março 17, 2014

FERNANDO SPENCER PEDE LICENÇA À PLATEIA E SAI DE CENA

Fernando Spencer - que saiu de cena hoje, num hospital do Recife - tinha um poder mágico: o de irradiar a paixão pelo cinema. Não se contentava em escrever sobre cinema, numa coluna do Diário de Pernambuco. Fazia filmes com o que estivesse ao alcance da mão: pouco importa se em Super 8, 16, 35.
Não é difícil imaginar a precariedade do cenário: faltava dinheiro, faltava equipamento, faltava laboratório. Mas os filmes iam nascendo, como se fossem rebentos de uma guerrilha a favor da luz. É o que o cinema jamais deixará de ser, especialmente em tempos inóspitos como eram aqueles: um ato de guerrilha a favor da luz.
Como se não bastasse, Spencer não se limitava a fazer filmes: fazia questão de mobilizar parceiros para aquela guerrilha. Bastava que o aventureiro fizesse meros filmes em Super-8 - como era o meu caso, em meados dos anos setenta - para ser imediatamente batizado de "cineasta" nas colunas de Spencer.
Trabalhei com ele, naqueles verdes anos. Uma das gavetas da mesa de Spencer na redação do Diário era um território fascinante para o repórter que se iniciava na profissão: lá estavam montanhas de fotos em preto e branco de atores, atrizes, diretores de cinema.

Graças a ele, me arrisquei a fazer um primeiro filme em Super-8. Spencer se deu ao trabalho de ir à minha casa, no domingo, para ver a "filmagem" improvisada. Publicou fotos na coluna. Inscreveu o filme na Jornada de Curta-Metragem de Salvador. Poderia ter ficado em casa, é claro, porque era dia de descanso. Mas, não: queria ver, pessoalmente, o primeiro esforço "cinematográfico" do pupilo ( aliás: se eu tivesse um mínimo controle sobre o que viria adiante, não teria dúvida em escolher cinema - e não jornalismo - como atividade. Mas a vida, em última instância, é uma grande coleção de equívocos ).
Depois, eu teria a chance de passar tardes inteiras no escritório que Spencer mantinha em casa: uma balbúrdia de fotos, laudas, roteiros, anotações, fotogramas, cartas, latas de filme, recortes de jornais e revistas. Dificilmente, Chaplin terá tido um admirador tão devotado.
( uma vez, Spencer recebeu um telefonema inesperado do editor-chefe: o carro do jornal iria levá-lo, às três da manhã, para o aeroporto. Um funcionário da companhia aérea tinha passado, em off, a informação ao jornal: um avião que trazia o ator Jack Nickolson e o diretor Roman Polanski iria fazer uma escala no Recife. Spencer pensou que era brincadeira. Não era. Tomou banho, trocou de roupa, ficou esperando a Kombi do Diário de Pernambuco. Lá se foi, insone, para o Aeroporto dos Guararapes. O funcionário da companhia aérea providenciou o desembarque de Nickolson e Polanski - que, nos poucos minutos passados em território pernambucano, foram devidamente fotografados ao lado de Fernando Spencer, o crítico do jornal. O Diário de Pernambuco estampou o flagrante na primeira página, no início de 1973. Naquelas tardes imensas, Spencer descreveria, também, os encontros com Jane Fonda e Anthony Perkins - o Norman Bates do filme Psicose. Os assessores não permitiram fotos de Jane Fonda durante a rápida entrevista: o jornal só poderia publicar a foto oficial. Coisas do submundo das celebridades...)
Os contatos com as super-estrelas eram, claro, esporádicos. A "vida real" era no Recife, o extremo-oposto do especto hollywoodiano, às voltas com planos que nem sempre saíam do papel. Spencer vibrava com cada rebento que saia da moviola para iluminar - ainda que precariamente - nossas telas improvisadas no Recife. Quem já fez ou pensou em fazer cinema no Recife nas últimas décadas, é devedor de Spencer, como bem lembrou Paulo Cunha. Num ato de justiça,o cineasta Amin Stepple - inteligência luminosa de uma geração que apostou no cinema - chamou Spencer de "pai do cinema pernambucano". Os avôs eram os pioneiros do Ciclo do Recife.
Eu me lembro com toda clareza de Spencer fumando um Hollywood atrás do outro, na última mesa à esquerda de quem entrava na redação do Diário de Pernambuco, no prédio da Praça da Independência. Junto da mesa, ficavam os teletipos das agências de notícias: AP, UPI, France Press, Meridional. O barulho incessante das máquinas transmitia à redação um tom de urgência: o mundo pulsava ali, o planeta mandava notícias - inclusive, sobre o que acontecia nas telas de cinema. A fumaça envolvia o ambiente numa névoa acinzentada. Era outro planeta - nada parecido com as atuais redações, silenciosas, assépticas, antitabagistas. Neste território, sob o som dos teletipos e envolta por aquela fumaça, movia-se a paixão arrebatadora de Spencer pelo cinema, pela luz na tela.
O cigarro matou Spencer. Mas ele já tinha sido salvo, há tempos, pelo cinema.
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PS: Aqui, o artigo que Amin Stepple publicou hoje, no blog de Magno Martins, sobre o guerreiro:
Fernando Spencer, o pai do cinema pernambucano
A sala do cinema ficou hoje ainda mais escura. Morreu Fernando Spencer, aos 87 anos, depois de enfrentar uma longa batalha contra a fumaça dos cigarros que enevoou os seus pulmões ao longo de uma vida dedicada a uma grande paixão: o cinema. Se os avôs do cinema pernambucano são os pioneiros do cinema mudo Ary Severo e Jota Soares, Spencer é inquestionavelmente o pai do moderno cinema realizado hoje em nosso estado.
Crítico de cinema durante quarenta anos, com coluna no Diario de Pernambuco e ainda programa semanal de cinema na televisão, a história da produção cinematográfica pernambucana se confunde com a história de vida de Fernando Spencer. É impossível dissociá-las.
Spencer talvez seja o único cineasta em todo o Nordeste que realizou filmes em todas as bitolas: 35 mm, 16mm, Super-8 e vídeo. Premiado várias vezes em festivais e mostras nacionais, coube a Spencer outra façanha: com determinação e entusiasmo, ele recuperou praticamente todos os filmes da fase silenciosa do Ciclo do Recife (1923-31), preservando a memória visual de uma das etapas fundamentais da cultura de Pernambuco. Não é pouca coisa. Pernambuco e o Brasil devem isso a ele.
Outro traço característico de Fernando Spencer: a generosidade. Ele sempre ajudou quem o procurava com o interesse de se iniciar no cinema, realizar algum filme, escrever alguma tese, fazer alguma pesquisa cinematográfica ou até mesmo trabalho escolar. Jamais fechou a porta ou se negou a atender. Pelo contrário, muitos do que hoje brilham nos jornais ou nos filmes comeram e dormiram na cada dele, sempre aberta aos que, como ele, tinham paixão pelo cinema.
Spencer era um incentivador permanente. Um pai desprendido, sem preconceitos e absolutamente jovial. Spencer era pop, gostava de tudo o que era arte, independentemente da origem. Tive oportunidade de fazer um belo filme com Spencer e também uma série de 25 capítulos para a televisão sobre o cinema mudo pernambucano. Foi a pessoa de trato mais fácil com quem eu trabalhei até agora. Quando eu era jovem e carbonário, andei polemizando com Spencer pelos jornais. Questões rigorosamente cinematográficas, nunca nada pessoal. Uma bobagem, da minha parte.
Mas Spencer tinha duas pastas. Uma, com artigos de pessoas que brigaram com ele ou fizeram alguma crítica negativa. Outra, só com textos de pessoas que o haviam elogiado, bem mais volumosa, logicamente. Eu repousava serenamente nas duas pastas: a do contra e a do a favor. O que, com o passar do tempo, se tornou motivo de riso entre nós dois.
Uma vez ele me disse que iria me tirar da pasta do contra, já que não se sentia à vontade que eu, como grande amigo dele, permanecesse lá. Não concordei. Quem ama o cinema sabe que ele é feito também de conflitos. Disse-lhe que me sentia bem nas duas pastas. Isso era cinema e como tal deveria ficar, inalterado.
Muitas vezes, quando ia a casa dele para visitá-lo ou mesmo a trabalho, ele me oferecia uns drinques. Uísque japonês. O consulado do Japão sempre mandava para ele, no final de ano, umas garrafas de uísque made in Japan. Spencer, que entendia de cigarro (colecionava maços de cigarro de todas as partes do mundo) e nada de bebida, servia, com orgulho e prazer, o uísque dos japas.
Hoje, dia em que o cinema voltou a ficar mudo, só resta aos seus amigos e admiradores, fazer um brinde a Spencer. Uísque japonês para todos. Obrigado, Spencer.

Posted by geneton at março 17, 2014 12:35 PM
   
   
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