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agosto 08, 2014
FAZER JORNALISMO É DIZER QUEM É SCOTT WOLF A UMA CAMAREIRA QUE - ASSIM COMO NÓS - JAMAIS SUSPEITOU QUE SCOTT WOLF EXISTISSE
Reviro meus papéis virtuais, em busca de um texto. Termino encontrando um relato sobre os bastidores da "indústria do entretenimento". Correspondente em Londres, no fim dos anos noventa, eu tinha sugerido ao editor: que tal se, em vez de fazer a tradicional matéria sobre o lançamento de um filme, a gente contasse como funciona o "circo" de divulgação dos grandes estúdios? Ok - a matéria poderia entrar no fim de semana. O relato foi enviado para a redação. Surpresa: quando a matéria foi publicada pelo jornal, só ficaram as declarações do ator. Nada sobre os bastidores. Nada, nada, nada. Assim caminha a humanidade. Com um ou outro acréscimo, eis aqui a reportagem - antes de ter sido jogada na assustadora, horripilante, tétrica, sanguinolenta e burocratíssima MTT ( Máquina de Triturar Textos ), diligentemente operada por editores nos confins das redações do planeta:
LONDRES - Começa assim: num belo dia de primavera, o telefone toca às onze da manhã. Do outro lado da linha, uma voz aveludada anuncia, em tom ligeiramente solene : ''Bom dia ! Você foi indicado para....''.
A palavra ''indicado" (''nominated'', em inglês) lembra, na hora, aquelas festas de entrega do Oscar: ''The nominated are....''. Por uma milésimo de segundo, você pensa, com seus surrados botões : ''É a glória - ainda que tardia ! A Europa se curva diante do Brasil !''.
O delírio se desfaz rapidamente, porque você jamais passou diante de uma câmera de cinema. A festa do Oscar já acabou há seculos.
A voz aveludada esclarece que você foi ''indicado'' para entrevistar Scott Wolf ao meio-dia e meia da quinta-feira na suite 1132 do Saint James Court Hotel, no numero 45 da Buckingham Gate - endereço nobre, a um passo do Palácio de Buckingham. Ótimo. Mas uma dúvida devastadora paira no ar : quem é Scott Wolf, pelo amor de Deus ?
Por cortesia, você livra a moça de voz aveludada do constrangimento de ouvir a pergunta. Corre, então,para o Dicionário de Cinema. Nada. Nem uma linha sobre nosso heroi. Você se lembra daquele escritor inglês - G.H.Chesterton - que uma vez disse: ''O jornalismo consiste basicamente em dizer ''Lorde Jones morreu'' a pessoas que nunca souberam que Lorde Jones estava vivo''.
Quem sabe não terá chegado a hora de adaptar a máxima: fazer jornalismo é entrevistar o famoso Scott Wolf sem jamais ter imaginado que Scott Wolf existisse.
Horas depois do telefonema, chega um novo convite : você é esperado para a avant-première de ''White Squall'', o novo filme de Ridley Scott (o inglês que dirigiu sucessos como ''Alien'', ''Blade Runner,o Caçador de Andoides'' e ''Thelma e Louise''). O filme vai ser exibido para jornalistas na sala de projeção de uma produtora na Dean Street, uma transversal da Oxford Street, no centro de Londres.
Um fax chega com os detalhes. O mistério começa a se desfazer : Scott Wolf -um ator de vinte e sete anos - é um dos astros do filme. Um dia depois da avant-première, o famoso Scott Wolf estará à espera dos jornalistas ''indicados'' na suite do hotel nas vizinhanças do palácio da Rainha Elizabeth Segunda.
Martin Amis, um dos mais incensados escritores ingleses, viajou uma vez para Nova Iorque para entrevistar Madonna, mas a estrela não quis recebe-lo. Amis não desistiu. Primeiro, morreu de rir da pompa ridícula que cercou o lançamento daquele livro de Madonna em poses provocativas.
Depois, produziu um longo artigo para dizer que o grande assunto hoje não é o artista, o cineasta ou o escritor - mas a máquina publicitária que os cerca. Acertou na mosca. O público nem sempre sabe, mas os bastidores, em geral, são mais interessantes que as declarações da estrela da vez .O nome da estrela da vez é Scott Wolf.
Se algum forasteiro ouvisse os cumprimentos trocados por jornalistas na sala de exibição antes do início da avant-première certamente imaginaria que ali estavam legítimos representantes do jet set internacional : ''E aí ? Como é que foi a Sharon Stone ?''. ''Não fui. Mas deu pra fazer Susan Sarandon - uma simpatia''. ''E Robin Williams ? Vem ou não vem a Londres ?''.
Os jornalistas revivem ali a cena surrealista que encenam incontáveis vezes durante o exercício da profissão : falam de celebridades como se fossem velhos íntimos de cada uma. Não são,obviamente. Frequentam, na condição de entrevistadores, suítes presidenciais de hotéis de cinco estrelas em que jamais,sob hipótese alguma, poriam os pés em missão particular, por absoluta insuficiência de lastro bancário.
A reciproca é verdadeira : celebridades tratam os jornalistas como se fossem amigos de infância. Astros diplomados no jogo sabem como conquistar simpatias imediatas : Paul McCartney faz questão de tratar os entrevistadores pelo primeiro nome, um sinal de intimidade que, em situações normais, os ingleses só dispensam a velhos conhecidos.
Ali McGraw - aquela atriz de ''Love Story'' - deu o endereço, pessoal, a um repórter brasileiro, na contracapa de um livro, depois de uma entrevista. Se o repórter, acometido de uma crise delirante de otimismo, resolvesse pegar um avião rumo ao endereço de Miss McGraw em busca de emoções extra-jornalísticas seria, com toda certeza, enxotado para longe por seguranças do porte de Adilson Maguila ainda na porta da mansão. ( De qualquer maneira, guardei a relíquia autografada. Ah, Ali McGraw: você estava tão bonita, séculos atrás, naquele filme com Steve McQueen... ).
É tudo uma grande festa, feita de interesses mútuos. O jogo é aberto : a distribuidora oferece ao jornalista ''indicado'' a chance de entrevistar um astro, porque quer ocupar espaços nos jornais ou tempo nas tevês.
O jornalista aproveita a chance porque, quem sabe, pode obter uma boa entrevista. Quem dispensaria a chance de um encontro exclusivo, sem a presença de intrusos, com o gênio Woody Allen, por quarenta cronometrados minutos,na suíte de um hotel com vista para o Hide Park ? Ninguém. ( o locutor-que-vos-fala estava lá, uma hora antes do previsto ).
O problema é que nem sempre os entrevistados são do primeiríssimo time no ranking dos campeões de preferência. Para cada Wood Allen que cai do céu, há dez roteiristas ou produtores ou astros coadjuvantes que nem os próprios jornalistas conhecem. Mas o sentimento comum é de que vale a pena arriscar. Quem sabe, não estará ali um futuro Stanley Kubrick ou o Dustin Hoffmann ainda anônimo?
O NOVO TOM CRUISE ENFRENTA
UM NAUFRÁGIO EM ALTO MAR
Começa - afinal - o novo filme de Ridley Scott. Minutos depois de iniciada a projeção,um dos jornalistas convidados dorme um sono solto. Morfeu ronda a sala. Mas as cenas de catástrofe na tela despertam os sonolentos.
O filme conta a história de dezesseis adolescentes que partem em viagem de instrução em um barco comandado por um velho lobo do mar, vivido por Jeff Bridges.
Toda a experiência do capitão não impede que o barco vá parar em meio a uma tempestade cortada por raios e trovoes. ''White Squall'' -o titulo do filme - é o nome da tempestade.
Filmadas em um grande tanque, em meio a ondas gigantescas provocadas por um motor, as cenas do naufràgio são de tirar a respiração.
Seis tripulantes - quatro alunos,um oficial e a mulher do capitão - morrem na tempestade. A tragédia vai para as manchetes. O capitão termina no banco de réus.
O julgamento vira dramalhão típico de Hollywood. É a versão marítima de ''Sociedade dos Poetas Mortos'' ou de ''Brubaker'', aquele filme em que Robert Redford faz o papel do diretor que tenta humanizar uma penitenciária.
Agora, o herói que enfrenta a incompreensão do sistema é o capitão vivido por Jeff Bridges (uma curiosidade biográfica : Jeff Bridges é filho de Lloyd Bridges,o ator da serie de TV ''Viagem do Fundo do Mar''. Chegou a fazer pontas na serie. Não é estranho, portanto,ao mundo dos golfinhos, tubarões e tempestades). Scott Wolf faz o papel de um dos adolescentes que vivem a aventura no mar.
O estúdio poderia ter trazido Jeff Bridges - ator consagrado- ou o diretor Ridley Scott para a bateria de entrevistas na suite do hotel em Londres. Mas não. A hora é de apontar os refletores sobre o futuro astro Scott Wolf.
Os jornalistas ''indicados'' deparam-se com um poster do filme na antessala da suite. Um garçom aparece para tirar as dúvidas: em que posso servi-los ? Os mais famintos podem avançar sobre um bolo de chocolate, se quiserem.
A moça de voz aveludada vai levando os jornalistas, em grupos de quatro, para o encontro com o futuro superstar. Há restrições : ninguém deve levar máquina fotográfica. Os jornalistas devem chegar pelo menos quinze minutos antes do horário previsto.
Parece que um dos segredos usados pela máquina publicitária para conceder um ar de importância a qualquer acontecimento é cercá-lo com um certo ar de solenidade. ''Nada de fotos''.''Por favor,chegue na hora''. ''Mister Wolf terá trinta minutos para cada grupo''.
Há poucas semanas, jornalistas passaram pelo ritual de ter as mãos carimbadas com uma tinta especial para ter o direito de ouvir a entrevista coletiva dos renascidos Sex Pistols, em que a maior atração foram os retumbantes arrotos do líder da banda. A engrenagem sabe como funciona.
Scott Wolf usa a tática Paul McCartney para criar um clima de intimidade: repete o nome de cada um dos jornalistas, enquanto os recebe com um aperto de mão firme e um ''que bom ver você!''.
Pela enésima vez, ele repetirá - sem demonstrar qualquer sinal de impaciência - como foi difícil enfrentar aquelas ondas na filmagem da cena do naufrágio. Dirá que se surpreende ao ser reconhecido na rua ''tão longe de casa'' - graças à exibição na TV inglesa de seriados americanos em que atua, como ''Party of Five'' ou ''Saved by the Bell''.
Fará revelações biográficas curiosas : chegou a se formar em ''finanças'' na Universidade de George Washington, mas terminou, tardiamente, optando pela carreira de ator, gracas aos conselhos de um amigo.
Não,não se considera ''símbolo sexual'' - quem se considera, no planeta Hollywood ? Os elogios vão, todos, para o diretor que o escolheu como estrela - Ridley Scott.
Com que outro gostaria de trabalhar ? ''Meu Deus'', diz o futuro astro ao GLOBO,''são tantos...''. Termina citando nomes : Barry Levinson, Martin Scorcese, Quentin Tarantino, Robert Redford, Francis Ford Coppola. Comete uma boa frase : ''Quero trabalhar com diretores que me ajudem a descobrir dentro de mim coisas que nem eu sei que existem''.
Enquanto fala,o novo Tom Cruise não para de comer uvas, traça uma banana e consome copos d'água. ''É o meu café da manhã...'',explica.
Barba por fazer, olhos azuis, camisa de manga comprida preta, calca de veludo verde escuro, o novo ''símbolo sexual das adolescentes'' anuncia que não quer criar limites para si próprio : depois de se recuperar da maratona de lançamento de ''White Squall'', aceitará participar de qualquer projeto que lhe pareca um desafio: ''O problema é que a maioria dos scripts que a gente recebe é lixo''.
Numa mesa ao lado, uma agenda prevê o que acontecerá nas próximas horas até o dia seguinte, quando, ''às 6:55'' , um carro estará no aeroporto,em Los Angeles, para levar Scott Wolf para casa. É tudo cronometrado.
Trinta minutos depois de iniciada a entrevista, uma das funcionárias encarregadas de organizar a maratona abre discretamente a porta da sala e caminha sem produzir qualquer ruído para as proximidades da cadeira onde o novo Tom Cruise consome uvas e bananas entre uma e outra frase. É o sinal de que o tempo acabou.
Wolf ainda brinca. Depois de fazer pontas em filmes inexpressivos, ele confessa : ''É a primeira vez que faço um filme capaz de reunir pessoas em torno de uma mesa...''.
Os jornalistas recebem um pacote de informações sobre o novo filme: um texto de trinta e sete páginas com biografias de atores, diretor e produtores e a história das filmagens, alem de slides coloridos e cópias de reportagens publicadas em revistas sobre o futuro astro.
Há material de sobra para encher páginas e páginas. A engrenagem publicitária se move para lançar um novo nome nas fachadas de cinemas de todo o planeta.
Quando o grupo de jornalistas deixa a sala, Scott Wolf repete o ritual com o grupo seguinte, formado por suecos, portugueses e espanhóis : de pá diante da porta, repete o nome de cada um, exibe um sorriso de gala.Vai começar tudo de novo.
O candidato a astro já aprendeu a lição : não demonstra o menor sinal de enfado. É provável que, no íntimo, esteja contando os segundos para se ver livre daqueles desconhecidos que fazem perguntas como se o conhecessem desde o berço.
Cumpre o ritual com atuação exemplar. Porque sabe que, em breve, aparecerá em publicações e em tevês de todas as partes - em idiomas tao díspares quanto o árabe ou o sueco. Assim nasce uma estrela.
Lá fora, uma camareira olha com curiosidade para o gravador do repórter, pergunta quem é, afinal, a figura importante que ocupa aquela suíte. Você tenta exibir um ar de intimidade: ''Scott Wolf!''
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Ok, lord Jones morreu, mas a máxima de Chesterton talvez mereça uma nova - e última - correção. De vez em quando, como agora, nesta manhã clara de primavera nas vizinhanças do Palácio de Buckingham, fazer jornalismo é dizer que Scott Wolf existe a camareiras que - exatamente como nós, pobres mortais - jamais suspeitaram que Scott Wolf um dia tivesse existido.
Posted by geneton at agosto 8, 2014 12:05 PM
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