CHICO BUARQUE DE HOLANDA, SOBRE O QUE ACONTECE NA HORA DA CRIAÇÃO COM UM JOGADOR DE FUTEBOL OU UM COMPOSITOR POPULAR: "É COMO SE O CORPO RECEBESSE UMA LUZ REPENTINA INEXPLICÁVEL" ( DE RESTO, É "A ALEGRIA BATENDO NO PEITO / O RADINHO CONTANDO DIREITO A VIT
Chico Buarque de Holanda já foi um daqueles meninos que vão ver os jogadores de futebol - ídolos absolutos - descendo do ônibus na porta dos vestiários. Já se apresentou ao Juventus para treinar, porque sonhava em brilhar nos estádios. Já foi a um jogo de Copa do Mundo no Brasil - quando era criança, levado pela mãe. Já dirigiu um carro para Garrincha, pelas ruas de Roma. Já viu o general Médici, a poucos metros de distância, no Maracanã. Já inventou uma mentira cabeluda: em viagens pela África dizia, nos hotéis, que tinha sido reserva de Sócrates na grande Seleção Brasileira de 1982, à espera de que algum incauto lhe olhasse com sincera admiração futebolística. O plano falhou. Ninguém caiu na lorota.
Como se sabe, Chico Buarque completa, hoje, setenta anos de idade. Como era de esperar, fugiu de badalações. ( Vou cometer um pequeno sacrilégio jornalístico: quando faço o trabalho de repórter, vivo caçando declarações, é claro - mas admiro a atitude de artistas que optam pelo "recolhimento" ).
Retiro de meus arquivos não tão implacáveis os trechos de uma entrevista em que o locutor-que-vos-fala fez a ele um punhado de perguntas sobre uma das atividades preferidas do cidadão Francisco Buarque de Holanda. Não, não é a música: é o futebol - logicamente.
GMN : Você diz que o futebol tem momentos de improviso e genialidade que nenhum artista consegue repetir.Mas em alguma de duas músicas você teve o sentimento de improviso que você só encontra no futebol ?
Chico Buarque : “É possível encontrar algo semelhante ao futebol no jazz, na música instrumental. Alguma coisa pode acontecer enquanto você toca. Mas não sou improvisador. De qualquer forma, há no ato da criação momentos em que você parece iluminado. São jogadas que acontecem sem que você tenha pressentido. De repente, vem uma ideia. Você se pergunta : de onde veio ? É o que acontece com o futebol : é como se o corpo recebesse uma luz repentina inexplicável”.
GMN : Que música ou que verso despertou em você,na hora em que estava compondo, a emoção que você sente diante de um drible ?
Chico Buarque : “Você vai trabalhando, trabalhando, trabalhando em cada música,até que há um “clique” : aparece um verso ou algo na melodia que faz você pensar “isso é novo”, “não fui eu que fiz” . É como se fosse algo que viesse de fora”.
GMN : Quando estava exilado na Itália,você teve contato com Garrincha. É uma página pouco conhecida da biografia de Chico Buarque. Vocês conversaram sobre futebol ou sobre música ?
Chico Buarque : “É óbvio que eu falava sobre futebol – e ele falava de música....Acontece também com Pelé – que adora música. Mas Garrincha era muito musical. Tive um contato maior com ele em Roma. A gente acaba mesmo falando mais de música do que de futebol. Garrincha conhecia música muito mais do que eu imaginava antes. Gostava de João Gilberto. Eu imaginava que Garrincha gostasse de uma música mais simplória, mais ingênua, talvez - mas não ! Garrincha gostava da sofisticação de um João Gilberto”.
GMN :Que tipo de comentário ele fazia sobre João Gilberto ?
Chico Buarque : “Garrincha comentava gravações, se referia a detalhes, lembrava de como João Gilberto cantava uma determinada música. Para me mostrar,Garrincha cantarolava – não muito bem – mas mostrava que tinha a lembrança das músicas de João Gilberto. Referia-se à maneira como João Gilberto cantava as músicas. João é um inventor. Não é um compositor. Talvez seja mais do que compositor, porque inventa a partir de uma música alheia. E Garrincha falava exatamente disso : a maneira como João Gilberto cantava - talvez uma cantiga mais conhecida que ele tivesse reinterpretado,como “Os Pés das Cruz”. Garrincha salientava a maneira como João Gilberto reinventava um samba”.
GMN : É verdade que você dirigia automóvel para Garrincha na Itália ?
Chico Buarque : “Eu era o chofer de Garrincha. Ele jogava umas peladas – algumas remuneradas – na periferia de Roma. Ganhava um cachê. Eu é que levava Garrincha, no meu Fiat. Era impressionante. As pessoas paravam na rua. Garrincha era muito popular. Isso aconteceu entre 1969 e 1970. Garrincha já tinha parado de jogar há algum tempo. Oito anos já tinham se passado desde a Copa de 1962 - mas ele ainda era muito conhecido na Itália”.
GMN : “Se você pudesse escolher entre ser um grande nome da Música Popular Brasileira e um grande craque da seleção, qual das duas profissões você escolheria ?
Chico Buarque : “Nunca escolhi sem músico. Quando eu pude – e quis escolher – aos quatorze, quinze anos de idade, eu quis ser jogador de futebol mesmo. Eu achava que poderia ser um bom jogador. Era uma ilusão. Mas eu tinha essa ilusão, na época, com bastante segurança. Tornei-me músico um pouco por acaso.
Devo dizer que o sonho de ser um craque
permaneceu na minha cabeça. Ainda hoje acredito que seja”.
GMN : Você chegou a tentar ser um jogador de futebol profissional ?
Chico Buarque : “Eu, que jogava tanto, um dia fui ao Juventus, na rua Javari, em São Paulo, para fazer um teste. Mas eram milhões de candidatos fazendo o teste....Comecei a perceber que ia não dar para mim. Depois de esperar, esperar e esperar, fui embora. Não cheguei nem a ser chamado para fazer o teste, porque acharam que eu não tinha físico para ser jogador”.
GMN : Mas por que você escolheu logo o Juventus para fazer um teste – e não um time grande,como o Palmeiras,o Corinthians ou o São Paulo ?
Chico Buarque : “Porque eu achava que, num time mais fraco, eu teria uma vaga na certa....(ri)”.
GMN : “Você,como especialista em futebol, jogador amador, técnico de um time de futebol de botão chamado Politheama, poderia escalar a seleção brasileira de todos os tempos de Chico Buarque de Holanda ? Qual é o grande time ?
Chico Buarque : “É impossível. A brincadeira de escalar times de diversas épocas é apenas uma brincadeira. Porque você não pode comparar o futebol que se joga hoje com o futebol que se jogava há dez anos. Imagine vinte anos ! A comparação é falsa. Não se imagina o que seria Garrincha hoje nem se imagina o que seria Romário há vinte anos. É uma comparação absurda”.
GMN : Você tem no futebol ídolos que não são tão populares quanto Pelé e Garrincha,como Canhoteiro, por exemplo....
Chico Buarque : “Canhoteiro, Pagão. Fiz uma música chamada “O Futebol” dedicada a uma linha utópica – Mané Garrincha, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro. Temos nossos ídolos particulares, aqueles que a gente pensa que são só nossos, porque ninguém conhece. Pelé e Garrincha todo mundo da minha idade viu jogar. Quando eu morava em São Paulo, via jogadores como Canhoteiro e Pagão. Não havia televisão em rede nacional. O pessoal do Rio, então, não conhecia esses jogadores. Quando falo de Canhoteiro e Pagão, nem sempre conhecem, aqui no Rio. Outros ídolos aqui do Rio nem sempre eram conhecidos em São Paulo. Quando eu voltava para casa em São Paulo, depois de passar férias no Rio, por volta de 1955, antes da Copa, portanto, eu falava de Garrincha – e ninguém sabia quem era”.
GMN : Quando criança – ou adolescente- você era daquele tipo de torcedor que vai ver o jogador descendo do ônibus na porta da concentração ?
Chico Buarque : “Eu fazia isso tudo, porque morava perto do estádio do Pacaembu. Eu me lembro de ter visto a seleção de 1958 concentrada. Fui lá peruar, ficar com cara de bobo olhando para as “figurinhas”. Porque eu conhecia os jogadores dos álbuns de figurinhas- muito pouco de televisão.Não tinha televisão em casa. A gente não via futebol pela TV : ia ver no estádio. Eu via os jogadores de longe, durante os jogos. Ver de perto um jogador era um acontecimento”.
GMN : De qual dos jogadores que você viu de perto você guardou a lembrança mais forte ?
Chico Buarque : “De Almir,o Pernambuquinho – que ficou olhando para mim depois que entrou no ônibus. Eu estava ali de boca aberta, com cara de babaca, olhando os jogadores. Almir, então,começou a caçoar de mim. Depois de ter sido chamado na primeira convocação, num grupo de quarenta e quatro jogadores, Almir terminou nem indo para a Copa da Suécia”.
GMN : Você,ainda criança, viu a famosa seleção brasileira de 1950 jogar em São Paulo contra a Suécia,nas vésperas da grande derrota contra o Uruguai,no Maracanã. A derrota de 1950 deixou algum trauma em você ?
Chico Buarque : “Trauma não posso dizer que tenha deixado,porque eu tinha seis anos de idade. Mas me deixou assustado, porque ouvi o jogo pelo rádio. O Maracanã, ”o maior estádio do mundo”, era um sonho na minha cabeça. Eu me lembro exatamente de que o locutor, chamado Pedro Luís, disse assim quando o Brasil fez um a zero contra o Uruguai : “Gol de Friaça ! Quase que vem abaixo o Maracanã !”. Eu pensei que o estádio viesse abaixo mesmo ! Pensei que o estádio estivesse caindo, com duzentas mil pessoas. Não prestei atenção ao jogo. Fiquei pensando no Maracanã tremendo com aquelas pessoas todas ali dentro”.
GMN : Quem levou você ao estádio ,em São Paulo, para ver o jogo do Brasil contra a Suíça pela Copa de 50 ?
Chico Buarque : “Quem levou foi minha mãe, porque meu pai não gostava muito de futebol”.
GMN : O futebol tem uma presença enorme na vida do brasileiro, mas aparece pouco como tema de músicas. É desproporcional a relação entre a importância do futebol e a quantidade de músicas que tratam do tema. Por quê?
Chico Buarque : ”Não sei. O futebol é próximo da vida do brasileiro, assim como os jogadores sempre foram muito próximos dos músicos. Jogador de futebol tem mania de batucar, canta na concentração. Isso não é de hoje, existia já nos anos cinqüenta. Hoje,o pessoal de pagode se encontra com o pessoal da seleção para gravar”.
GMN : Se a gente for contar as músicas suas que tratam de futebol, vai ver que são poucas. Qual é a dificuldade em tratar de futebol ?
Chico Buarque : “Não é só música. Há pouca literatura tratando de futebol, há pouco cinema. Dá para entender por que há pouco futebol no cinema : é difícil reproduzir com imagens o que já é tão forte na vida real. Teoricamente, traduzir o futebol em palavras ou em música seria fácil do que em cinema. Prometo fazer mais umas duas ou três”.
GMN : Você jogaria pelo Fluminense hoje ?
Chico Buarque : “Claro que jogaria ! Tenho vaga naquele time”.
GMN : Quando joga futebol, que posição você ocupa ?
Chico Buarque : “Jogo em todas. Mas sou mais de preparar o gol. Sou um centro-avante recuado”.
GMN : Por que é que você se apresentava como jogador da seleção brasileira numa viagem que você fez ao Marrocos ? Alguém desconfiou da mentira ?
Chico Buarque : “Quando você diz que é brasileiro no exterior,o pessoal começa a falar de futebol. É uma maneira de ganhar ponto com eles. Numa conversa com motorista de táxi, por exemplo, o assunto futebol logo aparece se você diz que é brasileiro. Então, eu assumia a identidade de jogador de futebol até que um estrangeiro disse : “Ex-jogador,não é ? “....Eu disse que tinha sido convocado para a seleção de 82 : tinha sido reserva de Sócrates”.
GMN : O pessoal acreditava ?
Chico Buarque : “Não !” (rindo)
GMN : Você quebrou o perônio e rompeu os ligamentos jogando futebol. Disse,então,que não estava conseguindo compor porque não sabe fazer música parado. Você só compõe andando ?
Chico Buarque : “Não apenas compor – eu também só sei pensar andando. Se você ficar parado, não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo. Se você tem qualquer problema, dê uma caminhada - porque ajuda,inclusive a ter ideias. Se a música ficou emperrada ou se a ideia para um livro não vem ,a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama. Eu não conseguia ter ideias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdido pela imobilidade”.
GMN : Você então associa o ato de andar ao ato de compor ?
Chico Buarque : “Associo o ato de andar ao ato de pensar, criar e compor”.
GMN : Você já teve o “estalo” para alguma música jogando futebol ?
Chico Buarque : “Fazer música jogando futebol não dá, porque durante a partida você fica empenhado em suas jogadas geniais. Mas caminhando tive a ideia de várias coisas. A verdade é a seguinte : você compõe com o violão, mas quando o momento em que o processo fica encrencado, você tem de sair andando. Não pode ficar parado, com o violão, a vida inteira. Então, para resolver impasses,o melhor é caminhar”.
GMN : Diz a lenda que você escreveu aquele refrão “você não gosta de mim/mas sua filha gosta” pensando no general Ernesto Geisel – que tinha uma filha.Somente você pode tirar essa dúvida : é verdade ?
Chico Buarque :”Eu nunca disse isso. As pessoas inventam. O engraçado é que a invenção passa a fazer parte do anedotário. Nunca imaginei que pudesse fazer uma música pensando num general ! A gente não faz isso. Você pode fazer uma música com raiva de alguma coisa : acontecia na época da ditadura militar,porque,com a censura, a política interferia na criação, o que nos incomodava. Mas você não ia dedicar uma canção a um pessoa. Quando se falava “você”, não se estava referindo a um general.Era uma generalidade”.
GMN : Por falar em generais : o general Garrastazu Médici freqüentava estádios no tempo em que você sofria os horrores da censura. Alguma vez você cruzou com ele num estádio de futebol ?
Chico Buarque : “Vi uma vez,porque eu estava chegando ao portão que dá nas cadeiras do Maracanã. De repente, chegou uma turma de batedores, com sirenes,com a truculência que é um pouco própria de autoridades, mas na época, era muito mais acentuada.”Afasta todo mundo ! “. Médici desceu do carro.Fiquei vendo de longe aquele figura”.
GMN : Você já era famoso.Algum dos batedores do general reconheceu você por acaso ?
Chico Buarque : “Batedor não reconhece ninguém : não olha para a cara de ninguém na hora de sair abrindo espaço”.
GMN : “Se você fosse chamado para escrever o verbete Chico Buarque de Holanda numa enciclopédia de música popular,qual seria a primeira frase ?
Chico Buarque(rindo) :”Êpa !. Não sei. Podia ser “ êpa”....
GMN: Com interrogação ou com exclamação ?
Chico Buarque: “Com interrogação.A primeira palavra seria : êpa ?" “.
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Aqui, "Bom Tempo", aquela música em que Chico Buarque, torcedor apaixonado do Fluminense, diz o que queria da vida: "A alegria batendo no peito / o radinho contando direito / a vitória do meu tricolor":
http://goo.gl/8z1bhD
( Entrevista gravada no Rio, em 1998 )
Aqui, a íntegra da entrevista:
http://www.geneton.com.br/archives/000041.html
Posted by geneton at junho 19, 2014 11:46 AM