O DIA EM QUE O GÊNIO ORSON WELLES FOI PERSONAGEM DE UMA CENA DE SEXO NUM BAILE DE CARNAVAL NO TEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO ( E OUTRAS CONFISSÕES, REVELAÇÕES E HISTÓRIAS APIMENTADAS DO ATOR SÉRGIO BRITTO)
O ator Sérgio Britto não perdoa : fala.
Ainda bem.
Aos oitenta e sete anos de idade, ele poderia até ceder à tentação de dar por uma encerrada uma carreira que já se estende por seis décadas e meia – nos palcos, nas telas, nos vídeos. Mas, não. Permanece cem por cento ativo.
Além de atuar nos palcos, encontrou tempo para escrever um livro de memórias recém-lançado pela editora Tinta Negra : “O Teatro & Eu”. Num país em que figuras públicas vivem trocando deferências, ele dá nome aos bois: fala de desafetos, fracassos, derrapagens, arrependimentos. Em suma: a matéria de que é feita a vida.
Trechos da entrevista sincera que ele nos concedeu, para o programa “Dossiê Globonews”:
Por que você diz – que já trabalhou na emergência de um hospital – diz que todo ator deveria ser médico ?
“Num hospital, especialmente numa emergência, você vê a vida na dramaticidade diária, cotidiana, de uma maneira especial. Trabalhei na maternidade na Santa Casa. Mas o pronto-socorro era o foco principal. Tive uma experiência incrível. Vi,um dia, um homem entrar morrendo. Gritava.A mulher o agarrava e ele gritava: “Eu me suicidei! Vou morrer porque eu te amava e você me traiu!”.E ela: “Não morra! Não morra! Fui uma estúpida! Eu te enganei porque sou uma estúpida!”. O homem morrendo e ela o sacudindo…Tivemos de arrancar a mulher à força,porque ela não largava o cadáver. O homem já era um cadáver – ela continuava a sacudir. Uma coisa inesquecível. A gente não consegue esta verdade no teatro. Porque o teatro não tem de reproduzir a vida. Teatro é interpretação da vida – é representação”.
Sinceramente: você se envergonha de quê, nesta carreira de ator ?
Sérgio Britto: “Todo ator tem escolhas erradas. Escolhi duas ou três peças em minha vida que não foram nada boas. Exemplo: “Corações a Ponto de Explodir”. O título era bonito. Era uma peça homossexual. Todo mundo,na época, queria fazer uma peça homossexual,porque era moda ousar. Mas fui muito infeliz.Mas a peça era muito ruim.Dessa, eu me envergonho,me culpo e bato a cabeça na parede para dizer: “Que porcaria!”.
Há uma peça que diz mas não concordo ter feito: “A Prostituta Respeitosa” – de Jean Paul Sarte. Eu fazia o papel de um negro. Naquela época, não senti tanto. Depois é que fui pensar: “Meu Deus, eu pintei minha mão e minha cara de preto, para fazer o papel de um negro, num país onde o ator negro existe; onde existem tantos atores negros esperando uma chance!”.Hoje, depois que a coisa passou, senti uma certa vergonha. Mas era o tempo….”.
Quem foi o maior mau-caráter que você já encontrou no teatro ?
“Ah, esse é fácil: não existe ninguém que possa competir com ele. Carlos Imperial era um mau caráter perigoso. Era uma pessoa que tinha o prazer de fazer o mal, fazer o errado – e ainda se vangloriava de ter feito. Eu ia viajar para a Europa.Mas,antes de viajar, fiz um contrato para que Carlos Imperial ficasse no meu lugar no Teatro Senac, enquanto eu viajava. Mandei o contrato para ele – e viajei no mesmo dia. Quando voltei, disse: “Agora, Imperial, preciso ficar com o teatro,porque tenho uma peça para fazer”. E ele: “Ah, mas não vou sair”. E eu: “Como assim ? Há um contrato assinado!”. E ele: “Mas não assinei o contato. Você se esqueceu de me mandar o contrato a tempo de eu assinar e você receber de volta. Não assinei. Para eu sair, você vai ter de pagar um mês de minha produção inteiro,todos os meus atores, tudo o que gasto no teatro. Depois, eu saio”. O pior de tudo é a raiva: que idiota que eu fui…As pessoas da classe teatral diziam: “Ah, não,não fique contra ele: Imperial é ótimo…”. Por que ? Porque Carlos Imperial era importante como divulgador. E as pessoas se entregam aos divulgadores….”.
Em quem você teve vontade de dar um soco mas não deu ?
Sérgio Britto : “Em Ipojuca Pontes. Namorava Tereza Rachel e foi assistir a um ensaio. Nós estávamos no palco ensaiando. Sem me pedir licença, ele entrou na plateia com uma prancheta e uma caneta e começou a anotar. Fiquei quieto, para não prejudicar Tereza. Porque, se fosse brigar com ele logo no início do ensaio, eu iria criar uma situação muito desagradável.Quando acabou o ensaio, ele virou pra mim e disse:”Você não vai poder estrear amanhã. Anotei os erros aqui.
A peça está toda defeituosa…”. Eu disse: “Seu Ipojuca,você entrou na plateia e tomou notas sobre o meu texto sem me pedir licença. Eu não disse nada para não chocar Tereza ou prejudicar o ensaio. Mas agora…saia daqui, antes que eu te dê um soco na cara!”. E ele saiu.
Não é que ele tenha acreditado que eu daria o soco na cara.Nem eu ia dar. Mas é uma forma de se expressar. Ipojuca nunca me perdoou. Sempre procurou me prejudicar: quando o Centro Cultural do Banco do Brasil, o CCBB, estreou em 1981, ele conseguiu fazer com que eu não ficasse lá. Inventou tudo o que pôde. Inventou,até, que eu tinha falado mal da mulher do presidente do Banco do Brasil. Eu não conhecia o presidente do Banco. Não sabia o nome do presidente – nem o nome da mulher…Ipojuca inventou que eu tinha falado mal. Criou uma situação impossível. Tive de sair”.
Qual foi o grande fracasso da carreira de Sérgio Britto e o que é que você aprendeu com ele ?
“Não chegou a ser um fracasso meu, porque não entrei na organização inicial da novela – Supermanoela. Fui chamado para fazer um papel quando a novela já estava em mais da metade. Não sinto que pe um fracasso especial meu. Mas é a participação num fracasso especial. A novela era tão ruim que Marília Pera deixou de fazer televisão anos seguidos.Ficou apavorada com a má qualidade da novela. E esta foi a minha participação na pior porcaria da minha vida”.
Você diz,em suas memórias, que o ator Osmar Prado foi “uma praga, uma maldiçao” para você, durante a peça “De Getúlio a Getúlio”. Igualmente, você reclama do que chama de “poder destruidor” da atriz Beatriz Segall. Chegou a hora de fazer um grande acerto de contas ?
Sérgio Britto : “Beatriz teve problemas sérios comigo na peça “As Pequenas Raposas”. Em “De Getúlio a Getúlio”, Osmar Prado fazia o papel de um ator doente, completamente psicótico, que representava Getúlio Vargas. Os dois me criaram grandes problemas. Mas o tempo passou. Vejo dentro do processo do teatro. Não tenho nada contra Osmar Prado nem contra Beatriz Segall. Pelo contrário: prefiro me lembrar de uma fase muito boa da Beatriz, em quem eu via uma atriz muito disponível, uma atriz querendo acertar, pedindo mais ensaio. Do Osmar eu continuo a ver o talento que ele tem. Aparece em cada novela que ele faz! É um ator poderoso. Agora, não sei se o que há nele: uma vontade de destruir. Em “De Getúlio a Getúlio”, ele fazia um ator muito perturbado – que começa a assumir demais o Getúlio.Num momento, ele ficava falando de Getúlio. A cena era engraçada, porque, justamente, ele começa a falar e eu dizia: “Paulo (era o nome do personagem) chega ! Você está assumindo Getúlio”. Um dia, ele se vira para mim e diz: “Quem é você? É o fantasma do pai do Hamlet ?”.
Eu disse: “Não!”. Mas aí eu parei e resolvi responder a ele. É caco ? Vou soltar o meu : “Não. Eu sou o diretor Sérgio Britto – que quer te dirigir. Mas você quer dizer bobagem. Vou sentar naquela cadeira, vou deixar você falar a bobagem que quiser. Mas aviso: não vou achar graça!”. Você sabe que ele teve um ataque de riso ? Neste dia, ganhei de Osmar Prado”.
Qual foi a cena mais impublicável que você já testemunhou, dentro ou fora de um palco ?
“Nós estávamos no Teatro Municipal , num baile de carnaval. De repente, vimos Orson Welles agarrando e mordendo uma mulata, numa aflição louca. Não queria ver nada: agarrava a mulata, foi descendo, se ajoelhou. Nós vimos o que ia acontecer. A turma em volta foi fechando. Fez uma coisa tão fechada que Orson Welles desceu e meteu a língua na mulata. E nós o protegemos”.
Quem você viu domindo na plateia de uma peça ? E você já dormiu profundamente na plateia de algum espetáculo?
Ultimamente, tenho cochilado. Mas não tem sido culpa minha: os espetáculos é que andam muito ruins. Nada no Brasil anda muito bem. Por que é que o teatro seria privilegiado ? O teatro também não anda muito bem. Tenho visto espetáculos que me dão um pouco de sono. Cochilo. Mas dormir mesmo não. Mas Pierre Cardin dormiu. Estávamos no balcão.E ele ameaçou cair lá embaixo. Ficamos todos preocupados. Ao fim do espetáculo, ele foi falar com Bob Wilson. Tínhamos visto o espetáculo “Cartas para a Rainha Vitória”. E ele elogiou para Bob Wilson: “Que maravilha!”. O espetáculo durava seis horas. E Pierre Cardin: “Você nos manteve atentos por seis horas…”. Fiquei olhando a coragem de Pierre Cardin de mentir.Não precisava exagerar. Porque ele tinha dormido”.
Uma pergunta pessoal: por que você de repente tentou se matar ? Você já estava ali – jovem,ainda – fazendo o que todo ator faz, ou seja, se sacrificar para chamar a atenção dos outros ?
Sérgio Britto: “Naquele dia,eu tinha ido ao baile do High Life. Apagavam a luz. Ficava tudo escuro. Eu era um rapazinho. Uma mulher lá aproveitou a escuridão, avançou em mim e me comeu.Eu estava meio bêbado. Estava num hotel de Copacabana. A família tinha ido à praia. Fiquei sozinho. Quando a família saiu, eu me levantei, peguei uma lâmina e cortei os pulsos. Mas não pensei: “Ah,quero morrer. Que desespero…Vou me exibir…”. Não. Havia em mim alguma coisa que estava querendo se libertar. Eu queria me libertar de quê ? Posso não ter raciocinado na hora,mas,logo depois, eu sabia do que era: eu queria fazer teatro, mas a família estava me empurrando para a medicina. Eu estava estudando medicina porque eles queriam, não porque eu queria. A primeira imagem dessa vontade de sair dessa prisão foi cortar os pulsos”.
Você já namorou homens e mulheres,mas recusa o rótulo de bissexual. Prefere ser chamado de homossexual. Por que esta diferenciação ?
Sérgio Britto : “Se uma pessoa tem as duas opções sexuais na sua vida, esta negócio de bissexual é ridículo. Para quem transa com mulheres mas transa com homens, é lógico que a relação que não é a habitual e não é a esperada acaba por ser a mais importante. Não adianta negar. O bissexual vai negar. Aquele que tem uma vida dupla vai dizer : “Não,é assim mesmo:sou bissexual, gosto tanto de mulher quanto de homem”. Não é verdade. Pode gostar de mulheres, mas gosta mais de homens, porque, senão, não teria esta outra busca, esta outra forma de vida sexual. Não existe mistério. O que existe é o homossexual se defendendo com a palavra bissexual.Não quero que me chamem de bissexual. Quero que me chamem de uma pessoa que tem experiências em vários setores da vida sexual, já teve mulheres, já teve homens – e continua em aberto. Estou aí. Vamos ver o que é que dá”.
O grande dramaturgo Nélson Rodrigues disse que, se pudesse escolher um epitáfio, escolheria o seguinte; “Aqui jaz Nélson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”. Se você pudesse escolher um epitáfio, qual seria ?
Sérgio Britto : “Aqui jaz Sérgio Britto – que trabalhou em teatro sempre com muito prazer. Nem pensei : saiu”.
A CRÔNICA SECRETA DA GUERRILHA : UM BRASILEIRO DESEMBARCA EM CUBA COM DÓLARES ESCONDIDOS DEBAIXO DA ROUPA.MISSÃO: DEVOLVER O DINHEIRO AO GOVERNO DE FIDEL CASTRO. NOME DO BRASILEIRO: HERBERT DE SOUZA, O BETINHO
O nome do sociólogo Herbert de Souza voltou esta semana ao noticiário: treze anos depois de morto, foi oficialmente declarado anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
Tive a chance de entrevistá-lo sobre um capítulo pouco conhecido da história da luta armada contra o regime militar:
O movimento que o ex-governador Leonel Brizola tentou organizar no exílio para combater os militares que tinham tomado o poder no Brasil em 1964 teve pelo menos um financiador – o governo de Fidel Castro – e um pombo-correio, encarregado de fazer as negociações sobre a ajuda financeira em viagens clandestinas para Cuba : o militante Herbert de Souza,o Betinho, famoso anos depois como lider da Campanha Contra a Fome.
O célebre ‘’Ouro de Moscou’’ na verdade era dólar de Cuba.
Betinho foi o primeiro dos exilados brasileiros a ir do Uruguai para Cuba em missão clandestina em busca do apoio do governo de Fidel Castro ao movimento que Brizola pretendia liderar contra o regime militar brasileiro.
Meses depois, já afastado do núcleo brizolista, Betinho terminou se envolvendo de novo com os dólares de Cuba. A Ação Popular (AP) – grupo a que Betinho pertencia – tinha desistido da guerrilha.
Resultado : Betinho voltou a Cuba com dólares camuflados pelo corpo, amarrados em cintas por baixo da roupa, porque queria devolver aos cubanos a parte que coube à AP no pacote de ajuda oferecida pela multinacional guerrilheira na época em operação em Havana.
A história da ajuda externa aos movimentos de combate ao governo militar no Brasil não foi cem por cento contada. Pela primeira vez, Betinho fala em cifras. Deixa no ar um tema para debate : neste depoimento exclusivo, diz que não vê problema ético algum em ter botado a mão nos dólares de Cuba, porque movimentos politicos de todas as tendências ideológicas recebem ajuda externa.
GMN – Como foi feita a viagem a Cuba para articular o apoio cubano à resistência ?
Betinho : ‘’Fui pedir o apoio cubano ao grupo liderado por Brizola, no Uruguai .Tive contato, em Cuba, com o comandante Piñero, o homem-forte desse esquema cubano de contatos com movimentos no exterior. Fui a Cuba para tratar do treinamento de brasileiros – e também do apoio financeiro de Cuba ao movimento. Fiz o primeiro contato. Brizola mandou emissários para dois lugares : para a China e para Cuba”
GMN-Por que você foi escolhido ?
Betinho : ‘’Tínhamos, no Uruguai, um ‘’Comando da Revolução’’, grupo que coordenava, junto com Brizola, as medidas da luta contra a ditadura no Brasil. Eu era um dos que integravam o grupo. Alguém de dentro do grupo tinha de ir a Cuba. Eu fui’’.
GMN – Há documentos secretos americanos que falam na ação conjunta de governos militares sul-americanos na perseguição a exilados no exterior. Você sentia que corria algum risco físico ?
Betinho : ‘’Algum risco a gente corria, porque nosso esquema era precário. Havia uma mala de fundo falso, usada para trazer dinheiro de Cuba. Depois, descobriu-se que essa mala era de um modelo só. Bastava alguém chegar ao Aeroporto para saber : lá vem a mala de Cuba..Era um esquema primário, tanto por parte de Cuba quanto de nossa parte. Fiquei envolvido nesse processo no Uruguai por onze meses’’.
GMN – Um relatório da CIA, divulgado há anos, diz que o grupo liderado por Brizola recebia ajuda de Cuba através de portadores que traziam ‘’dólares americanos’’. A CIA estaria se referindo a você ?
Betinho : ‘’Eu não trouxe o dinheiro. Só fiz o contato. Outros foram a Cuba e trouxeram. Não me lembro quem. Ou então Cuba entregava o dinheiro’’.
GMN- O próprio Brizola reconheceu, numa entrevista à TV em Porto Alegre, logo depois da volta do exílio,que houve uma ajuda de Cuba,’’modesta e pequena’’. Há versões desencontradas. Quanto era ?
Betinho : ‘’Eu nunca soube dessas quantias. Mas, pelo que conheco da época, milhão não era algo que estivesse ao alcance de Cuba. Porque Cuba tinha problemas de dinheiro, principalmente em dólar. Cuba tinha era a máxima boa vontade em ajudar. Brizola controlava esse dinheiro com minúcias de centavos. Porque era a subsistência do grupo. Tinha gente que estava no Uruguai por conta da chamada ‘’revolução’’ que iríamos fazer. Não tinham emprego. Brizola pagava alojamento e comida para uma turma’’.
GMN -Mas você não tratou de quantias com o comandante cubano para o grupo de Brizola ?
Betinho : ‘’A remessa do dinheiro já não foi feita comigo. Outros é que entraram no circuito. Se eu falar em valor, é um chute. Não tenho elementos. Mas eu chegaria quase a garantir que um milhão de dólares estava fora do alcance de Cuba. Não é que Cuba não tivesse o desejo de dar este apoio. Não tinha era dólar’’.
GMN – O que entrou,então,foi dólar de Cuba para os exilados no Uruguai…
Betinho – ‘’E muita economia, muita contribuição de bens do próprio Brizola. Porque ele tinha algum recurso. Não era uma pessoa pobre. Eu diria que foi pouco dinheiro que correu aí. Tão pouco que não deu margem a corrupção. Eram dezoito pessoas que iam fazer a guerrilha. O dinheiro era basicamente para passagens’’.
GMN- Quem trouxe, então, o dinheiro depois do primeiro contato que você teve em Cuba ?
Betinho – ‘’Emissários. Vinha tudo em mãos. Não se tinha acesso a banco nem conta na Suíça. Eram notas de vinte a cem dólares. Juntava-se tudo, punha-se numa mala de fundo falso. Mas nunca peguei numa mala dessas’’.
Que tipo de mensagem você levou para Fidel Castro ?
Betinho – ‘’Viajei do Uruguai para Cuba com uma carta de Brizola para Fidel Castro. Era uma carta simples : dizia que eu estava indo como emissário; pedia apoio. A carta era de uma página. Dizia : ‘’Prezado…’’. A palavra seguinte era recortada. Adiante,dizia : ‘’Nós estamos enviando o emisssário….’’. E vinha outro recorte. Todos os nomes e referências eram recortados e deixados em outro envelope.
O problema é que os dois envelopes iam com a mesma pessoa ! Quem por acaso interceptasse o emissário só teria o trabalho de encaixar as palavras recortadas no espaco correspondente. Ficaríamos desmoralizados pelo primarismo do nosso sistema de comunicação! Um código deve sempre ter algo a ser decifrado.O nosso não tinha : era só colar as palavras!”.
GMN: Quantas missões você cumpriu ?
Betinho : ‘’Voltei a Cuba não como emissário de Brizola, mas em nome da Ação Popular, para devolver dinheiro. Talvez eu tenha sido o único,na história humana….
A razão por que devolvi dinheiro a Cuba foi ideológica : nós, na AP, tínhamos feito a conversão ao maoísmo. Acontece que o maoísmo tinha uma diferença ideológica com a guerrilha. Como já não íamos usar o dinheiro de Cuba para fazer o treinamento de nossos militantes, a direção resolveu,então, que os dólares deveriam ser devolvidos.
Defendi esta posição : disse que tínhamos recebido o dinheiro para treinar. Se não íamos treinar, então seria desonesto gastar o dinheiro de Cuba com outra coisa. Voltei, então, a Cuba levando o dinheiro em cintos embaixo da roupa. Eram,se não me engano,vinte mil dólares.
Os cubanos ficaram totalmente surpresos com a devolução! Tive um encontro com um auxiliar direto do comandante. Os cubanos ficaram me olhando, sem ter muitas palavras. Além de eu dizer que estava devolvendo o dinheiro – algo que jamais aconteceu lá – eu ainda dava as razões : ‘’Somos maoístas’’.
GMN – Houve casos de outros grupos que tenham devolvido dinheiro ?
Betinho : ‘’Tenho notícias de gente que fez o contrário : recebeu dinheiro da China mas armou uma empresa de táxi no Uruguai. A gente soube que aconteceu. Não ouvi falar de nenhum outro caso de devolução de dinheiro’’.
GMN – Como é que você chegava a Cuba ?
Betinho : ‘’Se a gente estava no Brasil, passava pelo Uruguai e ia para a Argentina. De lá, pegava um vôo – que passava por cima do Rio – rumo a Paris. Em seguida, Praga. Depois, Irlanda. Por fim,um pouso no Canadá, onde se pegava o vôo direto para Havana. Eram vinte e seis horas de viagem! “.
GMN – Você faria tudo de novo ?
Betinho : ‘’Faria por uma razão : naquele momento,havia duas atitudes possíveis. Uma atitude era dizer que o golpe era uma fatalidade que tinha vindo para ficar,não havia nada o que fazer, ’’vamos cuidar de nossas vidas’’. Houve gente progressista que tomou este caminho.
A outra atitude era dizer : temos de lutar! Era tudo uma decisão voluntarista de reagir,uma postura ética e democrática: querer acabar com a ditadura e fazer alguma coisa. Mas que experiência nós tínhamos ? Nenhuma! Nossa experiência era de política institucional. Trabalhamos com o Congresso, com mídia, com partidos politicos. Havia uma juventude que queria lutar. Era meio no grito’’.
GMN – Seu nome é sempre associado à etica. Como é que você julga a conduta ética, no caso da devolução do dinheiro ?
Betinho :’’A discussão que tivemos na AP na verdade tinha um fundo ético. Tínhamos mil razões para ficar com esse dinheiro. Nós estávamos precisando. O dinheiro foi dado para a Revolução ! Companheiros chegaram a defender essa tese. Diziam : a gente fica com o dinheiro, avisa a Cuba que vamos empregá-lo para a Revolução. E vamos,sim ! Respondi: ‘’Mas este dinheiro foi dado para determinada coisa – que não fizemos!. Além de tudo, estamos agora numa posição política diferente dos cubanos. Não é justo nem ético ficar com esse dinheiro’’.
O que pesou na decisão não foi a racionalidade política, mas a racionalidade ética. Como eu era da direção da AP,disse : ‘’Não tenho condições de ficar na coordenação se a gente pratica uma coisa dessas. Não aceito’’.
GMN : Qual é a importância que você dá, hoje,ao apoio cubano à resistência clandestina contra a ditadura militar no Brasil ?
Betinho : ‘’Cuba estava exportando para os outros movimentos a realidade cubana, assim como a China exportava a realidade chinesa. Não sabiam o que era o Brasil.
Cuba nos vendeu – e nós compramos ! – uma estratégia de guerrilha. Ora,guerrilha sem ampla mobilização popular é impossível ! Imaginamos uma consciência nacional anti-golpe e anti-militar. Em cima dessa consciência supostamente existente na sociedade brasileira, a gente daria uns tiros…Mas a maioria dos grupos que pregavam a luta armada nem arma tinha! Era tudo expressão de um desejo – que custou caro. Porque houve prisões, tortura, desespero, crise pessoal e familiar no meio de tudo’’.
GMN : Você vê hoje alguma ingenuidade na tentativa de organizar no Uruguai uma resistência ao regime militar brasileiro ou aquela era a única saída para o grupo,na época ?
Betinho : ‘’Sou tentado a escolher a segunda opção.
Em 1964, o golpe na verdade foi dado com ampla cobertura da mídia e da opinião pública. O confronto teria de ser feito a partir de uma iniciativa enérgica do próprio governo Jango, algo à la 1961, quando Brizola arrancou uma reação de coragem (N: Betinho se refere ao movimento liderado por Brizola depois da renúncia de Jânio Quadros para garantir a posse do vice constitucionalmente eleito, João Goulart).
Se Jango tivesse autorizado ações militares que foram propostas a ele em 1964, o golpe não prosperaria. Porque os golpistas eram tímidos. Eram quase que institucionais. Não tinham a experiência de 1930, quando houve arma, tiro e morte. Nem no Chile,onde o golpe foi avassalador. Aqui, eles iam fazer uma marcha. Tanto é que o golpe acabou tendo uma versão parlamentar’’.
GMN : Se alguem disser a você hoje que era errado receber dinheiro de Cuba para fazer guerrilha no Brasil ,que resposta você dá ?
Betinho : ‘’Digo : errado era fazer guerrilha. Uma revolução era essencialmente uma ação nacional. É preciso ter bases e recursos nacionais. De qualquer maneira,a história da revolução mundial é uma história de apoios internacionais,tanto do lado da esquerda quanto do lado da direita – e da social-democracia também !
Uns vivem ajudando os outros.Quero dizer que não tenho problema nenhum a esse respeito.O principal problema é político : um movimento que não conseguia levantar apoios nacionais – e passava a depender fundamentalmente de apoio externo – começava mal’’.
(Entrevista publicada no livro “Dossiê Brasil”, Editora Objetiva, esgotado)
Faz três anos que Joel Silveira, “o maior repórter brasileiro”, saiu de cena. Uma vez, tentei resumir, num texto de apresentação de um livro, as lições (fundamentais) que aprendi com ele sobre Jornalismo em vinte anos de convivência pessoal e profissional. Voilà:
Sou um projeto de ruína . Meu velocímetro profissional já registra quase quatro décadas de rodagem por redações. É um bocado. Quem mandou não estudar Medicina ? A hora de dizer “chega” vai se aproximando.
Todo jornalista deveria mudar radicalmente de atividade depois de dez anos de exercício profissional. Somente assim não correria o risco de se habituar ao papel de figurante do espetáculo patético encenado em redações por gente que se considera cem vezes mais importante do que realmente é.
Não existe cena tão risível quanto o desfile de vaidades desprovidas de qualquer fundamento. Em nenhuma outra profissão há um abismo tão gigantesco entre pretensão e realidade. Ninguém me contou ; eu vi, com estes olhos que um dia o crematório de Golders Green há de comer : gente incapaz de pronunciar corretamente a palavra “gratuito”, gente que escreve exceção com dois “s”, gente que constrói frases como “para mim ver”, gente que acha que “sobrancelha” é “sombrancelha”, gente que jura que o substantivo óculos exige o artigo no singular, gente que comete pérolas como “fazem dez anos” – chorai, leitor, é esta a gente que, além de se julgar superior e competente, acha-se perfeitamente qualificada para descrever o que é que aconteceu ontem, o que acontece hoje, o que acontecerá amanhã, esta semana, este mês, este ano , no mundo . Quá, quá, quá.
Pior : é gente que, a sério, exige remuneração superior à de médicos, engenheiros, nutricionistas, agrônomos, veterinários, biólogos e garis. Pausa para risos incontroláveis da platéia. Quá, quá, quá. De novo : quá, quá, quá.
É como se um cirurgião perfeitamente incapaz de manusear o instrumento de trabalho – um bisturi – saísse da sala de operações arrotando grandeza depois de cometer barbeiragens inomináveis no corpo do paciente. Falo com conhecimento de causa sobre imposturas ocorridas em redações . Conheço a raça. Orgulhosamente, faço parte do canil. Sou aquele terceiro vira-lata à esquerda, na penúltima fila. ( crianças : não se assustem com o vazamento de bílis. Feitas as contas, o Jornalismo pode valer a pena, sim. É a melhor profissão do mundo – para quem não consegue exercer tarefas realmente úteis à Humanidade. Os jornalistas podem ser, devem ser e, em geral , são benfeitores da sociedade, com as exceções de praxe. Ponto. Parágrafo ).
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Há séculos, ao comentar o resultado de uma pesquisa em que os jornalistas só conseguiam superar os ladrões de galinha num ranking de estima pública, Paulo Francis dizia que os ladrões de galinha deveriam protestar contra a injustiça. Bingo.
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Sinal dos tempos : três vezes por dia, sou visitado pela tentação de dar por encerrado meu paupérrimo espetáculo, apagar a luz da espelunca , pregar na porta um aviso de “saiu. não volta” e realizar, num subúrbio qualquer de uma cidade cinzenta, o sonho dourado de cultivar pelo resto da vida um silêncio irrevogável e benfazejo. “Ainda hei”. Só falta encontrar uma fonte financiadora. (tragédia : ela jamais aparecerá).
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Quando olho pelo retrovisor, faço um esforço para contabilizar um ganho palpável, concreto, indesmentível , em meio ao rosário de perdas, equívocos, tropeços e decepções com que fui brindado pelo exercício do Jornalismo.
Vou tentar. Agora. Um, dois, três minutos de busca. Nada. O “yahoo” instalado no meu lóbulo central falha na tarefa. “Nenhum resultado encontrado” . Meus dois neurônios pedem tempo para vasculhar de novo as gavetas da memória. Como se fosse um treinador de basquete, peço tempo ao juiz. Quatro, cinco, seis minutos de busca. Nada. Eis que surge uma luz no fundo do poço. Ah, achei um ganho profissional !
Que é o seguinte : tenho tido a chance de fazer um belo curso intensivo de Jornalismo que já se arrasta por anos e anos. Começou em 1988 – quando conheci pessoalmente o “velho lobo da imprensa” Joel Silveira.
Desde então, sou um privilegiado freqüentador da escola de Jornalismo que, sem placa na porta, sem autorização do ministério, sem quadro-negro na parede e sem lista de chamada, funciona num apartamento do sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana – o refúgio de Joel.
Lá, envolto numa concha invisível, ele se protege do mundo exterior escondido atrás de barricadas feitas de aço e papel : estantes superpovoadas de livros. O telefone – e a TV – são as únicas pontes com o horror externo. Joel diz que tem uma “diversão predileta” : falar mal de uma comentarista televisiva toda vez que ela surge no vídeo. “Assim que ela aparece, eu digo : ah, mulher chata ! Pronto. Ganhei o dia“.
Há anos Joel deixou de andar na rua. Não “circula”. Não visita. Não faz questão de ser visitado : “Só se for para receber algum pagamento. Se aparecer alguém aqui em casa com um cheque, eu boto gravata e bermuda para receber o presente”.
Fez a opção preferencial pelo isolamento. Não corre o menor risco de ser atingido pelos perdigotos ou pelo bafo de terceiros. Não sente falta da contaminação externa. Faz bem. É um felizardo. Deveria soltar fogos pela janela todo dia de manhã, para comemorar o sucesso do isolamento. Nem a Albânia, nos áureos tempos de solidão internacional, conseguiu se proteger melhor do mundo exterior.
Aos recém-chegados ao Planeta Gutenberg, devo informar que Joel Silveira (sergipano da safra de 1918) ficou famoso, ainda nos anos quarenta, como repórter dono de um texto reluzente – uma víbora capaz de verter veneno em forma de tinta quando escrevia sobre, por exemplo, as grã-finas de São Paulo.
Assis Chateaubriand, o todo-poderoso dono de uma rede de jornais, logo notou o talento do repórter recém-chegado de Aracaju. Terminou despachando Joel para cobrir a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em terras da Itália. Assim, Joel entrou para a história da imprensa brasileira como correspondente de guerra, além de repórter que imprimia uma marca própria aos textos que produzia, aos borbotões, para jornais e revistas. Humberto Mauro se enganou . Jornalismo (e não o cinema ) é cachoeira.
Se um noviço perguntasse , a este aluno medíocre do Curso de Jornalismo da rua Francisco Sá , quais são as virtudes básicas do professor Joel , eu responderia na bucha. O mau jornalista – seja ele repórter, editor, dono de jornal ou seja lá o que for – é aquele que se deixa contaminar por uma doença estúpida, a Síndrome da Frigidez Editorial (SFE). Aos não iniciados no estudo das zoonoses das redações, diga-se que a SFE é uma praga que acomete jornalistas que, depois de anos e anos manuseando fatos extraordinários, passam a achar tudo “ordinário”, comum, banal, indigno de um mísero registro nas páginas dos jornais ou no quadrilátero brilhante dos aparelhos de TV. Transformam-se em derrubadores profissionais de matérias – especialistas em mandar para a lata de lixo as histórias apuradas por quem ainda não se contaminou com este vírus nocivíssimo . O horror, o horror, o horror. Sobre jornalistas que jogam notícia no lixo , tenho histórias que dariam para encher uma enciclopédia. Poderia exibir provas, se quisesse. Mas pouparei aqui a paciência do leitor.
Os jornalistas contaminados pelo vírus da SFE deveriam mudar de profissão com toda urgência. Mas não mudam. Passam o resto da vida destilando doses amazônicas de tédio sobre vítimas indefesas – em geral, repórteres que ainda não perderam o fogo. Aos oitenta e tantos anos, Joel Silveira é uma grande exceção a esta regra : nunca perdeu a chama interior que serve de combustível ao repórter.
Uma das grandes lições de Joel : um bom e inspirado repórter é perfeitamente capaz de escrever dez páginas sobre um encontro de minutos com uma figura histórica. É o que aconteceu com o repórter Joel Silveira ao descrever o “primeiro, único e desastrado” encontro que teve com o presidente Getúlio Vargas, no Palácio do Catete.
Joel conseguiu uma audiência com o homem , na ilusão de que sairia da sala com uma entrevista. A raposa Getúlio Vargas pensou que o repórter estava ali para pedir um emprego. Nem uma coisa nem outra : Joel saiu do Palácio sem o emprego – que não queria – e sem a entrevista – com que sonhara. Um repórter burocrático seria incapaz de escrever um parágrafo de cinco linhas sobre a entrevista frustrada. Afinal, Getúlio se limitou a trocar com ele um punhado de frases bobas. Mas Joel escreveu um longo e brilhante texto que, retocado para o livro “Tempo de Contar”, termina assim, com a narrativa da frustração que sentiu ao deixar o palácio do presidente :
- Voltei ao boteco, a vários deles, durante horas amargando o fel da derrota, alisando a cara onde o chicote presidencial havia acertado em cheio. Lá para a meia-noite, entrei no Danúbio Azul, um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas, desde que existem mundo e manhãs de abril.
Pergunta-se : que jornal, que revista de hoje publicaria um texto escancaradamente autoral como este de Joel Silveira ? A resposta é um silêncio de rachar os tímpanos. O corvo de Edgar Alan Poe repete a cantilena fatal : “Never more, never more”. Nunca mais, crianças. Pobres de nós – leitores castigados com hectares e hectares e hectares de prosa que confunde narrativa jornalística com aridez vocabular e estilística.
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Joel segue desde o início da carreira o ensinamento que Albert Camus deixou em O Estrangeiro : lá pelas tantas, o personagem enjaulado numa cela diz que um homem que tivesse vivido um único dia teria recordações suficientes para cem anos. Os fiscais da saúde jornalística, se existissem, poderiam dormir tranqüilos quando fossem fazer um check –up em Joel : um grande repórter, como ele, é imune ao vírus da Síndrome da Frigidez Editorial (SFE).
Uma vez, numa entrevista , pedi a Joel que imaginasse uma cena : se fosse chefe de reportagem, que pautas ele gostaria de ver apuradas ? Sem titubear , ele desfiou a lista :
- Que tal o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva durante o governo militar ? Já se cavou um cova. Vamos cavar outras, então ! E a morte da figurinista Zuzu Angel num acidente que não entra na cabeça de ninguém ? E a explosão da bomba no Riocentro ? Qual foi a intenção verdadeira ? Era causar um massacre ? Ou dar um susto ? A morte de Juscelino ficou mal contada. A mim, não me convenceu. Eu não sou um juscelinista. Sou um leitor de jornal. E o atentado à OAB ? Quem mandou ? E a morte de Lamarca ? E a de Marighela – um sujeito astuto e conspirador, como ele era, ia sair idiotamente daquele jeito ? E aquele operário que morreu no DOI-CODI em São Paulo ? E a morte de Herzog – que não tinha motivo nenhum para se suicidar ? Isso tudo daria uma série fantástica.
Além de repórter que tira leite de pedra, Joel cultua o “prazer do texto”. O que ele escreve é uma mistura feliz de Jornalismo e Literatura. Por que não ? O brilho do texto sobre o desencontro com Getúlio Vargas é apenas um exemplo, numa montanha.
Eis outro : uma reportagem sobre a rebelião popular ocorrida no fim dos anos quarenta na Colômbia termina com a descrição de uma visita ao Cemitério Central de Bogotá. Lá, o repórter Joel vê o corpo de um menino morto no tumulto :
- Os olhos vazios fixavam o céu de chumbo e as mãos de unhas sujas e compridas pendiam sobre a laje dura – como os remos inertes de um pequeno barco. O barco fora surpreendido pela tempestade, havia perdido o leme, mas ficara boiando sobre as águas, sem afundar. Foi a impressão que me deu aquele menino : a impressão de que não havia morrido de todo. Era o que diziam os olhos muito abertos ; era o que igualmente parecia dizer o sorriso leve que mal se denunciava nos lábios finos e sem cor (…). Depois, um funcionário qualquer aproximou-se, olhou por alguns segundos o menino morto, procurou sem achar alguma coisa que ele deveria trazer nos bolsos. Tentou em seguida fechar com os dedos os olhos abertos, mas não conseguiu. Abertos e limpos, os olhos do menino morto pareciam maravilhados com o que somente eles viam, com o que queriam ver para sempre.
Compare-se este texto com a mesmice reinante hoje nos jornais e revistas. A saída é chorar “lágrimas de esguicho” no meio-fio mais próximo.
Como se tantas lições não fossem suficientes, o professor Joel dá, aos raríssimos freqüentadores da faculdade informal da rua Francisco Sá, aulas e aulas e aulas de bom-humor.
Tenho a honra de dizer que, nestes últimos anos, fui o único discípulo a freqüentar assiduamente o refúgio do dinossauro. Confirmei o que já suspeitava : somente os idiotas se levam a sério. Em todos estes anos de convivência, perdi a conta das cenas cômicas que testemunhei na escola do professor Joel.
Quando pingou o ponto final num livro que fizemos juntos – “Hitler/Stalin: O Pacto Maldito” -, Joel me ligou, eufórico, com a voz pastosa. Deu para notar que ele tinha irrigado as cordas vocais com doses escocesas de uísque. Fez-me um apelo em tons dramáticos : “Pelo amor de Deus, você sabe onde é que existe uma boa sarjeta aqui por perto ? Consegui terminar o texto ! Hoje quero beber até cair na sarjeta !”. Tempos depois, rompeu para sempre relações diplomáticas com as destilarias de uísque. Motivo oficial : já não tinha com quem conversar. Os amigos tinham morrido. “Todos !”. Passou a se auto-intitular “a maior solidão do Brasil”.
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Quando se internou no Hospital dos Servidores do Estado para uma cirurgia, passava horas sentado na cama observando os aviões que cruzavam o céu em direção ao Aeroporto Santos Dumont. Assim que cheguei para uma visita, Joel reclamou : “Quero ir embora. Não agüento mais ficar contando avião. Já contei dezoito hoje !”.
Dias depois, convocou-me para que me apresentasse imediatamente na rua Francisco Sá. Quando cheguei lá, Joel ,diante de uma garrafa de uísque pela metade, pegou o telefone para falar com um amigo que não via há anos. Do outro lado da linha, em Salvador, o amigo não deve ter entendido absolutamente nada. Joel se limitou a dizer a ele “ouça aí ! ouça aí !”. Em seguida, me fez ficar segurando o telefone junto ao alto-falante do velho toca-discos que amplificava a voz de Dorival Caymmi cantando “Peguei um Ita Norte”. O amigo teve de ouvir a música inteira por telefone. Quando a música acabou, Joel se despediu do ouvinte sem maiores explicações. “Passe bem !”.
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Quantas e quantas cenas o professor Silveira não me descreveu com um sorriso escancarado ? Uma das melhores : o dia em que o amigo Rubem Braga resistiu a um convite feito por Joel para que os dois fossem a um concerto de música clássica na Roma do pós-guerra. Joel insistiu : por que não ir ? Rubem Braga deu a explicação inesperada: “Não posso ir. Violino me dá tosse”. Joel insistiu, insistiu. Rubem Braga foi. O desastre anunciado se consumou . Assim que a violinista começou a tocar, o parceiro de Joel na noitada sinfônica teve um acesso de tosse incontrolável.
Aos freqüentadores do refúgio da Francisco Sá, Joel falará da oferta de emprego que recebeu de um assessor do presidente Jânio Quadros : ia ser nomeado para o conselho consultivo da Companhia Brasileira de Álcalis. Resposta de Joel à oferta :
- Aceito o convite ! Só quero tirar duas dúvidas. Primeira : quanto vou ganhar ? Segunda : o que é álcalis, pelo amor de Deus ? ”.
Lá pelas tantas, ele se recordará da cena surrealista protagonizada por ele e pelo gênio Nelson Rodrigues. Colegas de trabalho numa redação, sem nunca terem sido amigos íntimos, os dois cultivavam uma convivência meramente profissional . Um dia, Nelson Rodrigues estaciona diante da máquina de escrever que Joel Silveira batucava ferozmente. Não diz nada. Fica em silêncio observando a cena. Lá pelas tantas, o gênio da crônica exclama uma palavra :
- Patético !
E vai embora, sem dar maiores explicações.
Quando mostrou a Graciliano Ramos o texto de um conto que tinha escrito, Joel foi brincado com a mais radical e silenciosa resenha literária já cometida no Rio de Janeiro : Graciliano Ramos simplesmente fez picadinho do conto. Em silêncio , diante de um Joel boquiaberto , Graciliano Ramos desfez a folha em mil pedaços. As frases que o Joel iniciante considerava geniais viraram confete. O conto do Joel iniciante se perdeu para sempre.
Provocado, Joel será capaz de dar conselhos. Adora repetir o que ouviu de um gigante do jornalismo – Herbert Mathews, globe trotter do New York Times : o repórter precisa ter humildade e sorte.
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O Joel que se considera, além de “a maior solidão do Brasil”, o “último dinossauro” de nossa imprensa, é também o rei das implicâncias gratuitas. Como se fosse um franco atirador postado numa janela do sexto andar da Francisco Sá com um arsenal de petardos verbais na ponta da língua, ele adora fustigar inimigos gratuitos.
Não tolera seres “ridículos” como alpinistas, turistas e tocadores de cavaquinho obesos. Recusa-se a ouvir uma nota sequer emitida pelo violão ou pela voz de João Gilberto. Diz que, se um dia fosse nomeado Imperador de Sergipe, baixaria um decreto proibindo que João Gilberto cantasse em terras sergipanas. ”Por chatice”.
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As investidas do repórter Joel Silveira podem ser saboreadas em volumes como “Tempo de Contar” ou na coletânea lançada em 2004 pela Companhia das Letras – “A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista”, leitura que deveria ser obrigatória tanto para os noviços tanto para as múmias das redações .
O Joel deste “Diário do Último Dinossauro” não é o Joel das grandes reportagens: é o autor de pequenas tiradas, impropérios, ataques e louvações. Os textos que aqui aparecem alimentaram o “Diário de uma Víbora” – a coluna que Joel mantém na revista pernambucana “Continente Multicultural” desde julho de 2001 ( há vida editorial fora dos dois extremos da Via Dutra ! ). Os verbetes venenosos despachados para a Continente – e,por fim, reunidos em livro – foram coletados em várias fontes : anotações inéditas que Joel acumulou em pastas de plástico, fragmentos de livros como “Vinte Horas de Abril”, “A Guerrilha Noturna”, “O Presidente no Jardim” e “Você Nunca Será um Deles”.
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Um dia – eu vos prometo – pretendo reunir num livro os diálogos que tive com o mestre : longas sessões de entrevistas gravadas na escola informal da Francisco de Sá. São pelo menos seis , publicadas aos pedaços em jornais e revistas ou apresentadas , resumidamente, na TV. Lições que devem ser passadas adiante. “Vida aos outros legada” , como diria o Vate.
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Agora, crianças, favor fazer silêncio na sala : a maior solidão do Brasil pede a palavra. Do alto do refúgio onde se protege de nós todos , atrás de barricadas de papel e aço no sexto andar de um prédio da Francisco Sá , o “último dinossauro” vai disparar seus petardos venenosos neste “Diário”.
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Que ninguém se assuste : não existe guerra tão divertida. Joel não se leva a sério. Não nos leva. Não leva nada. Melhor assim.
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(*)Texto de apresentação do livro “Diário do Último Dinossauro”, publicado pela Travessa dos Editores em 2004. Meses depois da morte de Joel, vivi uma cena que, para mim, teve um significado difícil de traduzir em palavras : a pedido da filha de Joel, Elizabete, fui ao apartamento já desfeito para recolher caixas de papéis: cartas, anotações, artigos, recortes reunidos por Joel. Era um domingo calorento. As caixas de papelão pesavam. Fechei a porta da “escola de jornalismo” da rua Francisco Sá. Fui – literalmente – o último a sair de lá. O apartamento estava vazio. Entreguei a chave a uma vizinha. A cena, sem testemunhas, tinha um tom melancólico, claro, mas deixava um ensinamento: pelo menos por um instante, a herança imaterial – a memória de tantos anos de convivência – deu a ilusória impressão de ser mais palpável e mais duradoura que papéis, recortes, anotações, cartas e bilhetes cobertos de poeira e de silêncio no chão do apartamento.
Agosto. Faz três anos que morreu aquele que ficou conhecido como “o maior repórter brasileiro”- Joel Silveira. Convivi com ele durante exatos vinte anos, na condição de aprendiz. Fizemos dois livros em parceria: “Hitler / Stalin: O Pacto Maldito” ( sobre os efeitos que teve, sobre a esquerda brasileira, o pacto de não-agressão assinado entre a Alemanha e a União Soviética) e “Nitroglicerina Pura” ( um reportagem sobre documentos confidenciais produzidos por governos estrangeiros a respeito do Brasil).
Quando Joel morreu, escrevi dois textos ( em breve, o DOSSIÊ GERAL republicará um “tratado” que alinhavei sobre ele).
1
A VIDA IMITA O POEMA NA MORTE DE JOEL SILVEIRA: O AGENTE FUNERÁRIO CHEGOU NA HORA. E A PLACA DO CARRO ERA LFR 1236
Faz pouco tempo, descobri um belo poema de Lawrence Ferlinghetti. O poeta diz, com outras palavras, que o mundo é um belo lugar, mas um dia, cedo ou tarde, ele virá : o agente funerário sorridente.
E o agente veio. Acabo de sair da casa de Joel Silveira. Não quis ver a saída do corpo. A Santa Casa de Misericórdia avisou que o agente chegaria às duas horas. Pensei comigo: “Com a pontualidade brasileira, ele vai chegar lá para as quatro da tarde”. Engano. Nem uma hora e cinquenta e nove minutos nem duas horas e um : eram duas em ponto quando o agente apertou a campainha, no apartamento de Joel Silveira, no sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana. O agente encenava, sem suspeitar, o poema de Lawrence Ferlinghetti. Era como se dissesse: tudo pode atrasar no Brasil, mas a morte, quando vem, chega exatamente na hora, sem tolerância. Nem um segundo de atraso.
Desci do sexto andar. Lá embaixo, tive o gesto inútil de observar a placa da Kombi branca da Santa Casa de Misericórdia: LFR 1236. A Kombi trazia, nas laterais, o nome da Santa Casa e o telefone: 0800 257 007.
Joel tinha inveja de um personagem de Vitor Hugo que, minutos antes de ser guilhotinado, dizia, resignado, que estava pronto para a execução,mas “gostaria de ver o resto”. Ou seja: o personagem gostaria de descrever a própria morte. Que palavras Joel usaria ?
Quanto a nós, discípulos e aprendizes, já não há o que fazer, além de anotar a placa da Kombi : LFR 1236, três letras e quatro números amargamente inúteis.
2
O que dizer de um grande repórter ?
Diga-se que, numa tarde, sem ter o que fazer num quarto de hospital, ele foi capaz de contar o número de aviões que cruzavam os céus.
A cena, testemunhada pelo abaixo-assinado:
Enrolado num lençol verde para atenuar o frio do ar-condicionado ligado na potência máxima, o ex-correspondente de guerra Joel Silveira descobriu uma maneira originalíssima de combater o tédio que se abatia sobre ele nas tardes infindáveis do quarto 1122 do Hospital dos Servidores do Estado, no centro do Rio, numa das vezes em que esteve internado : resolveu contar quantos aviões passavam no céu.
O quarto 1122 oferece uma bela vista da Ponte Rio-Niterói. Da cama de Joel, era possível enxergar o intenso tráfego de aviões que se dirigiam ao Aeroporto Santos Dumont. “Já contei quarenta e três aviões. Agora, chega” – disse,ao dar por encerrada a apuração de dados aeronáuticos para uma reportagem que, ele sabia, jamais seria escrita.
A contagem de aviões nos céus do centro do Rio foi a última tarefa jornalística daquele que era chamado por Assis Chateaubriand de “a víbora”.
O apelido lhe foi dado pelo chefão dos Diários Associados depois que Joel escreveu uma reportagem recheada de ironias sobre as damas do soçaite paulistano. O título de “maior repórter brasileiro” também acompanhou inúmeras vezes o nome de Joel Silveira – que, aos trinta e dois anos, foi enviado por Chateaubriand para os campos de guerra na Itália,na Segunda Guerra Mundial.
”Fui para a guerra com 32 anos.Voltei com 80.O que a guerra nos tira – quando não tira a a vida – não devolve nunca mais” – diria, pelo resto da vida. Viu o sargento Wolf ser fuzilado por uma patrulha alemã. O texto que Joel mandou para os Diários Associados começava na primeira pessoa : “Vi perfeitamente quando…..”.
Joel Silveira era representante de uma categoria rara : a dos repórteres que dão um toque pessoal e inconfundível ao que escrevem. Passou a vida lamentando não ter abordado Ernest Hemingway que, solitário, bebia conhaque num café da Paris do pós-guerra.”Perdi a chance de pedir uma entrevista. O pior que poderia acontecer era levar um soco de Hemingway- o que garantiria uma bela matéria”. Rubem Braga foi companheiro de Joel na aventura européia durante a guerra.
Com Nélson Rodrigues – de quem foi companheiro de redação em publicações como a Manchete a e Última Hora – Joel tinha relações distantes.
Depois de ficar em silêncio observando Joel datilografar furiosamente um artigo na redação, Nélson Rodrigues soltou uma exclamação: “Patético !”. Dias depois, Joel devolveu o gesto. Diante da mesa de Nélson Rodrigues, bradou : “Dramático !”.
O humor afiado transformou-o em personagem de incontáveis histórias dos bastidores do jornalismo. Sempre que tinha chance, encaixava em seus artigos uma observação contra dois tipos que detestava gratuitamente : os tocadores de cavaquinho e os alpinistas.
“O cúmulo do ridículo – beirando o grotesco – é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”- escreveu, num dos seus livros.
Em outro texto,perguntou : “Pode haver algo mais idiota do que um alpinista ? “.
Depois de consumir quantidades oceânicas de uísque, passou os últimos anos da vida abstêmio.”Já não tenho com quem beber. Meus amigos se foram. Nada é tão triste do que beber sozinho”. Passou os últimos anos declarando : “Sou a maior solidão do Brasil”.
Repórter a vida inteira, dizia que, se houvesse justiça na hierarquia das redações, os donos dos jornais seriam subordinados aos repórteres. Só teve uma experiência como dono de jornal. Publicou, no início dos anos cinqüenta, um jornal, Comício, que reunia um time de primeira : Clarice Lispector, Rubem Braga,Fernando Sabino,Carlos Castelo Branco.
Dizia que tinha perdido a conta de quantos livros publicara. Entre os títulos mais conhecidos, estão “A Guerra dos Pracinhas”, “Tempo de Contar” e o autobiográfico “Na Fogueira”.
Resumiu assim uma trajetória iniciada num jornalzinho de escola em Sergipe,em 1935 : “Passei a vida vendo a banda passar.É o que todo repórter deve fazer”. Conheceu pessoalmente dois cardeais que, depois, seriam indicados Papas : João XXIII e Paulo VI. Teve um encontro com Pio XII. Os encontros com os Papas não foram suficientes para transformá-lo em homem religioso . Cético, gostava de repetir o poeta Murilo Mendes : “Deus existe.Mas não funciona”.
Atento aos fatos até o último momento, disse-me, por telefone: “Estou morrendo. É o fim”.
Uma das lições que aprendi: jornalista de verdade é aquele capaz de contar aviões na cama de um hospital.
ZIRALDO SOLTA O VERBO, DIZ POR QUE SE RECUSOU A PARTICIPAR DA “FLIPINHA” (“ODEIO DIMINUTIVO”) E LANÇA DESAFIO: QUER SABER SE A FLIP TERIA CORAGEM DE CONVIDAR AUTORA DE HARRY POTTER PARA “FLIPINHA”
O cartunista,escritor, artista gráfico e polivalente Ziraldo vai ser personagem de uma entrevista no ALMANAQUE - em breve,na Globonews. Mas, enquanto a entrevista não vai ao ar, ele esquenta os tamborins: diz por que se recusou a participar da “Flipinha”, a versão infantil da Festa Literária de Paraty:
“Já fui convidado uma vez. Com muita honra, fui. E achei ótimo ter ido à Flip. Mas,este ano, o que aconteceu foi o seguinte: me mandaram um convite para que eu fosse para a Flipinha. Primeiro, o seguinte: eu odeio diminutivo ! (Depois da publicação do post, Ziraldo entrou em contato para esclarecer que,na verdade, implica com diminutivos que transmitem ideia de redução). Escrevo para criança. “Flipinha” já é uma coisa que reduz o que escritor para criança faz. Odeio oficina. Odeio esse negócio de fazer oficina com criança. Não sou animador. Quero ajudar a transformar o Brasil num país de leitores. Quero participar desta festa: convencer as pessoas de que ler é mais importante do que estudar. Mas para essa coisa de ficar sentado com criança fazendo figurinha não tenho paciência nenhuma. O convite que me fizeram foi: venha para a “Flipinha”. Eu me lembrei da história de Aracy de Almeida. Era namorada de Fernando Lobo. Um dia, numa boate, ela passou diante de uma mesa em que estava Fernando Lobo – que a havia abandonado. Fernando Lobo disse: “Olá…”.Aracy parou e disse: “Não sou mulher de olá…”.
“Falo para o pessoal da Flip : “Não sou mulher de Flipinha!” ( imita voz de Aracy de Almeida). Convidem J.K. Rowling (autora de Harry Potter), que escreve para criança, para ver se ela vem da Inglaterra para a “Flipinha”! Vocês me respeitem. Convidem para eu ir para a Flip. Mas para “Flipinha” não vou. Disseram: “Mas você vai para a Jornada de Passo Fundo”. Eu disse: “Não. Nunca me convidaram para “Jornadinha”. Sempre me respeitaram: me convidam para a Jornada. Chego lá, falo para criança. Não faço oficina. Não convidam ninguém para “jornadinha”. Não existe. Isso é diminuir o escritor. Pelo seguinte: os escritores que escrevem para criança no Brasil são tão importantes – ou mais – do que a maioria dos escritores que escrevem para adulto. Temos Ana Maria Machado, Rute Rocha, Bartolomeu Campos de Queirós. Poderia citar aqui uma infinidade de escritores. O Brasil tem um elenco de escritores para criança mais importante do mundo. Antônio Skármeta, o autor de O Carteiro e o Poeta, veio conversar comigo aqui no Brasil: não conhecia um autor infantil chileno ! É inacreditável. Aqui, no Brasil, não. A gente convive e se respeita. Os organizadores vão chamar você – um escritor infantil que vende o que vendo de livros e tem a repercussão que eu tenho – para participar da “Flipinha”? Que “Flipinha” ? Não vou para “Flipinha”. É isso o que aconteceu”.
DO CADERNO DE ANOTAÇÕES : O RELATO DE UM PUNHADO DE ENCONTROS COM GILBERTO FREYRE, O BRASILEIRO QUE TINHA CORAGEM DE SE DECLARAR PUBLICAMENTE UM “GÊNIO”. E ERA.
Gilberto Freyre merece um monumento, pago pelos repórteres pernambucanos. A homenagem só não se concretiza por duas razões. Primeira : o homem já é incensado como o maior sociólogo já surgido na Terra de Vera Cruz. Não precisa de novos títulos. Segunda : onde é que repórteres mal pagos iriam desencavar dinheiro para financiar a construção do monumento ? Em todo caso, o monumento se justificaria, porque Freyre era um desses (raros) personagens em que os repórteres podiam apostar todas as fichas,sem medo de errar. Pule de dez : quem o procurava para uma entrevista voltava para a redação com uma declaração interessante -registrada no bloco de anotações ou preservada para a posteridade na fita cassete. Era tecnicamente impossível sair de mãos vazias de uma incursão pelo reino do Mestre de Apipucos.
Lá estava ele – repousado numa poltrona do Solar de Apipucos ou enfurnado no salão de tapete azul da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, pronto a ditar belas frases para os repórteres. Quando ditava uma declaração,metia na frase aqueles advérbios de modo surpreendentes;aqueles adjetivos que pareciam ter sido criados por ele. Gostava de discorrer sobre o “tempo tríbio” – um princípio tipicamente gilbertiano.O tempo não é só o presente.É uma interseção de passado,presente e futuro.
O MESTRE FALAVA
COMO ESCREVIA
O Solitário de Apipucos era um caso raríssimo de gente que fala como escreve. Quando transcreviam as declarações, os repórteres tinham a sensação de que ali estava um artigo do Mestre, escrito com todas as belas firulas de estilo que ele cultivava como poucos. Freyre era um dedicado jardineiro da Última Flor do Lácio. Como se não bastasse, fazia a alegria de editores com declarações que, hoje, seriam catalogadas no rol das crenças politicamente incorretas. Qualquer iniciado nos mistérios do jornalismo sabe que declaração politicamente incorreta sempre rende boa matéria. Um exemplo ? Gilberto Freyre dizia que a presença de analfabetos era saudável para a cultura brasileira. Porque só os analfabetos eram capazes de dar à cultura de um país um saudável toque primitivo. Enquanto o resto da humanidade dizia que o analfabetismo era um mal a ser erradicado, Freyre respondia que não,calma,não é bem assim. O analfabetismo eventualmente poderia ser saudável. Os militantes da Crença Politicamente Correta espumavam de raiva diante de tiradas como essa. Freyre parecia dizer,em resumo,que nada é tão simples quanto faziam parecer os esquemas mentais “politicamente corretos”.
Eu, mero Coletor de Declarações Alheias, fui personagem de um incidente jornalístico com o Mestre de Apipucos. Procurei-o na sala da presidência da Fundação Joaquim Nabuco para uma entrevista, na semana em que ele comemorava setenta e sete anos de vida, em 1977. O Mestre andava ressabiado com a imprensa. Tinha pegado uma briga com a revista “Veja”, por conta de inexatidões no texto de uma entrevista. Mas disse “sim” ao meu pedido. Estudante de Jornalismo, eu era repórter da sucursal de “O Estado de São Paulo”. Fazia eventualmente entrevistas para o finado “Jornal da Cidade”.
O GÊNIO INTERROMPE A
ENTREVISTA.QUERIA
CONSULTAR O DICIONÁRIO
Freyre me surpreendeu três vezes durante a entrevista. Primeiro, perguntou, textualmente : “Quais são os seus estudos ? “. Do alto dos meus vinte anos de idade, devo ter desapontado o Mestre ao informar que, àquela altura, meus estudos se concentravam no terceiro ano de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Em seguida, ao falar sobre o presidente americano Jimmy Carter,ele interrompeu a entrevista para pedir à secretária que trouxesse um exemplar do Dicionário do Aurélio. Depois de checar todos os significados da palavra “estonteado” , viu que este era o adjetivo ideal para definir as atribulações do presidente diante da política internacional.Olímpico,indagou ao repórter : “Viu como uso o dicionário ? “.
Vi,sim. A lição ficou. Devo ter matutado, intimamente: se o Mestre de Apipucos consultava o Dicionário assim sem a menor cerimônia, diante de visitas, o mínimo que eu deveria fazer dali para frente seria pedir socorro ao Pai dos Burros sempre que tivesse a menor dúvida sobre o significado de uma palavra no meio de uma frase. Thank you,Master.
A terceira surpresa viria adiante. Fiz uma lista de personalidades que o Mestre deveria definir em uma frase. Perguntei como ele definiria o arcebispo de São Paulo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns – uma figura que, na época, frequentava quase que diariamente as páginas dos jornais,na condição de um dos porta-vozes da oposição ao regime militar.Freyre me devolveu a pergunta : “Quem é mesmo ? “.
Somente um marciano recém-pousado às margens do Capibaribe não saberia dizer quem era o arcebispo de São Paulo. Freyre fez de conta que não sabia. Preferiu recorrer à ironia, com o ar mais inocente do mundo.Quem o visse fazer a pergunta pensaria que ele não sabia de verdade quem era Dom Paulo.
DESASTRE.O REPÓRTER OUVE MAL
A PALAVRA DE FREYRE
O desastre viria depois. Perguntei : “Qual o sabor destes 77 anos ? “.
O homem respondeu : “Eu quase não faço diferença entre 77 anos,67,57. Pela simples razão de que tenho uma tal saúde que preciso, a cada momento, dizer a mim mesmo: lembre-se de que é velho,porque não me sinto velho”.
A causa do incidente em que me vi involuntariamente envolvido foi a última frase. Freyre jura que disse que não se sentia “velho”. Ao transcrever a fita, entendi que ele tinha dito que não se sentia “bem”. Assim a entrevista foi publicada : com a palavra “bem” no lugar de “velho”.Vaidosíssimo,Freyre tremeu nas bases ao ler que teria declarado não estar se sentindo “bem”.
A ira do Mestre de Apipucos desabou sobre os ombros deste Coletor de Declarações Alheias. Abro o “Diário de Pernambuco” do domingo seguinte à publicação da entrevista – primeiro de maio de 1977. Eis o que o Mestre escreve, logo no primeiro parágrafo : “Concedi há pouco a jovem jornalista que me pareceu -e é – inteligente e de algumas letras, a entrevista que com muito empenho me solicitou.Entrevista gravada.Mas a gravação não é garantia absoluta de que o entrevistador apresente as palavras do entrevistado na sua exata e desejável pureza.Acontece a resposta do entrevistado à primeira pergunta desse simpático entrevistador não se apresentar de todo exato.(…)O que mostra que o tradutor de gravações,como outros tradutores,pode ser um traidor.Inexatidão que me faz pensar na força de preconceitos sobre os próprios jovens inteligentes.Um desses preconceitos o de a velhice ser fatalmente uma fase da vida de achaques e de dissabores”.
Freyre dedicou todo o artigo ao tema. Citou o exemplo de Picasso(“criativo e saudável” depois dos noventa), Pablo Casals, Bertrand Russel. Partiu da suposição – equivocada – de que eu, jovem, alimentava preconceitos contra velhos. Terminou dizendo que tinha ânimo de sobra para “viver,escrever, pintar, ler,beber um pouco de vinho,saborear uns tantos quitutes, ir a teatros”.
Tudo o que aconteceu,na verdade, foi a troca de uma palavra na transcrição da entrevista.Voltei a ouvir a fita. De novo,entendi que ele tinha dito que não se sentia “bem”. Mas preferi acreditar no que ele dizia no artigo. Gilberto Freyre deve ter dito mesmo que não se sentia “velho”.Pensei com meus botões : um desastre acaba de se consumar.Eu, repórter,acabara de perder para sempre um excelente entrevistado. Tive a tentação de concordar de uma vez por todas com o que dizia Carlos Drummond de Andrade : não adianta,a vida é um “sistema de erros”,um “vácuo atormentado”,um “teatro de injustiças e ferocidades”.
O INTELECTUAL MAIS VAIDOSO DO BRASIL
DIZ QUE É O “ÚNICO GÊNIO VIVO”
Resisti à tentação de escrever um artigo em resposta ao Mestre. O meu senso de ridículo me salvou. Quem era eu,o Famoso Anônimo, para peitar o Mestre de Apipucos ? Quem era eu,mero Coletor de Declarações Alheias, para desdizer o Autor de Frases Geniais ? Tomei uma providência longe dos olhos dos leitores.Fiz uma carta pessoal ao Mestre.Disse a ele que considerava estúpido qualquer preconceito contra velhos.Era fã de carteirinha de Bertrand Russel.Deixei a carta na antessala da presidência da Fundação Joaquim Nabuco. Zarpei. Bye, bye.
Passei a temer, intimamente, o dia em que fosse escalado para uma nova entrevista com o mestre Gilberto Freyre. O dia chegaria,cedo ou tarde. Chegou antes do que eu esperava ; a chefia de reportagem de O Estado de S.Paulo pedia que a sucursal do Recife ouvisse Freyre sobre a censura.Eu não podia fugir da tarefa. Lá fui eu, o cordeiro, para o matadouro. Freyre estava participando de uma reunião do Conselho Estadual de Cultura, num casarão antigo,ali, em frente ao Colégio Nóbrega. Fiquei na antessala, à espera de que o concílio dos intelectuais se encerrasse. Era o momento de abordar o Mestre de Apipucos.
Ei-lo : vestia um terno escuro. Andava ligeiramente vergado. Intimamente,esperei que ele se desvencilhasse com um muxoxo do repórter que lhe dera tanta dor de cabeça. Ou me desse uma bronca pública diante de seus pares. Que nada. A reação do Mestre foi surpreendente. Deu-me um abraço apertado. Disse-me ao pé do ouvido : “Estou fazendo a melhor impressão de você !”. O acordo de paz foi firmado ali. Como vampiro em busca de sangue, voltei a importunar o Mestre de Apipucos repetidas vezes.Queria declarações bombásticas. É o que todo repórter quer,quando procura uma celebridade. Não existem santos nesse metier. Guardo, em meus arquivos implacáveis, as gravações das entrevistas. Numa, ele confessou : tinha uma avó que morreu certa de que ele, o neto, era “débil mental”.Freyre chegou aos oito anos “sem saber ler ou escrever”.
Como “penetra” (ou, para usar um eufemismo, repórter), participei da festa dos oitenta e três anos de Gilberto Freyre, no Solar de Apipucos, no dia 15 de março de 1983. Recém-empossado,o governador Roberto Magalhães foi render homenagens ao mais ilustre dos pernambucanos.Freyre segurava uma taça de licor (devia ser de pitanga).
Resolvi tirar uma velha dúvida.Por que será que ele era tão vaidoso ? Todo mundo em Pernambuco comentava que não existia ninguém tão vaidoso quanto o Mestre de Apipucos,mas ninguém o abordava para perguntar,sem meias palavras,qual o motivo de tanta vaidade.
Freyre me respondeu,também sem meias palavras : “Eu me considero um gênio”. O repórter soltou fogos, intimamente, para comemorar a colheita de tal declaração. Adiante, embalado pelo ambiente de festa, Freyre diria que não existia nenhum gênio brasileiro vivo comparável a ele. Diante da insistência, citou dois mortos : Aleijadinho e Villa-Lobos.
Deve ter sido nossa última entrevista. A declaração de Freyre volta e meia é repetida. Ficou. Se houvesse justiça no mundo, nós, repórteres, deveríamos financiar a construção de um monumento ao Mestre de Apipucos. Poucos entrevistados terão produzido tantas declarações originais com tanta frequência.
O monumento teria o estilo das esculturas de Aleijadinho. Se fosse inaugurado ao som de uma Bachiana de Villa-Lobos, a festa estaria completa.Os três gênios – escolhidos a dedo pelo próprio Freyre – finalmente ficariam juntos por um momento.
Mas, ah, jamais haverá tal homenagem, porque a vida sempre foi e será um “sistema de erros” , um “vácuo atormentado”, “um teatro de injustiças e ferocidades” eventualmente povoado por personagens inesquecíveis.