não foi a de Fernando Henrique. Porque muitos trabalharam no Plano Real: Paulo Haddad, Gustavo Krause, Eliseu Resende, Fernando Henrique Cardoso e o grande sacerdote do plano, o ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero. Lamentavelmente, o ministro Ricúpero teve de sair, pelas condições que todo o Brasil conhece. Depois, veio o ministro Ciro Gomes, a quem muito devo também. Mas, naquele instante, Fernando Henrique se agarrou ao Plano Real. Como o plano não era uma planta de beira de rio, que vai embora na primeira enchente, Fernando Henrique ficou agarrado a ele. Assim, elegeu-se, independentemente de todas as qualidades que tenha.
(Ao todo, o presidente Itamar teve seis ministros da Fazenda: Gustavo Krause- outubro de 1992 a janeiro de 1993;Paulo Haddad- janeiro a março de 1993; Eliseu Resende- março a maio de 1993; Fernando Henrique Cardoso- maio de 1993 a abril de 1994; Rubens Ricupero – abril a setembro de 1994; Ciro Gomes- setembro de 1994 a janeiro de 1995.)
Quando o presidente eleito Fernando Henrique foi comigo para Miami, deixei que ele aparecesse sempre em primeiro plano. Em outras ocasiões, durante meu governo, deixei que ele aparecesse em primeiro plano, ao contrário do que esperavam os que não o queriam como meu candidato. Eu, às vezes, até me afastava. Ria quando a imprensa dizia: “Fernando Henrique é o primeiro-ministro…”
Eu até achava bom, porque aquilo favorecia um homem que, nas primeiras pesquisas (eleitorais), tinha 16% (de intenções de voto) contra 44% de Lula. Fernando Henrique, então, precisava aparecer comigo. Isso era feito não porque eu fosse bobo: era proposital! Mas a imprensa achava que eu era bobo. Fui deixando Fernando Henrique ser “primeiro-ministro”. Preciso dizer, aqui, o seguinte: depois de muito tempo na história republicana, nós fizemos o nosso sucessor – e sem usar a máquina administrativa!
Quando levei o presidente eleito comigo para a reunião de Miami, presidentes que ali estavam – acredito que até o presidente Bill Clinton – notaram: “Interessante – o Brasil traz o presidente eleito. O processo democrático vai ter continuidade com Fernando Henrique Cardoso”.
O senhor nomeou Fernando Henrique Cardoso ministro da Fazenda, no Diário Oficial, sem que ele tivesse aceitado o convite?
Eu tinha enfrentado uma crise, triste, para mim: a destituição do ministro Eliseu Resende, às duas e meia da madrugada, quando eu disse a ele o que pensava em relação ao problema discutido no Senado da República. Peguei o telefone: “Fernando, estou com necessidade de um ministro da Fazenda. Vejo que você, apesar de sociólogo, tem as qualificações para assumir neste momento…” Diga-se de passagem que nós nos dávamos muito bem na época. Disse a Fernando: “Se você pudesse assumir o Ministério da Fazenda…” Fernando Henrique não me disse nem sim nem não. Ficou de pensar. Mas resolvi publicar a nomeação. Se ele não quisesse, eu teria revogado.
Isso foi uma maneira de forçá-lo a aceitar?
Fez bem a ele.
ITAMAR FALA DE UM ASSUNTO QUE O INCOMODA : O “CONSTRANGIMENTO” DE TER SIDO FOTOGRAFADO, NUM CAMAROTE DO SAMBÓDROMO, AO LADO DE UMA MODELO QUE NÃO USAVA CALCINHA
O fato de uma modelo ter sido fotografada ao lado do senhor, numa pose indiscreta, foi o momento mais constrangedor que o senhor viveu como presidente da República?
Aquele foi o momento mais constrangedor. Mas se aquela modelo entrou no camarote, pergunto: eu poderia pôr um espelho embaixo, para verificar se a pessoa estava nua? Não tinha jeito! Não podia fazer. Ou podia pôr um espelhinho? Se soubesse, talvez pusesse, sim, um espelho grande, para ver quem estava sem calça ou com calça… Mas aquele foi um momento de muito constrangimento. (Depois de ter desfilado no Sambódromo, no Rio de Janeiro, a modelo Lilian Ramos posou ao lado do presidente vestindo apenas uma camiseta curta sobre o corpo nu – os flagrantes registrados pelos fotógrafos, postados abaixo do camarote, correram o mundo nos dias seguintes.)
Não sei se ele se recorda, mas fui o primeiro governador de estado a fazer a campanha do então candidato Lula. Logo que assumi o governo, nós o lançamos, em Ouro Preto. Nem candidato ele era. Depois, ao longo do meu mandato de governador, defendi a candidatura do hoje presidente Lula, junto com José Dirceu, a quem quero muito bem. Fui igualmente o único governador que esteve presente ao último comício de Lula, em São Bernardo do Campo, quando ele se debulhou em lágrimas. Também emocionado, deixei as lágrimas caírem, debaixo da chuva. Não sei se o presidente Lula se recorda , mas ele chegou perto de mim e disse: “Itamar, o que é que você quer?” Resolveu me mandar para a embaixada do Brasil na Itália. Pela afetividade, por ligações familiares lá, aceitei, mas com receio exatamente do problema que já tinha acontecido. (Logo depois de ganhar fama instantânea, em 1995 Lilian Ramos passou a viver justamente em Roma.) Fiquei bastante preocupado.
A foto da modelo, tirada durante um desfile de carnaval, comprometeu de alguma maneira a imagem presidencial?
Tenho a impressão de que não, porque eu estava ali inocentemente. Não convidei a modelo para ir ao meu camarote. Como disse, para saber se ela estava de calcinha, eu teria de pôr um espelho por baixo – ou, então, levantar a saia, o que eu não faria. Mas aconteceu de ela estar sem a calcinha. Não se pode ter medo de dizer que ela estava sem calcinha, porque ela estava, sim. É o que se verificou, depois. Mas repito que ela não foi convidada por mim. Alguém a colocou lá, alguém que se aproveitou de um descuido qualquer. Meu processo de liberdade, em que não me rodeio de muita segurança e deixo as coisas acontecerem, às vezes pode ser um erro. Alguém introduziu a modelo ali, maldosamente. Afinal, ninguém entra sem roupa num camarote, sobretudo no do presidente da República.
Aquilo causou um constrangimento público ao senhor?
Ah, muito constrangimento público, muito constrangimento…
Porque a foto teve até repercussão internacional…
Teve repercussão internacional. Tentei, depois, dar um telefonema para a modelo. Queria dar o telefonema para chamá-la e enquadrá-la. Tive de usar outro artifício, mas ela entendeu diferente. Terminou gravando o telefonema. O episódio causou um constrangimento internacional. Quem brincou comigo, numa determinada solenidade, foi o rei (Juan Carlos I) da Espanha. Havia um quadro. O rei chegou perto de mim e disse: “Meu caro Itamar, eis aí uma coisa de que você gosta…” Nós brincamos, tal a liberdade que ele tinha comigo. Mas aquilo me custou caro – um banzé danado. Eu é que fui prejudicado, porque todo mundo se beneficiou.
Que personalidade nacional ou estrangeira decepcionou o senhor na presidência?
De personalidade nacional não quero falar, porque eu poderia levantar uma celeuma que não me interessa nesse instante. Entre as personalidades estrangeiras, não me recordo de nenhuma que tenha me decepcionado. Sempre respeitei a personalidade e o modo de dirigir dos governantes. A gente aprende que não se deve interferir na gestão desse ou daquele presidente. Ao contrário. Mas houve duas figuras que me impressionaram. Uma pertence ao campo da religião. Pode-se até discordar da linha que ele seguia. Não quero debater a doutrina social da Igreja. Mas devo dizer que o papa João Paulo II me impressionou. Considero-o um peregrino da paz. Fiquei impressionado com a peregrinação que ele fez por uma paz que, infelizmente, até hoje, no século XXI, não conseguimos.
Hoje, vejo falar das relações entre Brasil e Venezuela. Mas Brasil e Venezuela, em minha época nas presidência, estavam de costas um para o outro. Fui o primeiro a visitar o presidente da Venezuela, Rafael Caldeira, depois que ele foi eleito. Vi que ele tinha um amor grande pelo Brasil. Ali, foi possível fazer com que Venezuela e Brasil voltassem a ter amizade. A aproximação foi tão grande que o presidente Rafael Caldeira tornou-se um dos primeiros presidentes a defender a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU.
São figuras que me impressionaram. O presidente Rafael Caldeira, pela simplicidade, pelo bem querer em relação ao Brasil e por seus desejos democratas. O Papa João Paulo II, por ser um peregrino da paz, uma figura notável.
Tive três encontros com o Papa. Dois encontros ocorreram aqui no Brasil. Um ocorreu em Roma, quando o presidente Lula me pediu que o representasse no Jubileu do Papa (em 2003). Fui um dos 16 que puderam cumprimentá-lo. O Papa já estava doente. A gente seguia todo o drama pessoal não do Papa em si, mas daquela figura humana. Ao me ajoelhar para pegar na mão de João Paulo II e olhar para a face daquele homem, me emocionei bastante. Quando disse que era brasileiro, ele respondeu: “Oh, brasileiro”. Olhou-me rapidamente nos olhos. Pude ver que ali estava um homem que claramente demonstrava, no olhar, uma tristeza profunda.
(*) Trechos de entrevista publicada na íntegra no livro “DOSSIÊ BRASÍLIA : OS SEGREDOS DOS PRESIDENTES” - que reúne depoimentos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, gravados em 2005.
ENTREVISTA COM EVANDRO CARLOS DE ANDRADE – 8/ MORTE DE CHEFE DA GUARDA PESSOAL DO PRESIDENTE FOI “QUEIMA DE ARQUIVO TÍPICA”
O verbete “Vargas, Getúlio” ocupa um espaço privilegiado nas lembranças do repórter que começou a exercer a profissão quando o segundo governo de Vargas agonizava em meio a sucessivas crises políticas. Evandro Carlos de Andrade agita-se ao fazer um retrato falado daquele fim de época :
“Não considero que a herança de Getúlio tenha sido nociva ao país ! O que foi o governo Dutra – que veio depois da queda da ditadura de Getúlio no Estado Novo ? Dutra, um homem seriíssimo, fez um governo com o PSD – que era a elite com quem Getúlio tinha governado. Mas desperdiçou recursos acumulados durante a guerra. Houve uma festa de importações. Quando voltou ao Poder, Getúlio quis fazer um governo democrático, mas estava politicamente enfraquecido. Não resistiu à pressão. A ação dos militares contra Getúlio é até hoje um enigma para mim. Por que aquele ódio? Por que a Aeronáutica queria tanto derrubar o Getúlio?. É um mistério”
“Pude acompanhar o fim do segundo governo. Participei da cobertura da crise provocada pelo atentado na Rua Tonelero (N: um pistoleiro atirou em Carlos Lacerda, adversário de Getúlio Vargas, mas terminou matando o major da Aeronáutica Rubens Vaz. A crise aberta com o atentado culminou com o suicídio do presidente). Nunca tive dúvida sobre a natureza do atentado: tinha sido forjado no Palácio do Catete por Gregório Fortunato, o chefe da guarda pessoal de Getúlio. A morte de Gregório, anos depois, na prisão, foi uma queima de arquivo impressionante. Gregório tinha um comportamento exemplar. Quando ia ser libertado, foi esfaqueado dentro da prisão – queima de arquivo típica. Porque possivelmente ele entregaria quem o estimulou”. ( Oito anos de pois de preso, Gregório foi esfaqueado, na prisão, por outro detento do presídio Frei Caneca, em outubro de 1962. Tinha dito que estava escrevendo um diário – que, no entanto, jamais foi encontrado ).
“Carlos Lacerda chegou a levantar suspeitas – que não foram comprovadas – sobre o empresário Euvaldo Lodi, dirigente da Confederação Nacional da Indústria. Gregório tinha por Getúlio uma paixão e uma devoção de criatura para criador. Porque o Gregório tenente foi criado por Getúlio. O que levou Gregório a preparar um atentado que, no fim das contas, foi o que destruiu o segundo governo de Getúlio ? Nunca ficou claro quem estava por trás de tudo. Para o próprio Getúlio, o atentado foi um choque horroroso. Tentaram envolver a família do presidente no atentado. Duvido que a família de Getúlio estivesse envolvida. Duvido que qualquer dos filhos estivesse. Lodi pode ter tido conversas do tipo “esse camarada só matando…”. O atentado da rua Tonelero foi testemunhado por Armando Nogueira – que escreveu um texto na primeira pessoa para o Diário Carioca. Fui ao apartamento de Lacerda, logo de manhã, bem cedo, para fazer um registro sobre como estava o ambiente. Havia a suposição de que,em meio ao tiroteio, o próprio Lacerda tivesse atirado no pé, porque ele não tinha treino nenhum no manuseio de armas. Era possível. Lacerda passou pelo hospital, rapidamente, depois do atentado, mas não ficou internado. Terminou voltando para casa”.
“Quando cheguei ao apartamento, tive a sensação de tumulto e agitação. Lacerda era afoito, não tinha medo físico. Adauto Lúcio Cardoso um dia me disse que convidou Lacerda para ir visitá-lo num sítio em Teresópolis. Lacerda quase morreu afogado porque se atirou numa piscina sem saber nadar direito. Não tinha nenhuma noção do perigo”.