outubro 03, 2014

DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 5 E ÚLTIMO

É uma ilusão achar que o jornalismo vai melhorar o mundo- mas, se você não tiver essa ilusão, é melhor desistir. Ter uma atitude entediada diante do trabalho é desastroso para você, para o leitor, para o telespectador, para o internauta, para o ouvinte, para o jornalismo e para o Brasil. ( OU: DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE AQUELE VELHO SENHOR - O TAL DO JORNALISMO - CAPÍTULO 5 E ÚLTIMO)
( Depoimento colhido por alunas do curso de jornalismo da Universidade do Povo/ SP e publicado num livro que reúne entrevistas de quinze repórteres brasileiros sobre a profissão:
http://goo.gl/cQQwaB
É longo. Republicado, aqui, "em capítulos", como uma pequena contribuição a estudantes eventualmente interessados no que diz um quase-dinossauro:
Gravando! ):

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Você pediu à ex-primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher para ela se definir em uma palavra. Como você se define em uma palavra?
GMN: "Iludido. É uma ilusão achar que o jornalismo vai melhorar o mundo, mas, se você não tiver essa ilusão, é melhor desistir. As grandes ilusões é que movem o mundo. Sempre foi assim. Se a gente se prender estritamente à banalidade do real, não fará nada. Prefiro tentar ver o que se esconde atrás da linha do horizonte.
Com o tempo, você vai conquistando o equilíbrio entre a ilusão e a realidade. Tantas vezes, você acha, ingenuamente, que vai abalar a República. Depois, percebe que não abala nada. Você chega à seguinte conclusão: se uma matéria que você fez conseguir mexer com apenas uma pessoa, já estará de bom tamanho.
O que você não pode é ter uma atitude entediada diante do trabalho. Isso é desastroso para você, para o leitor, para o telespectador, para o internauta, para o ouvinte, para o jornalismo e para o Brasil. Prefiro ser iludido.
Declaro-me oficialmente em estado de rebelião permanente contra essa mentalidade burocrática do jornalismo. Isso pode não ter a menor importância para ninguém, mas, para mim, tem. Ou você mantém a ilusão ou você morre. De resto, desconfio que, no fundo, o que me move a me dedicar ao jornalismo é um certo e difuso sentimento de solidariedade para com os outros. É como Paulo Francis disse um dia: "A morte é uma piada. A vida é uma tragédia. Mas, dentro de nós, mesmo no maior desespero, há uma força que clama por coisas melhores". Eu acrescentaria: a minha força - pequena, pequeníssima - clama por um jornalismo melhor. Por que não? Posso fazer chegar ao público informações que de alguma maneira sejam úteis e lancem uma ou outra luz sobre o absurdo da vida. É minha maneira de ser solidário com meus semelhantes, com meus pobres sonhos e com meu país".
Como você se descobriu jornalista?
GMN: "Ainda não me descobri. O “pior” é que essa brincadeira já dura 40 anos. É inacreditável que ainda hoje eu tenha dúvidas sobre o jornalismo. Eu tinha que ter resolvido essa questão há muito tempo ou abandonado logo a área. Isso de vez em quando me incomoda.
Não tive nenhuma influência familiar para ser jornalista. Meu pai era agrônomo e fazendeiro. Minha mãe foi professora. Digo - brincando - que a primeira manifestação “clínica” que eu tive do jornalismo aconteceu quando era criança. Nem sonhava em ser jornalista, mas me lembro de que ficava no muro da minha casa, no bairro da Torre, no Recife, com um caderno em que anotava a placa dos carros que passavam na rua. Anos depois, fiquei pensando se já estava com essa “doença” em mim...
Quando tinha 13 anos, comecei a escrever algumas coisas. Imagine a qualidade dos textos! [risos]. Uma prima do meu pai mandou esses textos para o suplemento infantil do Diário de Pernambuco. Os textos começaram a ser publicados no suplemento infantil do jornal, mas nem passava pela minha cabeça fazer jornalismo profissionalmente".

Como foi esse início no Diário de Pernambuco?
GMN: "Depois que esses textos começaram a ser publicados no suplemento, fui chamado para ir à redação. Um jornalista do Diário leu meus textos e duvidou: “Deve ser o pai quem escreve essas coisas. Chama ele aqui”. Eu tinha 15 anos de idade. Era a primeira vez que eu pisava num jornal. Vou me lembrar para sempre do cheiro, das máquinas, daquela fumaceira na redação. Todo mundo fumava.
Uma das primeiras reportagens que fiz me deu uma lição definitiva. O diretor do Diário, um jornalista vibrador chamado Antônio Camelo, me mandou fazer uma matéria no Hospital da Tamarineira [nome popular do Hospital Ulysses Pernambucano, em Recife]: “Entre lá, pule o muro, diga que você tem uma irmã internada, invente qualquer coisa. Quero uma reportagem lá!”, ele me disse. Naquela petulância típica dos 16 anos de idade, eu disse a ele: “Deixe comigo!”.
Quando chegamos ao hospital, o fotógrafo ficou do lado de fora. Entrei sozinho e me misturei aos pacientes. Digo – brincando - que ninguém notou que eu não era um paciente! Só aí já haveria assunto para dez anos de psicanálise. Os pacientes disseram: “A comida aqui é horrível, vem pedra no meio do feijão. É tudo sem gosto”. Saí do hospital e voltei – desta vez, me apresentando como repórter e ao lado do fotógrafo. Procurei a direção do hospital. A diretora deu uma versão diferente dos fatos: “Aqui, nós temos uma equipe de nutricionistas. Segunda-feira é dia de carne; terça, peixe; quarta, frango”. Aprendi, ali, uma lição. Há sempre duas versões para um fato: a verdadeira e a oficial. Isso vale até hoje para mim. Deve valer para todos os jornalistas".

Dessa primeira fase, houve mais algum episódio que te marcou?
GMN: "Vivi uma cena que ficou meio folclórica. Se eu fosse fazer um livro de memórias, usaria esse caso no título. Eu tinha um editor-chefe, que até hoje permanece no Diário de Pernambuco, como diretor. Chama-se Gladstone Vieira Belo [atual vice-presidente do jornal]. Quando nós, repórteres, voltávamos da rua, ele ficava circulando pela redação, com as mãos para trás, olhando por cima do nosso ombro o texto que batíamos na máquina de escrever.
Um vez, eu estava querendo enfeitar um lead. Ou seja: escrever uma frase “bonita” para começar uma matéria. Gladstone olhou o texto, bateu nas minhas costas e disse, ironicamente: “O Clube da Poesia fica na rua Aurora! Aqui é a redação do Diário de Pernambuco!”.
Com certeza, eu estava cometendo, ali, alguma pérola da subliteratura universal [risos]. Ao longo da carreira, você aprende essas coisas: não querer fazer poesia, por exemplo, numa redação".
Qual matéria é considerada como divisor de águas na sua carreira?
GMN: "É difícil apontar uma em especial. Tive um encontro marcante com o Nelson Rodrigues. Eu estava lendo O Reacionário [publicado em 1977] - uma coletânea de textos brilhantes. As crônicas de Nelson Rodrigues são obras-primas - uma leitura que recomendo. Ninguém sabe usar adjetivo como ele.
Com relação à "experiência humana", a maioria das entrevistas deixa alguma coisa em você. Uma situação curiosa aconteceu quando consegui a entrevista com James Earl Ray, assassino de Martin Luther King [ativista político norte-americano, morto em 1968, que lutou em defesa dos direitos sociais para os negros e mulheres]. Tive a chance rara de entrar numa penitenciária de segurança máxima. Carimbaram as mãos da gente - a minha e a do cinegrafista Hélio Alvarez - com um código. O guarda me disse que trocam aquele código a cada dia. É para evitar que um visitante troque de lugar com um prisioneiro. O carimbo é checado na saída.
Passamos por uma sequência de portões de ferro. A porta da frente só se abria quando a detrás fechava. Chegamos a uma pequena sala, para onde o assassino foi levado. Ficamos sozinhos com ele. Eu tinha levado para a entrevista um livro que ele tinha escrito para se defender. Quando acabou a entrevista, fiquei com uma dúvida: “peço ou não autógrafo? Meu Deus, este sujeito é um assassino, matou Martin Luther King. Vou pedir um autógrafo a ele??? É o cúmulo!”. Mas terminei pedindo. Como jornalista, você vive situações que, em outras circunstâncias, jamais viveria".
A revista Realidade, ou qualquer projeto similar, teria espaço no mercado jornalístico atual ou seria uma utopia?
GMN: "Teria espaço. Eu, pelo menos, sinto falta de uma revista que trouxesse grandes reportagens, perfis, entrevistas de peso. Hoje, existe uma ou outra publicação que chega perto, como a [revista] Piauí . Quando chego a uma banca de jornal, tenho a impressão de que a gente vive a era do "jornalismo “endocrinológico”. Todas as publicações querem ensinar o leitor a emagrecer, a engordar, a fazer exercício, a começar uma dieta. Não aguento mais, pelo amor de Deus!
Não sou exatamente um saudosista, mas, quando eu estava na faculdade, havia nas bancas O Pasquim, que eu adorava, o Movimento, o Opinião, o Bondinho, várias opções interessantes. Eu me lembro da revista Status, por exemplo. Trazia mulheres nuas, mas publicava também matérias ótimas. Não faz tempo, comprei no sebo um exemplar que tinha Paulo Francis entrevistando Truman Capote [escritor americano, autor de A Sangue Frio], um conto de Gabriel García Marquez [escritor colombiano, autor do romance Cem Anos de Solidão, Nobel da Literatura, em 1982] e um artigo de Antonio Callado [jornalista, escritor, autor de Quarup].
Hoje, não vejo nada assim. Há também outro vício do jornalismo: a ideia de que os textos, para serem lidos, precisam ser necessariamente curtos. Meu documentário Canções do exílio traz um texto, lido pelo Paulo César Pereio, em que digo algo assim: “ por que tudo tem que ser despedaçado, cortado, desossado...?”. Parte-se do princípio de que ninguém quer saber de nada: tudo precisa ser telegráfico. Discordo dessa ideia. Se aparecesse uma revista de reportagem com textos aprofundados, como a Realidade, muita gente iria gostar. Um amigo meu jornalista, cineasta, chamado Amin Stepple, dizia que tinha certeza de que existia uma conspiração internacional da mediocridade. Hoje, depois de analisar friamente, estou convencido de que esta conspiração não apenas existe, mas domina tudo, não só o jornalismo".
Quais seriam as vantagens da Internet para o jornalismo?
GMN: "Em última instância, a internet dispensou a figura do editor. Se eu quiser, crio um blog agora, neste minuto, escrevo um texto do jeito que quiser e alguém pode ler em Hong Kong. É óbvio que jamais terá o alcance de um jornal impresso, mas, pelo menos, me livrei da figura do editor, uma entidade que, em alguns casos, tem um papel trágico. Nesse sentido, a Internet foi um milagre para o jornalismo.
A grande novidade também é que a Internet “dessacralizou” a figura do jornalista como único intermediário entre os fatos e o público. De certa maneira, hoje todo mundo pode fazer jornalismo. Mas é preciso atentar para algo importante: já que todo mundo vai participar dessa festa, então é preciso obedecer a algumas regras básicas. Não se pode mentir, não se pode deturpar.
Não tenho preconceito algum contra as novas mídias. Aquele modelo clássico de poucos órgãos - que falavam para todo mundo ao mesmo tempo - caiu. Houve um "estilhaçamento" radical, centenas de milhares de blogs e sites falam para públicos localizados. É uma coisa completamente estilhaçada, uma novidade. Não se sabe aonde é que vai dar. O que sabe, com certeza, é que a única coisa que salva a imprensa tradicional é a credibilidade. Eis aí um valor que vai permanecer, em meio ao vendaval. O que salva o The New York Times, por exemplo, é que no dia em que você lê uma notícia como “Bin Laden morreu” num blog, você vai correndo ao site do NY Times para ver se é verdade".

Como surgiu a ideia do documentário Canções do exílio?
GMN: "Em janeiro de 1972, Caetano Veloso voltou do exílio e fez um show no Recife, no Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães, o “Geraldão”, que ainda existe. Fui entrevistá-lo. Não lembro se foi por conta própria ou se alguém me pediu. Caetano Veloso foi a primeira pessoa famosa que entrevistei. Naquela época, entrevistei também Gilberto Gil.
Em 2010, resolvi fazer o documentário “Canções do Exílio”, porque queria pegar o depoimento dos dois hoje, quase 40 anos depois da volta do exílio, para fechar um ciclo. Em qualquer profissão - não interessa se você é jornalista ou gari, astronauta ou artesão - é preciso ter um lema, uma bandeira para seguir. Entre outras quinhentas mil bandeiras que eu poderia escolher do jornalismo, há uma que elegi pra mim: “Fazer jornalismo é produzir memória”. É minha modesta contribuição como jornalista: produzir memória para o Brasil".

Posted by geneton at outubro 3, 2014 11:35 AM
   
   
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