maio 07, 2014

UM MENINO CORRENDO ATRÁS DO ÔNIBUS DA SELEÇÃO

Ninguém precisa de bola de cristal para prever: é provável que haja alguma confusão na Copa do Mundo. Há motivos reluzentes para reclamações, é claro: custos além dos previstos, atrasos absurdos na execução de obras que deveriam desde já beneficiar a população, prováveis superfaturamentos, aeroportos calamitosos, estádios que terão destino incerto depois que a festa acabar, ingerências absurdas da Fifa ( um jornal publicou que, na decoração das ruas, ninguém pode, por exemplo, usar a expressão Brasil 2014, patenteada pela Fifa....Parece piada). Descontados eventuais absurdos extra-campo, a Copa do Mundo é uma bela e empolgante disputa. Não vejo motivo para torcer contra o Brasil. Qual o mal que um título conquistado em casa poderia fazer ao país ?
Ressuscito, em meus arquivos não tão implacáveis, um texto sobre o dia em que um menino de doze anos - o locutor-que-vos-fala - correu atrás do ônibus da seleção:

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O autor da melhor definição já escrita sobre futebol é um ilustríssimo desconhecido. Seja lá quem for, merece ser entronizado quem resumiu em apenas doze palavras esta paixão tão avassaladoramente brasileira:
- Das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante…
Noventa e cinco por cento dos brasileiros devem ser adeptos desse mandamento.Os cinco por cento restantes não nasceram ainda.
Quero fazer uma confissão: eu estava banhado de suor no exato momento em que descobri que “das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante”.
Não, eu não estava disputando uma final de campeonato. Como um celerado, eu corria desembestadamente atrás do ônibus da seleção brasileira, na avenida Rosa e Silva, no Recife, no já remotíssimo ano de 1969.
Em minhas mãos, carregava uma folha de papel em branco. Não estava à procura de nenhuma declaração, não esperava por nenhuma entrevista. Nem sonhava em ser repórter. O que eu queria – como, provavelmente, todo menino brasileiro apaixonado por futebol – era um autógrafo de um dos meus ídolos.
Fui a pé de minha casa até o estádio do Náutico, na avenida Rosa e Silva. Uma multidão de torcedores esperava pela chegada da seleção, para o treino. Lá vem o ônibus. Tumulto. Gritaria. Empurrões.
Eu me lembro de ter visto Tostão e Clodoaldo acenando na janela. Ou terá sido Gérson? Quem sabe, Jairzinho. Não importa: os craques dos meus times de botão estavam ali, materializados, a dois palmos de distância.
O treino ia ser fechado. Mas eram tantos os torcedores correndo atrás do ônibus que a Federação resolveu abrir os portões do estádio.
Aquele punhado de fanáticos teve, então, o privilégio de assistir a um treino da seleção que, meses depois, entraria para a história do futebol mundial nos gramados do México como o melhor time de futebol de todos os tempos.
O que diabos eu estava fazendo na arquibancada do estádio dos Aflitos, na manhã de um dia de semana? Aos doze anos de idade, eu estava descobrindo que o futebol é a mais importante das coisas menos importantes da vida.
Dizem que a gente só guarda na memória rostos, datas e nomes que, por um ou outro motivo, nos são realmente importantes. O trator dos neurônios soterra o resto.
Pois bem: meu professor de desenho no Colégio São Luís – que Deus o perdoe – passou o ano tentando me fazer entender que “o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”. Eu passei o ano preocupado com outro problema: o Sport Club do Recife, afinal de contas, ia ou não barrar a caminhada do Náutico rumo ao título de heptacampeão pernambucano? O meu time de botão ia ou não ganhar o dificílimo campeonato que a gente organizava na rua Dom Manoel da Costa, no bairro da Torre?
Enquanto o professor – com cara de zagueiro alemão – tentava me familiarizar com o fantástico mundo da geometria, eu ficava pensando com meus botões: quem é hipotenusa? O que significa cateto? Onde fica a saída, pelo amor de Deus? Cadê o meu timaço de botão?
Hoje, séculos depois, declaro-me formalmente incapaz de explicar o que significa a soma dos quadrados dos catetos - mas sei de cor a escalação do time do Sport: Miltão; Baixa, Bibiu, Gílson e Altair; Válter e Vadinho; Dema, Zezinho, Acelino e Fernando Lima. Não preciso consultar nenhum jornal antigo para recitar de trás pra frente a escalação do meu time de botão – o Palmeiras de 1968: Perez; Scalera, Baldochi, Minuca e Ferrari; Dudu e Ademir da Guia, Gildo, Sevílio, Tupãzinho e Rinaldo. Eis uma prova matemática dessa verdade fundamental: das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante. Se não fosse, eu não teria guardado tantos nomes.
O meu exercício de memória, obviamente, não vale nada. Mas o que é a vida, se não uma coleção de gloriosas inutilidades ? Sou igualmente capaz de recitar o meu time de botão do Botafogo de 1969: Cao, Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César. É pouco? Lá vai o time do Santos: Cláudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manoel Maria, Toninho, Pelé e Edu.
Minha memória sepultou no cemitério dos esquecimentos todo o palavrório que meu professor mobilizou na inglória missão de me apresentar aos mistérios dos catetos e hipotenusas. Não tive coragem de dizer a ele, mas, desde o primeiro dia de aula, eu tinha certeza absoluta de que o futebol era mais importante do que a soma dos quadrados dos catetos. Não me perguntem por quê. Eu era um menino brasileiro. Não se deve pedir explicação a nenhum menino brasileiro apaixonado por futebol.
Esquecido das hipotenusas, guardei na memória duas cenas do dia em que corri desembestado atrás do ônibus da seleção brasileira. Primeira cena: Clodoaldo saiu de campo chorando, machucado. Segunda cena: termina o treino. Nós, os desocupados meninos do Brasil que saímos de casa numa manhã de dia de semana para correr atrás do ônibus da seleção, tentávamos agora vislumbrar por uma fresta numa das paredes do estádio nossos craques se preparando para ir embora. Parecia filme de Fellini. Nós nos revezávamos no posto de observação. Cada um podia olhar por cinco, dez segundos o que estava acontecendo no vestiário dos nossos deuses. Quando chegou minha vez, o que vi? Clara, nítida, diante de mim, a imagem do Rei Pelé ensaboado da cabeça aos pés. O Rei estava nu.
Quando os jogadores voltaram para o ônibus, pararam para saciar nossa fome de autógrafos. Devo ter guardado em algum lugar esta relíquia. Onde estará este meu pequeno tesouro, pessoal e intransferível ? Lá estão os autógrafos de Tostão, Rivelino, Brito, entre outros que terminaram ficando no caminho, na odisseia rumo ao México – como Paulo Borges, ponta-direita do Corinthians.
A seleção que foi treinar no campo dos Aflitos trazia as estrelas que reluziriam na campanha do México: Félix, Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho,Tostão e Pelé. Quando o ônibus partiu, repetiu-se a gritaria, o tumulto, a vibração, os acenos. Nova correria atrás do ônibus.
O que terá acontecido naquele ano na vida do menino brasileiro apaixonado por futebol ? O meu professor de desenho me reprovou, é claro. Meu pai me deu uma bronca de dimensões bíblicas: disse que eu passaria os próximos meses proibido de ir ao estádio. O meu time do Palmeiras perdeu o campeonato da rua Dom Manoel da Costa na penúltima rodada. O juiz com certeza deve ter roubado. O Santa Cruz – tragédia – venceu o campeonato pernambucano. O Sport ficou a ver navios, na Ilha do Retiro.
O menino brasileiro – um entre milhões – aprendeu ali que a vida é feita também de derrotas, fracassos, reprovações. Mas é também feita de lembranças que só aparentemente são desimportantes. Uma paixão infantil pelo escrete deve ter começado ali, na corrida atrás daquele ônibus.
Então, dou um conselho aos meninos brasileiros: corram atrás do ônibus da seleção, se tiverem a chance. Ou do carro de bombeiros no desfile da vitória. Quantas lembranças, quantas paixões pelo escrete não surgirão entre esses meninos que correrão, desembestados, com uma folha de papel em branco nas mãos ?

Posted by geneton at maio 7, 2014 12:04 PM
   
   
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