setembro 30, 2014

DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 2

"O jornalista precisa se vacinar contra o engajamento ideológico. Não é vacina opcional: é vacina obrigatória! É como vacina contra paralisia infantil: todos devem tomar" OU: DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 2

( Depoimento colhido por alunas do curso de jornalismo da Universidade do Povo/ SP e publicado num livro que reúne entrevistas de quinze repórteres brasileiros sobre a profissão:
http://goo.gl/cQQwaB
É longo. Vou republicá-lo aqui, "em capítulos", como uma pequena contribuição a estudantes eventualmente interessados no que diz um quase-dinossauro:
Gravando! ):
Você fala muito que a “frigidez editorial” prejudica o jornalismo. Como ela pode ser combatida?
GMN: "É uma doença terrível na redação: a Síndrome da Frigidez Editorial. Batizei esta doença. Deveria registrar o nome na Organização Mundial da Saúde. O que é esta Síndrome? É a doença do jornalista que, depois de anos de profissão, perde a capacidade de se espantar diante da realidade. Se perde este fogo, o jornalista deve mudar de profissão. Porque passa a ser nocivo ao jornalismo.


Não estou falando de algo abstrato, mas de uma situação real, palpável, comprovável no dia a dia das redações. Cansei de ver em redações um clima de tédio total entre os jornalistas. Se você atravessar a rua, for à padaria e comentar que entrevistou uma velhinha que foi passageira do Titanic, provavelmente os "ouvintes" farão perguntas e se interessarão pelo assunto, enquanto muitos jornalistas dirão, com os olhos semicerrados de tédio: "Ah, mas já faz 100 anos que o Titanic afundou...".
Quando falo de frigidez editorial, estou criticando a atitude entediada. Neste sentido é que faço questão absoluta de não me enquadrar no "universo mental" dos jornalistas. Nesse universo, você corre o risco de se julgar mais importante do que você realmente é. O mundo real é mais interessante do que o mundo dos jornalistas. É o que mostra minha experiência de vida. Cansei de ver, ouvir e encontrar leitores e telespectadores mais interessados pelos fatos do que jornalistas.
Para que possam contribuir com esse "mundo real", os jornalistas têm que ter uma atitude de permanente espanto. Precisam ser "levantadores", não "derrubadores" de matéria. É aí que entra em cena, gloriosamente, a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. Quando criou esta "entidade", Kurt Vonnegut não estava se referindo ao jornalismo, mas essa “santa” deveria ser proclamada padroeira plenipotenciária da nossa profissão. O jornalista precisa manter, em algum ponto de suas florestas interiores, aquela chama, aquela faísca, aquele espanto que se vê no brilho dos olhos de um estagiário - ou de uma criança.
Quando você se guia pelo entusiasmo das pessoas que estão fora da redação, o resultado do trabalho é melhor do que se você se guiasse pelo tédio dos que estão dentro".

Você se dedica muito ao gênero entrevista. Por que se especializou nesse gênero e o que considera importante para desempenhá-lo com eficiência?
GMN: "Gosto de fazer, porque a entrevista é a matéria-prima do jornalismo. Tenho uma crítica seriíssima a fazer ao tom das entrevistas feitas pela imprensa brasileira. São excessivamente congratulatórias, principalmente em televisão. Entrevista deve ser um instrumento de revelação - não de congratulação ao entrevistado! É o que adotei como princípio geral para mim. Não quero ser amigo do entrevistado. Não devo ser. É um pecado capital. Acontece especialmente aqui no Brasil, quando o jornalista entrevista celebridades.
Você pode ver uma coletiva de um presidente americano, por exemplo. O jornalista lá é incisivo e diz: “o senhor mentiu...”. Eventualmente, pode parecer agressivo, mas é o papel da imprensa. E o presidente vai responder!
Outro pecado capital é o engajamento ideológico. O ex-presidente americano George Bush é tão interessante pra mim, jornalisticamente falando, quanto Fidel Castro. Adoraria entrevistar os dois, mas, para ser sincero, conheço jornalistas que se recusariam a entrevistar o Bush, por conta de ideologia. É claro que tenho minhas opiniões políticas, mas lugar de fazer "patrulhagem ideológica" é na urna, no dia da eleição. Não é na redação, sob hipótese alguma.
Quando entrevistei o [general] Newton Cruz, disse a ele, no final da entrevista: “não quero bancar o bom moço, porque o jornalista vive é de sangue. Quero manchete, quero escândalo, quero causar embaraço para o entrevistado, mas quero dizer que, jornalisticamente falando, o senhor me interessa tanto quanto Luís Carlos Prestes, o líder comunista”.
Eu não estava ali pra fazer patrulhagem ideológica em cima do general. Estava atrás de revelações. Com um entrevistado como ele, você consegue informações ricas sobre o regime militar. Mas existem jornalistas que se recusariam a entrevistar o general Newton Cruz, porque ele tinha fama de linha dura.
Meu princípio é o seguinte: antes de pisar numa redação, o jornalista precisa se vacinar contra o engajamento ideológico. Não é vacina opcional: é vacina obrigatória! É como vacina contra paralisia infantil: todos devem tomar.
Outro problema: como passa a vida lidando com o que é extraordinário, o jornalista corre o sério risco de passar a achar que o extraordinário é ordinário. Transforma-se naquela figura triste do “derrubador de matéria”, um bicho que infesta as redações. De maneira grosseira, divido os jornalistas em duas categorias: os bons, os tais “levantadores de matérias”, são aqueles que você pode pautar para falar de uma xícara e eles vão inventar um jeito interessante para escrever a respeito. Os ruins, em geral, são os “derrubadores”.
Repito: faço questão de não me enquadrar no universo mental da média dos jornalistas. Estou fora. Prefiro ser um "pária". O que o jornalista "tradicional" diz é : “Ah, fulano já deu esta declaração não sei onde, não vou dar essa matéria não”. Ou então a frase tétrica:
“A Folha já deu”. Não me interessa se a Folha deu! O bom jornalista vai procurar fazer de um jeito diferente, vai pensar numa maneira de avançar no assunto, vai descobrir um novo personagem, vai contar aquela história de uma maneira mais interessante!
Se Roberto Carlos já deu mil entrevistas, por que na milésima primeira eu não posso tirar algo novo? É preciso ter esta atitude. O jornalista pode até voltar de mão abanando, mas, pelo menos, tentou. Um bom lema é aquela frase de Angie, uma música bonita dos Rolling Stones: "Você não pode dizer que a gente não tentou".
Você já entrevistou muitas personalidades históricas. Qual personalidade não está mais viva e você gostaria de ter entrevistado?
GMN: "Quando fiz esta pergunta a Joel Silveira, uma espécie de guru meu, ele disse: “a entrevista que eu queria fazer era com Hitler. Perguntaria a ele: por que o senhor não insistiu na carreira de pintor? O mundo iria ganhar um pintor medíocre, mas, em compensação, iria se livrar de um dos maiores tiranos da história...”. Joel brincou que, nesse momento, entrariam cinco guardas na sala e o levariam até o cadafalso para matá-lo [risos]. “Mas pelo menos teria feito a pergunta”. Um dos que gostaria de entrevistar seria Hitler mesmo. A princípio, para mim, todo mundo é “entrevistável”.

Posted by geneton at setembro 30, 2014 01:06 PM
   
   
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