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Meus pulmões expelem um ar de profundíssimo, inarredável, irremovível enfado : vejo nas TVs e nos jornais a figura de um "líder" de uma bandinha de rock pronunciando platitudes e obviedades.
Como diria Jacqueline Kennedy tentando recolher os pedaços da cabeça do marido naquele carro em Dallas, com uma expressão de horror e espanto: "Oh, no!".
O auditório bem que pode fazer um coro. Vocês do primeira fileira :"Oh, no!". Agora, o pessoal lá do fundo :"Oh,no!". Que bonito! E o pessoal dos camarotes? "Oh,no!". Palmas! Que beleza! Pra terminar, todo mundo junto, o auditório inteiro, a primeira fila, vocês aí do meio, ninguém precisa cantar afinado. É só gritar : "Oh, no! Oh,no!".
Cai a cortina. O show recomeça a qualquer momento.
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Se a palavra tédio pudesse ser escrita de outra maneira, teria dez letras : Huntsville.
É o fim do mundo : o turista que desembarcar nesta cidadezinha do interior do Texas terá a impressão de que bateu na porta errada. Quer se divertir? A melhor opção é uma lanchonete de fast food, em que os fregueses podem devorar hambúrgueres sem sair do carro.
O desfile de jipes gigantescos no pátio da lanchonete funciona como um atestado motorizado da fartura americana. Não há carros velhos. A impressão (absurda ?) é de que também não há gente magra. A obesidade se alimenta de milk-shakes, batatas fritas e hambúrgueres consumidos em quantidades industriais.
O forasteiro fará bem em degustar o hambúrguer sem pressa. Se resolver se aventurar pelas ruas de Huntsville à noite, terá a sensação de que pousou num deserto, habitado por fantasmas. Onde estarão os quarenta mil habitantes ? Huntsville, abre as asas sobre nós : os repórteres em busca de bons personagens te saúdam com uma pontada de mórbida alegria no peito
Mas, se o forasteiro estiver interessado em assuntos menos divertidos do que a qualidade dos sanduíches servidos em lanchonetes fast foods, Huntsville pode se transformar de repente num lugar fascinante. O assunto é pena de morte ? Cadeira elétrica ? Injeção letal ? Cloreto de potássio ? Carrascos mal-encarados ? Prisões inexpugnáveis ? Cercas eletrificadas ? Huntsville, abre as asas sobre nós : os repórteres em busca de bons personagens te saúdam com uma pontada de mórbida alegria no peito.
Indefensável, a pena de morte faz parte da história do Texas há séculos. A execução de presos pode causar horror a forasteiros ou a militantes que fazem inúteis demonstrações de protesto diante da prisão a cada vez que o porta-voz anuncia a morte de um detento. Mas o ritual já se integrou à rotina de Huntsville. A não ser que o caso tenha repercussão nacional, há execuções que correm o risco de passar em brancas nuvens na cidade.
“Vá para um bar. Pergunte a quem estiver no balcão. Provavelmente ele não saberá que um preso vai ser executado naquele dia” – constata Larry Fitzgerald, porta-voz da prisão e advogado confesso da pena capital como método de justiça. “Fico irritado quando falam de Huntsville como capital nacional das execuções”, brada ele. “Por que diabos não chamam Huntsville de capital mundial dos direitos das vítimas?”.
A banalidade do ritual da morte em Huntsville pode ser facilmente constatada no jornal local, o centenário Huntsville Item. Uma notícia de execução só merece registro no espaço nobre da primeira página se for capaz de mobilizar a atenção daqueles freqüentadores de bar citados pelo porta-voz da prisão como representantes típicos da maioria silenciosa. Caso contrário, a notícia ficará confinada sem grande destaque nas páginas internas. Porque execução aqui é rotina. Não é exceção.
O Huntsville Item abriria manchete se um dia a cidade passasse um mês sem ter notícia de um preso executado. Assim caminha Huntsville, dona do título de campeã nacional de execução de presos. Em nenhuma outra cidade americana tantos presos são executados quanto aqui. Desde que uma lei de 1973 decidiu que o Texas voltaria a punir com a pena de morte os autores de crimes hediondos, nada menos de trezentos e cinqüenta e cinco presos foram executados aqui com injeção letal. Dá para lotar vinte e nove vans, daquelas que transportam doze passageiros.
Pode parecer estranho o fato de uma cidade tão pacífica ostentar a liderança nacional em número de execuções. Mas a aparente disparidade tem uma explicação: todos os condenados à morte no Texas são enviados para Huntsville, onde o Departamento de Justiça montou um aparato para que a mais rigorosa das leis seja cumprida.
Se o Estado decide punir com a pena de morte quem cometeu crimes considerados hediondos, alguém precisa cumprir a sentença.
Ei-lo : pai de um casal de filhos,55 anos de idade,fã de westerns , James Willett já comandou pessoalmente a execução de 89 presos. Método : injeção letal. Quando chega o dia da execução, o condenado à morte sai do corredor da morte de uma penitenciária chamada Polunsky , a cerca de setenta quilômetros do centro de Hunsville, para uma viagem de uma hora rumo ao local de execução. O prédio onde os presos levarão a injeção letal chama-se The Walls. Fica no centro da cidade.
Depois de amarrado a uma maca por seis cintos de couro – atados aos tornozelos, aos dois braços e ao tronco – o preso terá a chance de dizer suas últimas palavras,diante do carrasco e do capelão.
A primeira dose é de um anestésico – administrado em quentidade suficiente para provocar a morte. O preso perde os sentidos em questão de segundos. A segunda substância injetada nas veias do preso provoca um colapso pulmonar. A terceira causa uma parada cardíaca. Não há escapatória possível. É como se o preso morresse três vezes.
Há um código secreto na sala de execuções. O preso nem desconfia, mas um gesto aparentemente inofensivo funciona como uma senha para que a sentença de morte seja executada. Do outro lado de um vidro espelhado, numa sala contígua, um funcionário aguarda um sinal do carrasco para liberar as substâncias que serão conduzidas por tubos plásticos às veias do condenado. O carrasco tira os óculos. É o que basta.
Quando vê que os óculos estão nas mãos do carrasco, o funcionário já sabe o que deve fazer. Deitado na maca, o condenado nem imagina que aquele gesto tão banal – o de tirar os óculos – é, na verdade, uma senha irrecorrível.
Willett hoje dá expediente no Museu da Prisão de Huntsville. A pérola do museu é a cadeira elétrica usada para executar 361 presos – antes da adoção da injeção letal como método de execução. Quem pagar o correspondente a doze reais pode contemplar à vontade a cadeira elétrica. Criança paga meia. Diversão garantida.
O que passa pela cabeça do homem pago pelo Estado para executar o que a Justiça decidiu ?
Procuro a fera no Museu da prisão. O carrasco se aproxima da cadeira elétrica, passa trinta segundos contemplando aquele monumento à morte, dá o veredito:
- A injeção letal é melhor do que a cadeira elétrica. É mais humana.Eu prefiro.
James Willett sabe do que fala. Diz que jamais perdeu um minuto de sono por exercer uma tarefa que almas sensíveis classificariam como macabra. Dorme como uma criança, desavisada sobre os horrores do mundo.
Uma das predileções de Willett pode soar como esquisitice no currículo de um homem que convive com tanta intimidade com a morte dos outros : o carrasco é apaixonado por flores. Usa as horas vagas para fotografar azaléas que florescem bonitas nos jardins de Huntsville.
O carrasco não é egoísta : quer compartilhar com o mundo o enlevo que sente diante da beleza de uma azálea.
Willett é, literalmente, a última face que os condenados à morte vêem, no momento em que tomam a injeção letal que os matará em questão de segundos. “O processo deve durar uns vinte, trinta segundos”, contabiliza Willett, com o tom profissional de um caixa de banco que, no final do expediente, atualiza os números do dia.
Ao lado de Willett e do preso, no instante da execução, só fica uma testemunha privilegiada : o capelão designado pelo sistema penitenciário para oferecer palavras de conforto a quem cometeu pecados capitais. Do lado de fora da sala, protegidos por uma tela de vidro, ficam as testemunhas : três escolhidas pelo preso,três escolhidas pela família da vítima.
Depois de cumprir a tarefa – comandar execuções que ocorrem pontualmente às seis da tarde,hora do Angelus -,Willett vai para casa tomar sopa, assistir a westerns na TV e dormir. “Adoro um bom western”, diz o carrasco.
Que demônios habitam a mente desse homem que tem um encontro com a morte dos outros justamente na hora em que almas devotas estão rezando a Ave-Maria ?
Quando aparece na cela de presos que o Estado do Texas considera irrecuperáveis, para escoltá-los rumo à sala onde a sentença final será executada, Willett é a face visível de uma enorme e complicada engrenagem . A história dos presos condenados à morte passou por delegacias, institutos de medicina legal, postos de polícia, laboratórios, salas de tribunais,gabinetes de governadores – um enorme teia que,no fim da linha, se materializa naquele homem de olhos azuis e estatuta mediana.
Se um cartunista fosse desenhar a face de um carrasco , poderia perfeitamente imaginar a figura de um homem de feições duras,olhar gélido,um discretíssimo sorriso apenas esboçado no canto inferior direito da boca,como convém a um mensageiro da morte. As feições de Willett jamais desapontariam um cartunista. Porque ele é exatamente assim : um homem de feições duras,olhar gélido,um discretíssimo sorriso apenas esboçado no canto inferior direito da boca.
Diante da cadeira elétrica, o carrasco fala:
O senhor diz que o último diálogo pode ser surpreendentemente bem-humorado.Que humor é este ?
Willett : “Um dos presos,quando já estava amarrado à maca,no momento em que os enfermeiros da prisão estavam inserindo as agulhas,fez um pedido : “Quero um bombom.Minha boca ficou seca”. O capelão deu a ele um bombom – daqueles que vêm embrulhados em papel celofane. O capelão jogou o bombom na boca do preso – que já estava imobilizado. Perguntei a ele : “Vai ser a última comunhão ?”. O preso me respondeu : “Vai ser a última. Mas tenho a impressão de que não vai funcionar”. ( aqui, o discretíssimo sorriso do carrasco manifesta-se no canto direito inferior da boca, mas o espasmo dura apenas um punhado de segundos )
O que é que o senhor diz aos presos sobre o que vai acontecer ?
Willett : “Nós discutimos sobre quais serão as suas últimas palavras. Digo a eles,no dia da execução : “Voltarei em torno das seis da tarde,para levar você até a cela”. Os presos já sabem o que esperar. Poucos fazem perguntas. Mas digo : você vai caminhar por conta própria,sem algemas, sem que ninguém toque em você até que você chegue à câmara. A grande maioria dos presos simplesmente me acompanha até o local da execução”.
Como é que o senhor explica a eles o método da execução ?
Willett : “Em geral, perguntam-me quanto tempo vai durar. Ou se vai doer. Digo,honestamente, que a execução em si dura trinta segundos. Ao fim desse tempo,eles estarão dormindo. Perguntam-me se dói. Sou honesto : digo que ninguém sabe realmente. Mas,para quem olha, é como se alguém estivesse adormecendo - pacificamente. Parece-me indolor. Quando um preso faz a última declaração, eu já saberei qual será a última frase. Porque terei discutido o assunto com eles,antes. De qualquer maneira,a maioria me diz que vai me avisar quando a declaração estiver concluída.Neste momento,tiro os meus óculos. É um sinal para que o funcionário – que fica do outro lado de um vidro espelhado – saiba que é hora de liberar as substâncias que chegarão às veias do preso.O funcionário pode nos ver.Nós não o vemos. Em trinta,trinta e cinco segundos o preso dará um suspiro profundo e adormecerá. Ainda espero um pouco. Chamo,então,o médico que constatará o que já se sabe: a morte do preso”.
O senhor já pensou na possibilidade de que pode ter executado um inocente ?
Willett : “Certamente,há a possibilidade de que um inocente tenha sido executado. Numa situação em que há tanta interação humana – com valores como culpa,inocência e punição – haverá sempre esta possibilidade.É algo que cruza a minha mente”.
Que sentimento o senhor tem diante desta dúvida ?
Willett :”É triste saber que nós, a espécie humana, consideramos a possibilidade de fazer tais coisas”.
O senhor se considera o homem mais temido do Texas ?
Willett : “Não.Tal idéia nunca passou por minha cabeça”.
Que argumento o senhor usaria contra a pena de morte ?
Willett : “Não sei se teria um argumento contra a pena de morte. Há aspectos negativos – como,por exemplo, a possibilidade de um inocente ser executado. Discordo dos que dizem que a pena de morte impede crimes. Não impede. A maioria desses crimes é cometida em momentos passionais. O criminoso não pára para pensar “Meu Deus,posso pegar a pena de morte !”. O que a pena de morte faz é dar a certeza de que aquele criminoso não vai cometer outro crimes”.
O senhor já teve algum pesadelo depois de uma execução ?
“Não. Sou um daqueles que não perdem o sono por nada”.
O senhor afinal prefere a cadeira elétrica ou a injeção letal ?
“ Falei com testemunhas. Não tenho dúvida de que a injeção letal é melhor. Porque é como se alguém tivesse caído no sono – e não acordasse depois. A cadeira elétrica é mais horripilante”.
Qual foi a maior surpresa que o senhor já teve no dia da execução ?
Willett : “Sempre me surpreendeu o fato de que os presos, em geral, pedem uma grande quantidade de comida na última refeição. Dá para notar pelo tamanho do estômago – que fica estufado. O que acontece é o seguinte: quando chega o dia da execução, os presos recebem finalmente a permissão para pedir um tipo de comida a que eles não tiveram acesso durante anos. O que me surpreende também é ver que presos que são amarrados à maca parecem mais à vontade do que estou aqui agora, diante de você, nesta entrevista.
Quero contar essas histórias: um dos presos, na hora da execução, no momento de pronunciar suas últimas palavras, pediu desculpas sinceras à família da vítima por toda a dor que tinha causado. Depois, virou-se para mim : “Guarda,é tudo”. Mas, antes de eu tirar os meus óculos, ele ainda me disse : “Como vão os Dallas Cowboys ? “. Pensei comigo : “Meu Deus ! Ele arruinou suas últimas palavras com essa pergunta sobre o time de beisebol !”
Um dos prisioneiros que levei para execução queria cantar “Noite Feliz” depois de pronunciar suas últimas palavras. Perguntou-me : “Posso cantar ”Noite Feliz” enquanto essas substâncias estiverem entrando pelas minhas veias ? “.Eu disse que sim. Logo em seguida, dei sinal para que as substâncias fossem liberadas. Mas, assim que ele começou a cantar, pensei comigo: “ Não haverá tempo para ele cantar a música inteira. Meu Deus, as testemunhas da execução - que estão lá do outro lado do vidro - vão ficar pensando que eu é que não deixei que ele cantasse a música toda...”. Eu bem que tinha dito a ele que não haveria tempo para tanto. Não ia ser possível cantar “Noite Feliz” inteira, ali, na maca”.
Pensei em me apresentar aos caros internautas tamanqueiros.
Não consigo articular sequer uma frase legível.
Motivo: faz setenta e duas horas que o peso de oito letras terríveis começou a esmagar o planeta. Oito letras letais: dezembro. O único consolo é que a desgraça se extingue em trinta e um dias.
Respiro fundo, faço de conta que não é comigo e saio latindo pela avenida, para ver se espanto as festinhas de amigo secreto, as listas de fim de ano e outros pequenos horrores da temporada.
Os latidos,como sempre,não surtem qualquer efeito sobre a realidade. Mas não há nada de mais útil a fazer, além de latir, latir, latir.
PS: Um desocupado me convidou a ficar escrevendo para este blog, quando me sobrasse tempo. Não sobra. Ainda assim, tentarei, entre três e quatro da manhã. Acionei meus informantes para descobrir qual era a audiência do blog. Disseram-me que algo em torno de duzentas almas diárias passam e penam por aqui. Há quem ache pouco. Ou pouquíssimo. Considero que duzentas almas penadas formam uma multidão incalculável. Decido, então, que, sempre que possível, subirei num tamborete imaginário, empunharei meu megafone enferrujado e bradarei a plenos pulmões nesta praça pública contra a irrevogável, a irrecorrível,a lastimável idiotia dos seres bípedes que entopem as lojas de dezembro e as mesas de restaurante para falar alto e brincar de amigo secreto.