QUEM É “O HOMEM MAIS AZARADO DA HISTÓRIA DA MÚSICA” ? RESPOSTA : PETE BEST, O PRIMEIRO BATERISTA DOS BEATLES
A Globonews exibiu, DOSSIÊ GLOBONEWS, uma entrevista exclusiva com o “homem mais azarado da história da música” : Pete Best, o ex-baterista dos Beatles. http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1470456-17665,00-EXBEATLE+PETE+BEST+REVELA+HISTORIAS+DE+BASTIDORES+DA+BANDA.html
John Lennon, George Harrison, Paul McCartney e Pete Best: The Beatles!
Quem deu o telefonema foi Paul McCartney. Os Beatles iriam viajar para uma série de apresentações em clubes noturnos de Hamburgo, na Alemanha. Pete Best gostaria de fazer parte do grupo como baterista ? A resposta: sim.
Paul McCartney era, à época, um músico (quase) anônimo de Liverpool. Pete Best, idem. Os Beatles ensaiavam seus primeiros passos. John Lennon e George Harrison já faziam parte do grupo. Nem de longe imaginavam que iriam se tornar ícones da cultura pop do Século XX.
O resto,como se diz, é história. De agosto de 1960 a agosto de 1962, Pete Best foi um Beatle. Era o baterista do grupo. Terminou dispensado sem maiores explicações. Quem deu a ele a má notícia foi o empresário Brian Epstein. Os ex-companheiros de banda preferiram escapar do constrangimento. A demissão de Pete Best se tornou um dos “mistérios” da música pop. Nunca apareceu uma explicação convincente.
Pouco tempos depois de sair do grupo, Pete Best viu os Beatles se tornarem sucesso mundial. Terminou tentando o suicídio, “sem razão”, como diz. Mas qualquer psicólogo amador seria capaz de apontar o motivo: o enorme sentimento de perda. Não por acaso, Pete Best chegou a ser apontado como o homem mais azarado da história da música,por ter saído dos Beatles às vésperas da consagração do grupo como a maior banda já surgida na música pop.
Quase meio século depois de ter recebido o telefonema de Paul McCartney, eis Pete Best diante do locutor-que-vos-fala, para gravação de uma entrevista. Hoje, comanda a Pete Best Band. Faz excursões pelo mundo. Em qualquer parte, haverá sempre um punhado de beatlemaníacos em busca de uma foto ou um autógrafo de um ex-beatle.
Ter saído dos Beatles significa, para Pete Best, o que a derrota para o Uruguai significou para os jogadores da seleção brasileira de 1950: uma marca para o resto da vida. Todo e qualquer contato com Pete Best termina, inevitavelmente, enveredando pelo agosto aziago de 1962: ali, ele perdeu o prêmio grande da loteria. Não há como não tocar no assunto.
Tive a curiosidade de tentar descobrir como é que o personagem de uma perda desta magnitude convive com o (inevitável e imorredouro) sentimento de frustração. Logo no início da entrevista ( a terceira que fiz com ele – de 1985 para cá ), constato que Pete Best construiu uma explicação duradoura para compensar a frustração : em vez de cair na lamentação pura e simples, diz que, independentemente do que pode ter acontecido, ele é, para todo o sempre, parte da história da “maior banda” de todos os tempos. Para ele, é o que conta. É verdade. Ponto final.
Pete Best é um grande personagem jornalístico. Porque a história dos perdedores pode ser – e é – tão fascinante quanto a dos vitoriosos.
Tive a chance de entrevistar, na segunda metade dos anos oitenta, os onze jogadores que perderam a final da Copa do Mundo de 1950 para o Uruguai, no Maracanã, na maior tragédia da história do nosso futebol. Os onze perderam,igualmente, a chance de conhecer a glória, a fama, a fortuna. Eram onze Pete Best . A exemplo de Pete Best, os menos amargos trataram de construir, também, um belo consolo: diziam que, para eles, o que importava era que a Seleção de 1950 foi a primeira a conquistar um título de importância para o futebol brasileiro – o vice-campeonato mundial de futebol. Um dia, seriam reconhecidos. Se passassem o resto da vida lamentando o gol de Ghiggia, enlouqueceriam.
Pete Best foi ao “fundo poço”. Fechou a porta e abriu o gás, em casa, em meados dos anos sessenta, mas foi salvo pela mãe. A cada vez que alguém fala do dia em que saiu dos Beatles, ele trata de se defender, com uma explicação que parece convincente.
Como se fosse um desses gurus de autoajuda, ele nos diz que o importante não é exatamente o que aconteceu, mas a maneira como cada um escolhe olhar o passado, este velho monstro inapagável.
A lição de Pete Best pode ser útil, utilíssima.
Feita esta constatação, declaro solenemente encerrada minha carreira de pseudo-conselheiro.
O DIA EM QUE O BLOGUEIRO GRAMPEOU O GENERAL ERNESTO GEISEL, NA BUSCA (FRACASSADA) POR UMA ENTREVISTA
Crianças, favor prestar atenção : quem nasceu ontem talvez nem saiba, mas 2010 marca os vinte e cinco anos do fim do regime militar. O último general a governar o país deixou o Palácio do Planalto em 1985. Chamava-se João Figueiredo. O penúltimo presidente do ciclo dos generais chamava-se Ernesto Geisel.
Pausa para um relato da perseguição particular que movi em busca de uma mísera frase do general:
Confesso o fracasso: o máximo que consegui arrancar do general Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979), no primeiro e fugidio contato que tive com ele, foi uma declaração de duas palavras. É impossível escrever uma entrevista decente com uma declaração de apenas seis letras. Frustração. Meu plano dera errado. Ernesto Geisel passara a um metro de onde eu estava, no canteiro de obras da Barragem de Carpina, na zona da mata de Pernambuco, no dia 20 de agosto de 1976.
O general-presidente chegaria de Brasília às nove e meia da manhã, pegaria um helicóptero no aeroporto militar para inspecionar a construção da barragem no interior do Estado e retornaria imediatamente ao Recife, para participar daquelas solenidades chatas de “assinatura de convênios” no Palácio do Governo.
Por uma questão de logística, a maior parte dos repórteres ficou no Recife, à espera de que o general voltasse da rápida peregrinação ao canteiro de obras, no interior. Os compromissos mais importantes da agenda estavam previstos para a capital.
Cheguei ao canteiro de obras logo cedo, no início da manhã, docemente embalado pela ilusão de que poderia, quem sabe, arrancar uma mísera frase de um presidente que não queria conversa com jornalista.
Devidamente credenciado, desembarquei no canteiro como repórter da sucursal Nordeste do jornal O Estado de S.Paulo. O terreno estava quase livre de concorrentes. Se o general me concedesse a graça de uma declaração, eu sairia dali com uma manchete exclusiva no meu gravador. Tudo o que o homem dizia era notícia: cada palavra que o general pronunciava valia ouro no mercado jornalístico.
A chance de abordar o Grande Mudo da República estava ali, ao alcance da mão. Era só partir para o ataque e correr para o abraço. Ilusão. O general passa por nós com aquele porte imperial que o marcava. O estrabismo de Ernesto Geisel causava uma sensação incômoda a quem o encarava: não se sabia exatamente para quem ele estava olhando.
O general me encara ao passar pelo pequeno grupo de repórteres presentes. Tento dirigir-lhe a palavra. Em vão. O quarto dos generais- presidentes do regime militar pronuncia, então, a única frase dirigida a um jornalista naquela manhã. As seis letras fatais: “Bom-dia”. Sem dar tempo a qualquer réplica, segue em frente. Fracasso, fracasso, fracasso.
O Brasil vivia um tempo em que os repórteres tentavam decifrar, nas feições dos generais, uma pista sobre o que eles estavam pensando. A escassez de declarações era tanta que até aquele lacônico “bom-dia” do general aos repórteres acabou publicado nos jornais – foi o que O Globo fez, ao noticiar, na edição de 21 de agosto de 1976, a passagem do general Geisel pelo canteiro de obras da barragem.
O GENERAL GEISEL ATENDE À LIGAÇÃO.
DO OUTRO LADO DA LINHA, GRAMPEIO O TELEFONEMA. MAS A TENTATIVA DE ENTREVISTA FRACASSA
Tempos depois, voltei a caçá-lo, quando ele já era ex-presidente. Em companhia do cinegrafista, fico de plantão, numa manhã de 1991, na entrada do estacionamento do prédio em que o general dava expediente como presidente da Norquisa, empresa da área de química fina, na praia de Botafogo, no Rio.
Lá vem o carro. Os vidros estão levantados. Dá para distinguir, no banco dianteiro, a silhueta inconfundível do ex-presidente. Aponto o microfone para o vidro. Geisel desconhece olimpicamente a abordagem. Nem se dá ao trabalho de ouvir o repórter.
Próximo lance: corremos para a entrada do elevador, no saguão do prédio, para nova tentativa. Geisel se aproxima, em companhia da filha. Os dois estão de braços dados. O general caminha com um pouco de dificuldade. Eu e o cinegrafista Edison Santos nos aproximamos, mas somos providencialmente barrados por um segurança. Geisel pega o elevador. Dessa vez, nem bom-dia.
Não entregamos os pontos. A entrevista é a última que morre. O equipamento, (câmera e luzes) fica retido na portaria, mas sou autorizado a subir até a sede da Norquisa, para me explicar com a secretária do ex-presidente. Nada feito. A secretária diz que o general não ficara à vontade nem quando foi chamado a posar para fotos de uma publicação interna da empresa.
Se o general erguia um muro invisível em torno de si para rechaçar contatos pessoais, quem sabe se pelo telefone ele não baixaria a guarda? Consigo o número do telefone da casa do general, num sítio em Teresópolis.
Obviamente, o empregado que atende não passa a ligação para o ex-presidente. Faço novas tentativas. Um dia, eis que ele, o Grande Mudo, atende a ligação. Assim que o general diz “alô”, começo a gravar o telefonema. Faço um “grampo” preventivo: dali poderia sair uma boa declaração.
Surpreendentemente afável para quem tinha fama de inacessível, Ernesto Geisel explica por que não daria entrevista. Recorro a um argumento que pode dar resultado: uma entrevista poderia, quem sabe, dar origem a um livro sobre o governo Geisel.
Guardo a fita do “grampo” em meus arquivos implacáveis. Assim o general reagia, quando ouvia um pedido formal de entrevista:
(…) Olhe aqui: por enquanto, não dou entrevista. Não dou nada sobre o meu governo. Quanto às coisas do meu governo, estou me reservando para escrever umas memórias. Você pode entrevistar os ministros. Procure os ministros. Você tem o ministro Reis Velloso, o Simonsen, o Nascimento Silva, o Silveira – das Relações Exteriores… Todos estão aí.
É indispensável ter pelo menos um depoimento curto do senhor…
Eu sei, mas olhe aqui: vários jornalistas, amigos meus, inclusive, querem entrevista. Sempre digo a eles que não. Digo: “Quando der alguma coisa, darei em primeiro lugar a vocês, que são meus amigos”. Mas tenho recusado sistematicamente. Que você queira escrever um livro, muito bem! Se você quiser me mostrar depois o que você escreveu para eventualmente eu apontar coisas que precisam ser retificadas, estarei pronto a fazê-lo. Isso você pode fazer. Terei muito prazer em colaborar no sentido de mostrar coisas que, talvez, não estejam muito certas ou estejam diferentes. Mas eu responder a questionário e dar entrevista… Não dou. Não é pelo fato de ser você. É como uma regra, como conduta minha.
Uma pergunta: o senhor já vem escrevendo um livro?
Estou escrevendo algumas coisas.
Já tem idéia de quando termina?
Ah, não… essas coisas a gente vai fazendo muito devagar…
O senhor concorda que há um grande interesse de todo mundo sobre aquela época…
Não. Não, não creio, não. Agora há outros problemas…
Fico na esperança de que o senhor mude de idéia um dia…
Faça isto: procure os ministros, fale com eles. Depois, se quiser, mostre um projeto de livro. Poderei retificar, se for o caso. Possivelmente não haverá nada para retificar. Mas, se houver alguma coisa, estarei pronto para colaborar dessa maneira. Mas não para responder questionário ou dar entrevista propriamente. Não quero fugir da linha de conduta que tenho adotado.
E se a gente fizer uma gravação…
Não, não, não, não. Porque aí fico mal com os outros, que são meus amigos, aos quais sempre recusei.
Termina a abordagem telefônica. Ouço o rumor da torcida imaginária bradando um “uh…”, aquele som intraduzível que as arquibancadas produzem quando a bola bate na trave. Quase, quase. Como diria o locutor da Copa do Mundo de 1970, “por pouco, pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo…”
Um gesto de Geisel dá a medida da extrema reserva que ele impunha a si mesmo nos contatos com repórteres: entre 1984 e 1986, o ex-presidente teve cerca de 20 conversas gravadas com o jornalista Elio Gaspari. Eram amigos há anos. Gaspari conversava com o general, mas ia para casa de mãos vazias: Geisel ficava com as fitas.
Somente depois da morte de Geisel as gravações foram entregues ao jornalista pela filha do general, Amália Lucy. As 12 fitas, cada uma com 90 minutos, foram fundamentais para Gaspari traçar o perfil definitivo do ex-presidente, no livro A Ditadura Derrotada – O Sacerdote e o Feiticeiro, lançado pela Companhia das Letras em 2003.
Procurei, então, os ex-auxiliares diretos do presidente Geisel. Gravei depoimentos dos ex-ministros Azeredo da Silveira (Relações Exteriores), João Paulo dos Reis Velloso (Planejamento) e Armando Falcão (Justiça). Os três descreveram cenas dos bastidores do governo Geisel para o livro que jamais escrevi. Uma sucessão de desencontros empurraria para o mausoléu dos projetos irrealizados a entrevista exclusiva com o general.
Pergunta-se: o ex-presidente disse que tinha escrito “algumas coisas”. Onde foram parar estes rascunhos de memórias ?
Com um gravador-tijolo nas mãos, o blogueiro espreita o general-presidente: única declaração que ele deu foi um "bom dia"
O POETA BRASILEIRO SE PERGUNTA, DIANTE DO PALÁCIO DE LA MONEDA: “CADÊ O DRAMA HUMANO ? FALTA O FOGO, A LUTA POR UM MUNDO MELHOR!” (NUM POEMA, ELE JÁ TINHA PERGUNTADO:”ONDE ESCONDESTE O VERDE CLARÃO DOS DIAS?"
Quem avisa amigo é : a Globonews exibiu, no DOSSIÊ GLOBONEWS , um belo e sincero depoimento do poeta Ferreira Gullar sobre duas experiências marcantes que viveu no Chile. ( aqui: http://globonews.globo.com/Jornalismo/GN/0,,MUL1460870-17665-337,00.html )
Em resumo: um poeta brasileiro – que também era militante político – desembarca no Chile, no início dos anos setenta, para viver uma experiência que tinha tudo para ser historicamente fascinante: pela primeira vez, o país era governado por um presidente socialista que chegara ao poder pelo voto direto. Exilados brasileiros apostavam que uma primavera estava nascendo ao pé da Cordilheira dos Andes. O Eldorado dos militantes políticos ganhava um novo nome : Santiago do Chile.
O poeta era Ferreira Gullar. O presidente era Salvador Allende. A experiência terminou em tragédia: as Forças Armadas bombardearam o Palácio de La Moneda no dia 11 de Setembro de 1973. Allende saiu do Palácio sem vida ( há controvérsias sobre se teria cometido suicídio ou se teria sido morto, o que não faz tanta diferença). A Junta Militar, comandada pelo general Augusto Pinochet, instalou uma ditadura que, como se sabe, não brincou em serviço. Há relatos de cenas tétricas: helicópteros pousavam no gramado do Estádio Nacional para recolher presos que, em seguida, desapareciam. Nem sempre se sabia para onde eram levados. Pelo menos cinco exilados brasileiros estão até hoje desaparecidos.
O Chile acaba de eleger um empresário bilionário – Sebastián Piñera – para a presidência da República. O homem faz fortuna com a implantação de cartões de crédito no país. Nestes últimos anos, a economia do Chile foi frequentemente apontada como “a mais próspera da América do Sul”.
Traumatizado pela experiência que viveu no país, Ferreira Gullar passou décadas sem voltar ao Chile. Quando finalmente voltou, teve sentimentos “contraditórios”. Nesta expedição de volta ao cenário das turbulências que testemunhou no início dos anos setenta, o poeta Ferreira Gullar contemplou, por exemplo, a fachada do Palácio de La Moneda. Pegou um táxi para visitar a rua onde vivera.
Descobriu que a paisagem é absolutamente indiferente ao que a gente sente. As cidades, diz ele, são feitas de “pedra”. Não se contaminam com as lembranças, dramas, aventuras, alegrias, tragédias e vitórias de cada um. A memória é algo pessoal e intransferível – que cada um carrega dentro de si, até o dia do apagão final. Fora deste território feito de lembranças, o que há é a paisagem, com seus palácios, edifícios, ruas, becos e avenidas, gloriosamente indiferentes aos nossos espantos.
Um trecho da entrevista que Ferreira Gullar nos concedeu para o DOSSIÊ GLOBONEWS:
“Estava lá o mesmo palácio onde Salvador Allende foi assassinado e diante do qual fiquei tantas vezes em manifestações políticas. Não havia mais nada. Era aquele silêncio. Eu, então, senti saudade daqueles tempos. Agora, tudo está tranquilo, mas falta o fogo, a luta pelo mundo melhor e pela transformação! A gente nunca está contente”.
“De repente, estou de novo diante daquele prédio – e não ficou nada do que aconteceu lá. O porteiro que me recebe não sabe quem sou nem sabe que morei ali. A escada é a mesma, os degraus são os mesmos. Mas não têm nenhuma marca de mim ou do que aconteceu. Da mesma maneira que diante do La Moneda, falei assim: mas cadê aquelas coisas que aconteceram aqui ? Cadê a tragédia ? Cadê o drama humano ? Apagou tudo! Por um lado, tudo bem: o Chile agora é muito mais feliz do que naquele momento. Mas é uma coisa contraditória. Porque a gente vê que nós, na verdade, é que carregamos as coisas conosco”.
“Fui ao prédio onde morei, na avenida Providência. Era diferente. Não reconheci. A sensação que dá é essa: as paredes, as ruas não guardam nada da gente. É como se nada tivesse acontecido ! Está tudo em minha cabeça. É tudo memória minha. As paredes, os prédios, as ruas são indiferentes ao que a gente faz, ao que a gente pensou, sofreu e chorou. Tudo se apaga”.
Ferreira Gullar é um poetaço. Vai fazer oitenta anos em setembro.
Um trecho do belo “A Vida Bate” :
“Alguns viajam:
vão a Nova York,
a Santiago do Chile.
Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega,
detrás de balcões e de guichês.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas,
a cidade é o refúgio do homem,
pertence a todos e a ninguém.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas.
És Antônio ?
És Francisco ?
És Mariana ?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate.
Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina”
SE SOUBESSE FALAR, O BEBÊ PAULO FRANCIS TERIA PERGUNTADO, NA MATERNIDADE : “POR QUE NÃO ME CONSULTARAM SE EU QUERIA VIR PARA ESTA JOÇA?”
A LEMBRANÇA:
Quando Paulo Francis entrou na redação do Fantástico, para uma “visita de cortesia”, produziu em torno si uma onda de silêncio que misturava curiosidade e reverência. O homem era uma estrela. Mas, “humildemente”, veio agradecer o destaque o programa tinha dado, na véspera, à entrevista que fiz com ele.
Ok : desde já, quero confessar ao distinto júri que sei do risco que corro ao usar a expressão “humildemente” num parágrafo que trata de Paulo Francis. As duas entidades, graças a Deus, eram incompatíveis: Francis e a humildade. Uma não se misturava com a outra. Eram como água e óleo.
A referência a um lampejo de humildade em Francis deve produzir frouxos de riso em quem teve o privilégio de conhecê-lo. Mas, em nome da verdade factual, devo dizer que, sim, ao visitar a redação do Fantástico Francis teve um gesto de humildade. Ou seria gentileza ? Cravo nas duas alternativas. A imagem pública de “lobo hidrófobo” não combinava com o Paulo Francis no trato pessoal: um gentleman.
Paulo Francis tinha acabado de lançar um excelente livro memorialístico sobre o golpe de 1964, “Trinta Anos Esta Noite”. Eu tinha gravado uma longa entrevista com ele numa praça escondida nas proximidades do Jardim Botânico. Procurávamos um lugar razoavelmente silencioso para a gravação. O sucesso da busca foi parcial: crianças brincavam nas redondezas. As babás ficaram indiferentes à presença de Francis, mas pelo menos trataram de vigiar os passos de fedelhos que brincavam na praça ( um trecho da entrevista foi usado no recém-lançado filme de Nélson Hoineff sobre Francis. Lá pelas tantas, o “lobo hidrófobo” cita meu nome. Eu tinha pedido a ele que fizesse uma pequena caminhada, porque precisávamos gravar imagens para ilustrar a matéria. Francis ergueu a cabeça, encarou o céu, me chamou e fez piada debochando da pose de intelectuais pomposos).
Três anos depois, um ataque cardíaco fulminante matou o mais polêmico,o mais lido e o mais provocativo jornalista brasileiro, na manhã do dia quatro de fevereiro de 1997, em Nova York. A morte : lástima, lástima, lástima. Francis estaria em pleníssima atividade, aos oitenta anos de idade, se tivesse chegado a este 2010. Lástima, lástima, lástima. Dizer que “Paulo Francis faz falta” virou um enorme lugar-comum. Mas é uma verdade puríssima: o texto de Francis faz uma falta imensa ao jornalismo brasileiro.
Uma vez, ele escreveu: “Nossa imprensa: previsível, empolada, chata: como é chata, meu Deus…”. Em cem por cento dos casos, o que Francis escrevia escapava da chatice generalizada. Vivia reclamando de que era preciso criar no Brasil uma tradição: a de uma “prosa clara e instruída”. É o que há em outras culturas: a tradição de uma prosa clara e instruída, uma atividade que, no Brasil, tinha poucos cultores. Aqui, pensam que escrever difícil é escrever bem. Ledíssimo engano.
A contribuição que Paulo Francis deu para a criação de uma prosa jornalística “clara e instruída” ainda não foi devidamente avaliada. Onde é que estão os acadêmicos – que não tratam de demonstrar “cientificamente” esta herança ? É uma tarefa facílima. Ninguém precisava concordar com uma vírgula do que ele dizia. O importante é como ele dizia.
Livros como “O Afeto Que se Encerra” e “Trinta Anos Esta Noite” deveriam ser leitura obrigatória nas escolas de jornalismo – pela clareza cristalina, pela fluência absoluta, pelo ritmo agradabilíssimo do texto. É o que vale. Os dois foram relançados faz algum tempo. O que é que vocês estão esperando antes de devorá-los ? ( Uma vez, perguntei a ele como é que ele – que, quando criança, alegadamente exibia um ar de cão hidrófobo – se definiria na maturidade. Francis respondeu: “Que tal lobo hidrófobo” ? )
A PROMESSA:
Conhecer gente famosa é uma desgraça. Conviver com um ídolo é pior ainda.
Por dois motivos. Primeiro: por medo de falar uma grande tolice diante do guru, a gente se cobre de constrangimento quando conversa com ele. O encontro pode ser o mais banal, o mais trivial possível. Mas a gente termina medindo cada frase.
Fiz o cúmulo: cheguei a me refugiar uma vez numa sala lateral de uma redação, para não envenenar à toa a convivência com o guru. Mas ele, esperto, foi até o meu esconderijo: “Você se escondendo!!!”. Retribuí a gentileza com um riso amarelo.
Segundo motivo por que conhecer gente famosa é uma desgraça: a gente fica se policiando para não cometer, diante de amigos, estranhos ou desconhecidos, o pecado horroroso do “name-dropping” (a mania de ficar citando nomes célebres no meio de uma frase, para dar a ilusão de importância….).
Os dois motivos me impediram de escrever um texto na primeira pessoa sobre dez anos de contatos pessoais e profissionais, em redações no Rio, em Londres e em Nova York, com o meu ídolo, Paulo Francis. Fiz pelo menos três gravações com ele. As anotações sobre esta convivência estão feitas. Falta organizá-las.
Feitas as contas, resolvi quebrar o constrangimento. Não posso deixar que o medo do “name-dropping” me condene a guardar na gaveta as cenas que testemunhei ou as frases que ouvi. Como diria o ex-ministro, “às favas os escrúpulos….”. Pretendo, em breve, produzir um documento sobre Paulo Francis, a estrela máxima do jornalismo brasileiro das últimas décadas. É a única coisa de útil que um jornalista pode fazer: dividir com os outros a memória do que viu e ouviu. O resto é empulhação – ou perda de tempo, este recurso natural não renovável.
Quando o assunto é Paulo Francis, considero-me um grande devedor. Os maiores elogios que recebi na vida foram feitos por ele, repetidas vezes, na coluna Diário da Corte. Quem não gosta de ser elogiado que atire o primeiro Prozac. Um desses textos virou prefácio do “Dossiê Drummond”, livro em que publico a última grande entrevista do poetaço. Fora das páginas de jornal, fui alvo de pelo menos uma demonstração de extrema generosidade que Francis praticou sem qualquer interesse.
Em nome dos teclados de São Gutemberg, prometo à minha dezena de leitores: os fãs, os órfãos, os detratores de Paulo Francis ganharão um presente que estou, aos poucos, garimpando. Que ninguém se assuste, porque não cairei na tentação de parir um tratado sobre o homem. Praticarei o exercício básico do jornalismo: publicarei o que vi e ouvi. Ponto. Reproduzirei diálogos entre Francis e grandes feras. Vai ser minha maneira de retribuir os presentes que ganhei. A retribuição virá em forma de livro. Era projeto para 2008. Não cumpri. 2009 passou. Tentarei 2010, se o diabo assim permitir.
Por falar no capeta, pergunto: o que diabos vocês estão fazendo aí? Por que não saem voando para conseguir uma cópia de “O Afeto Que se Encerra” ? A Editora Francis lançou uma nova edição, não faz tempo. É um dos melhores livros de memórias já lançados no Brasil.
PÍLULAS, GARIMPADAS NO “AFETO QUE SE ENCERRA”:
“Jornalista político e cultural, opino sobre isso e aquilo o tempo todo. Mas jornalismo, mesmo ensaístico, é dipersão de energias na vida do próximo, em coisas exteriores à ilha em que vivo e na qual um psicanalista amigo, Borsoi, descobriu uma catedral, meu superego: ajoelho, rezo e cumpro”
“Divago. Tanto falo do resto que não me sobra tempo para saber o que penso de mim. Às vezes me ocorre, desagradavelmente, que conheço melhor a cabeça ( o título é de cortesia) de Jimmy Carter do que a minha. E só sei o que penso quando passo para o papel”.
“Boa parte da ilegibilidade da literatura e imprensa brasileiras se deve ao asneirol filológico ensinado nas escolas. “Custa-me crer” é a vovozinha. Rubem Braga ou Millôr Fernandes valem “n” Aurélios”.
“A cabeça se libertou de simplificações e paliativos, das certezas de manual. Examina e se auto-examina constantemente. É meu inferno e delícia, minha única justificativa plausível de alegar que evoluí dos macacos”.
“Sei apenas que nasci, presumo que pelos processos convencionais, não existindo na ocasião o bebê de proveta e ou Garotos do Brasil. E fui, jovem, a cara do meu avô alemão, Paul Heilborn, na mesma idade, o que exclui, provavelmente, a hipótese de adoção. Dando crédito à versão oficial, não é verdade que ao me baterem na bunda eu dissesse “Cogito ergo sum”, ou, segundo o vulgo, “um Black Label nas pedras”. Se me manifestei, à parte o que Shakespeare chamava sentimentalmente de “the most piteous sound”, o som mais digno de pena, o nhenhém do desgraçado do bebê, teria sido na linha de “por que não me consultaram se eu queria vir para esta joça ?”. A última frase de As Memórias Póstumas de Brás Cubas é minha opinião da paternidade”
“Quis ser escritor desde li Crime e Castigo, aos 14 anos de idade. Eu era um revoltado contra a ordem social, família, colégio padres. Tolstói, antes de morrer, disse que não se sentia diferente de menino, aos 8 anos. Nem eu, agora ( fim das semelhanças entre nós). Foi aos 8 anos que comecei a perceber a ambivalência, a ambiguidade, a falsidade do que me pregavam. Uma cacetada emocional me levou a essa precocidade crítica. Não importa. Nos tornamos o que somos. Me fechei em mim mesmo, perplexo, rancoroso, engatinhando sarcasmos”
“Morremos uma vez só. Felizmente, porque nascemos diversas. A primeira é a menos dolorosa”.
“Desejo boa sorte aos que gostam de política e às novas gerações, ou remanescentes da minha, que caiam na realidade. Quanto a mim, procuro recriar em literatura o que experimentamos, o grupo que me fez, saciando o último desejo infantil que me resta. Jornalista, continuo atirando no escuro de onde saem as feras, esperando acertar algumas”.
Em poucas palavras, dois grandes escritores chegam a uma conclusão definitiva sobre a essência da vida:
ERNESTO SABATO: “O Xul Solar fez os horóscopos dos meus dois filhos e durante muitíssimos anos eu resisti em conhecê-los. Sempre tive medo do futuro, porque no futuro, entre outras coisas, está a morte”
JORGE LUIS BORGES: “Eu penso que, assim como a gente não pode se entristecer por não ter visto a Guerra de Tróia, não ver mais este mundo tampouco pode entristecer”
ERNESTO SABATO: (…) “Eu nunca quis vê-los (os horóscopos). Sabe que foram se cumprindo?”
JORGE LUIS BORGES( com assombro) : “E como são ? O que pressagiavam?”
ERNESTO SABATO (com uma voz íntima, quase para dentro) : “Um misterioso cruzamento de fortuna e infelicidade.Isso, Borges, isso”.
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(trecho de “BORGES/ SABATO:DIÁLOGOS” ( Editora Globo, 2005)
Zilda Arns trocou o conforto de casa pela dedicação a uma causa nobilíssima: salvar crianças, num país que é generoso com bandidos e cruel com inocentes.
A constatação é inevitável, diante da notícia de que ela morreu no terremoto do Haiti: quando alguém assim desaparece, o mundo piora um pouco.
O que ela passsou a vida fazendo confirma o que Paulo Francis escreveu um dia:
“A morte é uma piada. A vida é uma tragédia. Mas, dentro de nós, mesmo no maior desespero, há uma força que clama por coisas melhores”.
1
Já disse, volto a confessar: jamais me recuperei do impacto causado pela descoberta de que cerca de oitenta por cento do corpo humano é água pura.
Água!
Quem seria capaz de levar a sério uma água falante ?
É o que somos: águas falantes.
Não há filósofo que dê jeito nesta precariedade líquida.
Desisto.
Vou passear. É melhor.
2
Dizei, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto : os mímicos continuam soltos ?
Os praticantes – e professores – de dança de salão continuam soltos ?
3
Juro por Nossa Senhora do Perpétuo Espanto: a pergunta mais inesquecível que ouvi na vida me foi feita numa sala de aula de um colégio que tinha péssima fama, o Carneiro Leão, na rua do Hospício, no Recife, nos idos de 1970. Durante uma prova, um colega que sentava ao lado me perguntou, em voz baixa e sussurrante, para não despertar a atenção do professor :
- Brasil é com “s” ou com “z” ?
Fazia sentido.
Eu tinha treze anos de idade. Nem suspeitava, mas, ah, o Brasil, pela vida afora, se tornaria o grande tema de todas as dúvidas.
Aquela – sussurrada pelo colega – seria apenas a primeira de uma série interminável.
4
Acendo uma vela inútil a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. Em silêncio contrito, peço que ela nos poupe das cenas que, inevitavelmente, acontecerão antes de cada jogo da Copa de 2014, no Brasil:
a) um idiota puxará a camisa à altura do peito e berrará para a câmera: “Vai ser quatro a zero! vai sr quatro a zero!”.
b) pior: um repórter terá perguntado a ele quanto será o placar…
c) mulatas requebrarão no saguão do aeroporto, para dar as boas vindas aos turistas estrangeiros, como se estivessem em busca de clientes numa boate de oitava categoria
d) batucadas de samba. Caboclinhos. Maracatu. Índios dançando. Todas estas manifestações de primarismo musical, estético, filosófico e cultural invadirão os vídeos para mostrar o quão exótica é esta grande nação do sul.
e) vai ser bom ver os jogos. Mas, com o avanço das novas tecnologias, não haveria um jeito de tirar o áudio e apagar o vídeo de tudo o que será dito e mostrado antes de cada partida ?
f) dizei-nos, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto: não haveria um jeito ?
5
Uma dúvida irremovível: dizei, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, o que é que leva um ser bípede e falante a posar para uma revista de “celebridades” diante de uma mesa de café-da-manhã fake ? Qual é a força que move aquele aglomerado de ossos e músculos a fazer este papel ?
Dou-lhe meio século para achar uma resposta razoável.
6
Dizei-nos, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, a nós, vossos servos, humildemente postados a vossos pés : o que é que leva um ser humano a exibir orgulhosamente na rua, em camisetas sem manga, músculos deformados nas academias ?
7
Tenho uma convicção firme: a humanidade progredirá drasticamente se, em enterros de gente famosa, ninguém, nunca, jamais, sob hipótese alguma, começar a cantar.
É inapropriado, é patético, é ridículo, é constrangedor.
Pergunta-se: em nome de todos os santos, o que é que custa ficar calado num enterro ? É tão difícil assim manter o lábio superior colado ao inferior? Por que não dar um repouso merecido às cordas vocais ? Não se deve cantar Hino Nacional em cemitério nem, muitíssimo menos, músicas feitas pelo morto. Ou hinos de clube de futebol. Ou toda e qualquer combinação de notas musicais.
Cemitério é lugar de silêncio. Mas há sempre um EFOC ( Equívoco Feito de Osso e Carne ) que começa a cantar.
Forma-se, então, o grande coro dos EFOCs – que, à noite, viverão seus dois segundos de fama no penúltimo bloco do telejornal local.
8
O planeta avançaria cinquenta anos se alguém dissesse a todas os entrevistados que, em nome de Deus, por favor, quando forem falar de alguém que morreu, jamais pronunciem idiotices indefensáveis do tipo: “Agora, ele deve estar feliz lá no céu, ao lado de fulano, fulano e fulano….”.
Por que não ficam calados ?
O defunto não deve estar feliz. O coração parou de bater; o sangue já não circula; os demais músculos estão irremediavelmente paralisados; os neurônios se dissolveram; a visão, o olfato, o tato, paladar, tudo deixou de funcionar: o corpo virou uma carcaça inútil que, em lugares civilizados, é imediatamente cremada para não poluir a terra. O azul do céu é uma bela ilusão de ótica. Ainda que o céu religioso existisse, não existiria espaço para tanta gente. O inferno é outra invenção: não existe nada debaixo da terra. Enfim: parem de dizer idiotices supostamente poéticas quando forem falar dos mortos. O melhor é desejar a eles, sinceramente, uma cremação rápida. That´s all.
9
Dizem que Madonna não gosta de dar entrevistas. Marisa Monte também não.
Ainda bem!
Alguém da platéia poderia lembrar da uma única e escassa frase original e interessante jamais dita por uma cantora à imprensa ?
Vocês têm dez anos para pensar.
10
O Cirque du Soleil, com seus “números de platéia” feitos sob medida para constranger o pobre-diabo que pagou uma fortuna para o ingresso, acaba de aportar na cidade.
Em uma palavra: socorro !
Se fosse feito um ranking dos gestos mais surpreendentes já cometidos por um presidente da República no Palácio do Planalto, a renúncia de Jânio Quadros seria forte candidata a ocupar o primeiro posto. Sob todo e qualquer critério, a renúncia é, até hoje, tema de interesse histórico e jornalístico. Mas…nossa querida imprensa é capaz de barbeiragens monumentais.
(Quando digo que o maior inimigo do Jornalismo é o jornalista, não estou cometendo frase de efeito. Estou constatando uma verdade límpida, cristalina, indiscutível – e facilmente demonstrável. Não nasci ontem. Ao longo de anos, anos & anos, fui testemunha ocular e auditiva de uma coleção de absurdos indefensáveis. Por falta de vocação para exercer tarefas realmente importantes na vida, como a medicina ou o futebol, comecei a trabalhar em redação aos 16 anos de idade. Tenho 53. Façam as contas. Ao longo dessas quase quatro décadas, perdi a conta das vezes em que vi notícias e histórias interessantes serem sistematicamente jogadas no lixo nas redações por burocratas travestidos de jornalistas. Especialistas fizeram um exercício de leitura labial para tentar descobrir o que Jaqueline Kennedy disse no exato momento em que o balaço disparado por Lee Harvey Oswald explodiu a cabeça do presidente Kennedy naquela praça em Dallas. Disse o seguinte: “Oh,no!”. Se pudessem se manifestar, as multidões de leitores, ouvintes e telespectadores que deixam de tomar conhecimento das histórias jogadas no lixo pelos burocratas do jornalismo certamente diriam em coro : “Oh,no! Oh,no! Oh,no!” ).
Vasculho meus arquivos implacáveis. Eis um registro que fiz sobre uma cochilada monumental dos nossos bravos jornalões e revistonas (o problema,neste caso, não é Jânio. É a imprensa. Os motivos que ele confessou para explicar a renúncia apenas confirmam o que já se suspeitava: o homem cometeu o gesto teatral porque queria voltar ao poder nos braços do povo. Não voltou. O indefensável é a absoluta indiferença da imprensa sobre a confissão de Jânio. O caso mereceria manchete: Jânio dá no leito de morte a explicação final sobre a renúncia. Duvido que um leitor minimamente interessado deixasse de ler. Cito o caso porque ele envolve um ex-presidente da República. É escandaloso. Mas, qualquer legume que frequente uma redação será capaz de contabilizar,em pouco tempo, um inacreditável inventário de casos, histórias, reportagens e notícias que foram jogadas fora religiosamente, sistematicamente, ardorosamente pelo exército de burocratas entediados que passam anos, anos e anos dedicados à tarefa de destruir tudo o que poderia ser vívido, interessante e empolgante no Jornalismo. Ainda assim, declaro solenemente aos leigos que esta pode ser uma profissão divertida. Que outro ofício daria a um terráqueo a chance de morrer de rir intimamente com a descabida pretensão de gente que se tranca numa sala para “decidir” o que é que o público deve ou não deve saber? Nem preciso falar da vaidade patética de quem se julga um milhão de vezes mais importante do que é. Quá-quá-quá. Seja lá quem for, quem inventou a Internet merece uma estátua de tamanho gigante em praça pública, porque, entre outras maravilhas, a rede mundial de computadores destruiu, na prática, a onipotência risível dos jornalistas. Hoje, qualquer legume (ou seja: alguém que em nada é inferior ao jornalista) pode testemunhar e reportar o que quiser. É só criar um blog, apertar um botão e o texto estará disponível, em tese, para todo o planeta).
O caso Jânio:
A mais sincera confissão já feita por Jânio Quadros sobre os reais motivos que o levaram a renunciar à Presidência da Republica no dia 25 de agosto de 1961 somente foi publicada em 1995, em escassas sete páginas de uma calhamaço lançado por uma editora desconhecida de São Paulo em louvor ao ex-presidente.
Organizado por Jânio Quadros Neto e Eduardo Lobo Botelho Gualazzi,o livro ‘’Jânio Quadros : Memorial à Historia do Brasil’’ é, na verdade, um bem nutrido álbum de recortes sobre o homem. Grande parte das 340 páginas do livro, publicado pela Editora Rideel, é ocupada pela republicação de reportagens originalmente aparecidas em jornais e revistas sobre a figura esquisita de JQ.
A porção laudatória do livro é leitura recomendável apenas a janistas de carteirinha. O ‘’Memorial’’ traz, no entanto, um capítulo importante : a confissão que Jânio, já doente,fez ao neto,num quarto do Hospital Israelita Albert Einstein,no dia 25 de agosto de 1991, no trigésimo aniversário da renúncia.
Jânio morreria no dia 16 de fevereiro de 1992, aos 75 anos de idade. O neto fez segredo sobre o que ouviu. Somente publicou as palavras do avô quatro anos depois. Ao contrário do que fazia diante dos jornalistas – a quem respondia com frases grandiloquentes mas pouco objetivas sobre a renúncia – Jânio Quadros disse ao neto, sem rodeios e sem meias palavras, que renunciou simplesmente porque tinha certeza de que o povo, os militares e os governadores o levariam de volta ao poder. Nâo levaram.
Talvez porque já pressentisse o fim próximo,Jânio admite, diante do neto, pela primeira vez, que a renúncia foi ‘’o maior fracasso político da história republicana do Pais, o maior erro que cometi’’.
A já vasta bibliografia sobre a renúncia ganhou, assim, um acréscimo fundamental, feito pelo próprio Jânio – a única pessoa que poderia explicar o enigma. Desta vez, a explicação parece clara.
Um detalhe inacreditável – que revela como as redações brasileiras são povoadas por uma incrível quantidade de burocratas que vivem assassinando o jornalismo : a confissão final de Jânio mereceu destaque zero nas páginas da imprensa brasileira,o que é estranho, além de lamentável.
A imprensa – que passou três décadas perguntando a Jânio Quadros por que é que ele renunciou – resolve deixar passar em brancas nuvens a confissão final do ex-presidente sobre a renúncia, acontecimento fundamental na historia recente do Brasil.
Tamanha desatenção parece ser um subproduto típico de uma doença facilmente detectável nas redações – a Síndrome da Frigidez Editorial .Joga-se notícia no lixo como quem se descarta de um copo de papel sujo de café . Leigos na profissão podem estranhar, mas a verdade é que há notícias que precisam enfrentar uma corrida de obstáculos dentro das próprias redações, antes de merecerem a graça suprema de serem publicadas.! Isto não tem absolutamente nada a ver com disponibilidade de espaço, mas com competência, faro jornalístico.
Se a última palavra do um presidente sobre um fato importantíssimo não merece uma linha sequer em jornais e revistas que passaram anos e anos falando sobre a renúncia, então há qualquer coisa de podre no Reino de Gutenberg. Quem paga a conta, obviamente, é o leitor, a quem se sonegam informações.
O caso da confissão de Jânio sobre a renúncia é exemplar : a informação fica restrita aos magros três mil exemplares do livro do neto. E os milhares,milhares e milhares de leitores de jornais e revistas, onde ficam ? A ver navios. É como dizia o velho Paulo Francis: “Nossa imprensa: previsível, empolada, chata. Como é chata, meu Deus!”.
Eis trechos do diálogo entre o ex-presidente e o neto,no hospital.As palavras de Jânio não deixam margem de dúvidas sobre a renúncia :
-‘’Quando assumi a presidência, eu não sabia da verdadeira situação político-econômica do País. A minha renúncia era para ter sido uma articulação : nunca imaginei que ela seria de fato aceita e executada. Renunciei à minha candidatura à presidência, em 1960. A renúncia não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 25 de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana do país, o maior erro que cometi(…)Tudo foi muito bem planejado e organizado. Eu mandei João Goulart (N:vice-presidente) em missão oficial à China, no lugar mais longe possível. Assim,ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. Escrevi a carta da renúncia no dia 19 de agosto e entreguei ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta,no dia 22. Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência. Pensei que os militares,os governadores e,principalmente,o povo nunca aceitariam a minha renúncia e exigiriam que eu ficasse no poder. Jango era,na época,semelhante a Lula : completamente inaceitável para a elite. Achei que era impossível que ele assumisse, porque todos iriam implorar para que eu ficasse(…) Renunciei no dia do soldado porque quis senbilizar os militares e conseguir o apoio das Forças Armadas. Era para ter criado um certo clima político. Imaginei que,em primeiro lugar,o povo iria às ruas, seguido pelos militares. Os dois me chamariam de volta. Fiquei com a faixa presidencial até o dia 26. Achei que voltaria de Santos para Brasília na glória. Ao renunciar, pedi um voto de confiança à minha permanência no poder. Isso é feito frequentemente pelos primeiros-ministros na Inglaterra.Fui reprovado.O País pagou um preço muito alto. Deu tudo errado’’.
LEMBRANÇA DE UM ENCONTRO COM O GURU DOS JORNALISTAS: O DIA EM QUE GAY TALESE ASSINOU MINHA “BÍBLIA”
“A humanidade só será feliz no dia em que o último editor for enforcado nas tripas do penúltimo” foi a sentença que o meu demônio-da-guarda me soprou, nítida e clara, ao pé do meu ouvido esquerdo, no exato instante em que ouvi o cultuadíssimo jornalista Gay Talese fazer uma confissão sobre os bastidores do jornalismo.
A confissão: uma reportagem que ele fez, nos anos setenta, sobre o encontro de Fidel Castro com Cassius Clay, em Cuba, foi descartada por nada menos de dez publicações diferentes. Dez!
É possível imaginar a cena: uma dezena de editores entediados deve ter passado os olhos sobre o relato escrito por Talese antes de vomitar uma desculpa qualquer para justificar a recusa.
Editores açougueiros cometem atrocidades todos os dias em todas as redações do planeta. Mas o caso da reportagem escrita em Cuba é uma daquelas aberrações que fariam um recém-formado desistir imediatamente da profissão.
Não é para menos. Tratava-se de uma reportagem escrita por um dos maiores nomes do jornalismo do Século XX sobre duas figuras míticas: o boxeador que entrou para a história por ter nocauteado um punhado de adversários imbatíveis e o comandante de uma ilhota que cutucava com vara curta a superpotência americana. Gay Talese, Cassius Clay e Fidel Castro. A camarilha de editores deu o veredito: não. Um dos argumentos que usaram: o texto estava grande. Precisava ser reduzido. Talese disse que não. Não poderia reduzir.
Os burocratas da profissão são exatamente assim: passam a vida inteira querendo provar que o público leitor detesta ler. Assim, todo e qualquer texto deve ser imediatamente trucidado. Ah, como são pateticamente pretensiosos…
Depois de três décadas e meia de observação, posso declarar diante do tribunal a única certeza que adquiri nesta profissão: o maior inimigo do Jornalismo é o jornalista. Não existe outro. Ponto. Parágrafo.
O resultado da investida do exército de editores burocratas foi este: o relato da expedição cubana de Gay Talese só chegou às mãos do público quando foi incluída num livro, anos depois.
Talese – um jornalista quase sexagenário na época da recusa – confessou, candidamente, que sentiu uma lufada de humilhação agitar suas florestas interiores ao ser brindado pelos editores com dez pontapés no traseiro.
Pergunta-se: quem é capaz de recordar o nome de um desses texticidas (assassinos de textos) que jogaram a reportagem de Talese no lixo ? Ninguém. Foram engolidos, um por um, pelo esquecimento.
Já Gay Talese sobreviveu.
Ei-lo agora, tanto depois, narrando suas desventuras numa noite tecnicamente cálida na Cidade do Rio de Janeiro.
A confissão de Talese sobre o pesadelo que sofreu na mão de editores foi feita diante de uma fauna de tietes, curiosos, estudantes, aspirantes e dinossauros do jornalismo, reunida numa sala de cinema que fazia as vezes de palco de conferência no Instituto Moreira Salles, na Gávea. O jornalista Arthur Dapieve cumpriu com garbo o papel de mestre de cerimônia.
Quem conseguiu uma vaga na plateia ouviu um dos pais do New Journalism dizer que, lá no início da carreira, nos anos cinqüenta e sessenta, dava predileção a personagens anônimos, ao invés de cortejar os famosos.
Não por acaso, uma das primeiras reportagens que escreveu tinha como personagem central o redator de obituários do New York Times, um jornalista que vivia esquecido, numa mesa no canto da redação, ocupado em ruminar seus mortos.
Talese não teve dúvida em transformar um jornalista em notícia, o que quebrava um dos mandamentos da profissão (“jornalista só é notícia quando morre”). Não é verdade. Ao retratar o redator de obituários, Talese mostrou que jornalista que escreve sobre morte pode ser notícia, sim. Basta que tenha a sorte de atrair a atenção de um repórter inspiradíssimo, como ele.
A reportagem de Talese sobre um redator de obituários chamado Alden Whitman é um clássico imbatível do jornalismo. Pode ser lida no livro “Fama e Anonimato”, relançado no Brasil pela Companhia das Letras.
Estudantes, amadores, profissionais, correi: o que estão esperando antes de devorar o texto de Talese sobre o “mister Bad News”?
Um repórter burocrata diria que não, um mero redator de obituários não “rende matéria”. Talese dá uma lição perene: personagens anônimos podem ser,sim, fascinantes, extraordinários, comoventes. É uma regra universal. Tudo depende – única e exclusivamente – da sensibilidade do repórter.
Ao falar sobre a gênese da célebre reportagem sobre Frank Sinatra, igualmente clássica, Talese fez outra confissão: disse que nunca se sentiu atraído a escrever sobre gente famosa. Preferia lançar seus faróis sobre gente anônima, o que parecia uma “contradição”. Afinal, o jornalismo se alimenta da fama.
Não por acaso, quando recebeu de um editor a tarefa de escrever sobre Frank Sinatra, Talese teve a tentação de recusar a encomenda. Imaginou: que pergunta Frank Sinatra já não tinha respondido um milhão de vezes?
(Neste exato momento da fala de Talese, meu demônio-da-guarda entra em cena novamente, para sussurrar uma confissão ao pé do meu ouvido direito. Diz que, se tivesse a chance de interpor uma ressalva às palavras de Talese, declararia, solenemente: “Ah, não,oh guru do Novo Jornalismo, permita-me um momento de petulância: ao contrário do que Vossa Excelência diz, haverá sempre uma maneira de perguntar o que não tinha sido perguntado. Não há celebridade que não possa ser confrontada. Mas… quem sou eu para discrepar?”. Feito este exercício de autocrítica, meu demônio-da-guarda recolhe-se a um silêncio reverente).
Hoje, Talese pode dizer que, por sorte, Frank Sinatra não quis lhe dar uma entrevista. Assim, o caminho ficou livre para que o repórter transferisse todas suas atenções para o entourage de anônimos que cercavam o ídolo dos palcos.
O homem que fazia o papel de double de Frank Sinatra – um personagem chamado Johnny Delgado – parecia, aos olhos de Talese, tão fascinante quanto o original. Talese descreve a cena em que viu se aproximar um vulto que ele jurava ser Sinatra em pessoa. Não era. Quem se aproximada era o dublê.
É bola na rede, gol de Talese: sem que tenha sido a chance de interrogar o objeto principal da reportagem, Talese produziu uma reportagem definitiva sobre mister Sinatra. Bingo.
Talese faria outra confissão – que arrancaria suspiros de espanto da platéia: não usa a internet como instrumento de trabalho. Diz que a “tecnologia” da internet pode ser usada, por exemplo, para confirmar uma data. Mas não pode substituir, nunca, o contato “olho no olho” com a realidade. Repórter deve ir para a rua.Não pode passar o dia contemplando o retângulo luminoso de um monitor.
Neste instante, lembrei-me de uma máxima de Joel Silveira, grande repórter da linhagem de Talese: a “víbora” Joel dizia que não existe nada mais triste do que ver um repórter contemplando o teclado de uma máquina de escrever na redação, enquanto os assuntos, todos, estavam lá fora, na rua, à espera de quem pudesse descobri-los.
Por princípio, Talese diz que, ao retratar seus personagens, não gravava nem fazia anotações : preferia observa-los com toda a atenção. De volta ao hotel, à noite, redigia o que tinha visto.
Ao fazer este relato, lanço da mão da “técnica Talese”: não estou recorrendo a gravações nem anotações. Tento reproduzir – de memória – o que acabei de ouvir. Já se disse que a memória guarda o que interessa. O resto some no abismo do esquecimento.
Guardei – de memória – estas lições do guru do New Journalism. Há outras. Prometo: voltarei ao assunto, em breve ( Em nome de São Gutemberg: que outra coisa pode fazer um repórter, além de passar adiante o que viu e ouviu?).
Terminado o pronunciamento, mister Talese se dispôs a assinar autógrafos .
( Pausa para um registro bibliográfico: raríssimamente peço um livro emprestado. Dos pouquíssimos que pedi, o único que não tive a chance de devolver ao proprietário foi justamente um título de Talese: a primeira edição de “Fama e Anonimato”, lançada no Brasil nos anos setenta, pela editora Expressão e Cultura, com o título de “Aos olhos da Multidão”. Era a Bíblia de quem cultuava as pérolas de papel que Talese produziu, como o perfil do redator de obituários ou a reportagem sobre Frank Sinatra. Um colega jornalista, chamado Luiz Edmundo Monteiro, me emprestou o exemplar, no final dos anos oitenta. Depois, se mudou para o Paraguai. Jamais tive a chance de reencontrar o dono do exemplar – que ficou comigo esses anos todos. Hoje, ao me dirigir para o Instituto Moreira Salles, levei o livro que um dia, antes de ser relançado, era tratado como relíquia. A capa, frágil, ameaça se romper).
Sentado numa mesa, com os óculos na ponta do nariz, Talese veste-se como um dândi (sempre fez questão de cultuar paletós, jaquetas, coletes, sobretudos, sapatos, meias e lenços elegantes). Simpático, estende a mão para pegar o exemplar em ruínas.
Digo a ele:
- O senhor pode assinar a minha Bíblia?
Talese ri:
- É sua Bíblia ? Mas parece meio velha…. (agora, ele manuseia a capa puída).
- É velha, mas funciona…
O guru ri de novo, assina, agradece.
Termina o rapidíssimo diálogo sobre o meu devastado exemplar de “Aos Olhos da Multidão” , minha Bíblia jornalística, meu Evangelho Para Repórteres Segundo Gay Talese.
Eu poderia ter dito a ele que acendo uma vela para “Aos Olhos da Multidão” e outra para uma entidade inventada por Kurt Vonnegut : Nossa Senhora do Perpétuo Espanto.
Se tivesse tido tempo de se manifestar, meu anjo-da-guarda finalmente levantaria a voz para interferir no diálogo, como se fosse um estudante ingênuo num comício de DCE : “Ah, com licença, oh guru do New Journalism, eu me arrisco a acrescentar que, se o Vaticano estivesse preocupado em combater as calamidades jornalísticas, deveria nomear Nossa Senhora do Perpétuo Espanto padroeira universal e plenipotenciária dos jornalistas. Porque só são dignos de povoar as redações os jornalistas que fazem da profissão um culto diário à Nossa Senhora do Perpétuo Espanto: são aqueles que tentam a todo custo não perder a capacidade de olhar a vida – e os personagens que a povoam – como se estivessem vendo tudo pela primeira vez. Em resumo: os que se recusam a perder a capacidade de se espantar. Somente assim, poderão narrar – da maneira mais atraente possível – a marcha dos fatos e dos personagens, anônimos ou famosos, que movem a máquina do mundo. Os que não são tocados por este espanto pertencem à triste linhagem dos que jogaram no lixo o que o senhor, Mister Talese, escreveu sobre Cassius Clay em Cuba. Já os que cultuam Nossa Senhora do Perpétuo Espanto serão sempre capazes de descobrir, em personagens como o redator de obituários, histórias que, claro, merecem ser contadas. Sempre mereceram !”.
Mas não, não houve tempo de falar com Gay Talese sobre velas, redações, obituários e espantos nem de ouvir as perorações de anjos e demônios da guarda.
A fila dos que buscavam um autógrafo se estendia pelo pátio do Instituto. São dez e meia da noite. Hora de pegar a Bíblia e bater em retirada.