"FAÇA AQUILO QUE SÓ VOCÊ PODE FAZER. COMETA INTERESSANTES, IMPRESSIONANTES, GLORIOSOS, FANTÁSTICOS ERROS" ( OU: O DIA EM QUE O DISCURSO DE NEIL GAIMAN FEZ LEMBRAR EDUARDO COUTINHO )
O que é que o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho poderia ter em comum com Neil Gaiman - o escritor e quadrinista inglês?
Acaba de ser lançado no Brasil, em livro, o texto do discurso que Gaiman fez para os estudantes da University of Arts, na Filadélfia. As palavras de Gaiman fazem sucesso entre a rapaziada. O livro chama-se "Erros Fantásticos: O discurso "Faça Boa Arte" - de Neil Gaiman".
Há uma ou outra "platitude", mas, em resumo, ele diz:
"Eu observava meus colegas, amigos e pessoas mais velhas e via quanto alguns eram infelizes: escutava quando me diziam que não conseguiam mais enxergar um cenário em que fariam o que sempre quiseram, porque àquela altura precisavam ganhar todo mês certa quantidade de dinheiro só para se manterem na posição em que estavam".
"Não podiam fazer o que importava, o que realmente queriam. Isso me pareceu tão trágico quanto qualquer problema no fracasso. Além disso, o maior problema do sucesso é que o mundo conspira para que você pare de fazer o que faz, só porque é bem-sucedido".
"Um dia, ergui os olhos e me dei conta de que tinha me tornado alguém cuja profissão era responder e-mails e, nas horas vagas, escrevia. Passei a responder menos mensagens e descobri, aliviado, que estava escrevendo muito mais ( ...)"
"A vida às vezes é dura. As coisas dão errado, na vida e no amor e nos negócios e nas amizades e na saúde e em todos os outros aspectos que podem dar errado. Quando as coisas ficarem complicadas, é assim que você deve agir: faça boa arte. É sério
(...). Faça o que só você faz de melhor (...) Faça aquilo que só você pode fazer".
"O impulso, no começo, é copiar. Isso não é ruim. Muitos de nós só encontraram a própria voz depois de soar como várias pessoas. Mas a única coisa que só você e mais ninguém tem é você. Sua voz, sua mente, sua história, sua visão (....)"
"Meus projetos que melhor funcionaram melhor foram aqueles dos quais eu estava menos certo(...). Mas qual deve ser a graça de fazer o que você sabe que vai dar certo ? E, algumas vezes, o que eu fiz não deu nada certo. Aprendi com elas tanto quanto com as que funcionaram( ...) Cometam interessantes, impressionantes, gloriosos, fantásticos erros. Quebrem regras. Deixem o mundo mais interessante por estarem nele".
Como disse, ao longo do discurso há uma ou outra declaração de princípios que pode lembrar aquelas lastimáveis performances de animadores de funcionários de corporações - mas, na essência, Neil Gaiman toca no que interessa: "Faça aquilo que só você pode fazer".
O importante é apostar no incerto, cometer erros "gloriosos".
Thank you, mr. Gaiman.
Eu me lembrei da pregação de Gaiman ao ver um documentário recém-lançado, em que o personagem principal é o documentarista Eduardo Coutinho.
Título: "Coutinho - sete de outubro", em cartaz em regime de pré-estréia no Instituto Moreira Salles, no Rio. Ao contrário do que fazia habitualmente, dessa vez o cineasta Eduardo Coutinho fica diante da câmera para dar uma entrevista, conduzida pelo realizador do documentário, Carlos Nader. É como se Coutinho se transformasse em personagem de Coutinho. Bola na rede.
( O depoimento foi gravado quatro meses antes da morte de Coutinho - uma daquelas tragédias que nos deixam mudos ).
Lá pelas tantas, Coutinho fala sobre o "prazer indizível" que é fazer um determinado filme num determinado momento num determinado lugar. É como se dissesse que a aventura do cinema
precisa - necessariamente - ser pessoal e intransferível. Só assim vale a pena. Não pode ser delegada a outros. Porque outro realizador faria de outra maneira. A regra vale, claro, para documentários - o território que Coutinho elegeu para transitar.
O ( belo ) depoimento de Coutinho aponta para um caminho: o ato de fazer um filme deve ser revestido de uma devoção quase religiosa. Fazer ou não fazer passa a ser, nos delírios do realizador, uma questão de vida ou morte ( a atitude aplica-se não apenas a filmes, claro, mas a qualquer "aventura" do tipo ).
Em resumo: "Faça aquilo que só você pode fazer".
Somente Eduardo Coutinho poderia fazer os documentários de Eduardo Coutinho. Não é, óbvio, o único caso de cineasta com marca pessoal, mas o que ele diz, na entrevista, marca uma posição, um tardio mas bem sucedido "projeto de vida".
É óbvio que noventa e nove vírgula noventa e nove por cento dos terráqueos permanecerão absolutamente indiferentes ao fato de que um filme "x" sairá ou não do papel, mas o realizador precisa criar a ilusão de que aquele filme é indispensável, é indispensabilíssimo - nem que seja para ele mesmo. Pouco importa - aliás - que o resultado seja eventualmente precário ou aparentemente banal. Não é este o "ponto". É o que Coutinho diz, com outras palavras,no depoimento.
A situação pode soar surrealista mas é assim: um personagem anônimo - como os que povoam os filmes de Coutinho - poderia, claro, ser filmado "n" vezes. Não haveria qualquer dificuldade. As situações eram, em tese, perfeitamente "repetíveis" - mas, como princípio, Coutinho se convencia de que tudo teria de acontecer , necessariamente, ali, naqueles trinta, quarenta ou sessenta minutos diante do entrevistado: o desnudamento, as revelações, a confissão. É uma sensação que, a rigor, move todos os entrevistadores. Coutinho cumpria este mandamento ao pé da letra, diante de personagens anônimos que ia encontrando em apartamentos de Copacabana, morros da zona sul, casebres no sertão. Diz, no documentário, que evitava ouvir figuras públicas ou gente que ele próprio conhecia. Não ia dar certo.
As palavras de Coutinho no documentário soam fortes: resumem a necessidade de quimeras pessoais numa época dominada pela uniformidade mediocrizante.
Já estou soando como crítico de cinema. Não sou. E foi bonito ver a plateia aplaudindo Coutinho no fim do filme.
Palmas para ele. É uma grande lástima que uma carreira que, como ele dizia, começou tarde tenha sido violentamente interrompida. "A morte é uma piada. A vida é uma tragédia. Mas, dentro de nós, mesmo no maior desespero, há uma força que clama por coisas melhores", já dizia Paulo Francis.
Em última instância, "clamar por coisas melhores" é o que faz quem, como Coutinho, apostava numa aventura pessoal. Já é tarefa para uma vida.
Posted by geneton at junho 19, 2014 02:10 PM