O MENINO QUE TINHA HORROR DE MATEMÁTICA E SONHAVA EM SER JOGADOR DE FUTEBOL FUGIA DOS PROFESSORES COMO SE FOSSE UM PEQUENO RICHARD KIMBLE - O INOCENTE INJUSTAMENTE PERSEGUIDO NA SÉRIE "O FUGITIVO"
( OU: PEQUENA LISTA DE LEMBRANÇAS DESPERTADAS POR UM LIVRO QUE FAZ UM INVENTÁRIO DE ANÚNCIOS DE REVISTA DOS ANOS SESSENTA E SETENTA: "A ALMA DO NEGÓCIO" - DE ALBERTO VILLAS )
É tiro e queda. Os textos de Alberto Villas, jornalista que trocou a camisa de editor de TV pela de cronista da memória, conseguem produzir um efeito instantâneo em quem lê: abrem as comportas de uma incontrolável torrente de lembranças.
Agora mesmo, as páginas de "A Alma do Negócio" acabam de me teletransportar para o bairro de Nossa Senhora do Rosário da Torre, no Recife dos anos sessenta / setenta.
Parece que estou vendo a barraquinha que vendia drops Dulcora na calçada do Cinema da Torre. A trilha sonora dos filmes na tela ganhava, sempre, a contribuição do barulho produzido, na plateia, por mãos infantis retirando o plástico que envolvia os drops multicoloridos. Lá na tela, Elvis Presley cantava uma canção que falava em Acapulco.
Guardei na memória uma cena de outro filme - de que jamais me esqueci: um equilibrista caminhando sobre uma corda estendida sobre uma queda d´água. A plateia prendia a respiração: e se ele caísse? Não caiu. Não consegui descobrir que filme foi aquele - o do equilibrista.
Também no Cinema da Torre, certamente embalado pelos drops Dulcora, vi a plateia inteira torcendo para que Steve McQueen escapasse dos guardas nazistas em "Fugindo do Inferno". A plateia batia os pés no chão, num ritmo cadenciado que acompanhava o tema principal da trilha sonora do filme - uma espécie de marcha militar.
"A Alma do Negócio" - que acabo de ler "de um folego só" - vai atiçando as lembranças.
Eu me lembro de contemplar, maravilhado, a jarra cheia de Q-Suco de cor vermelha, num canto da geladeira, na cozinha de minha casa. Devia ser de morango. O líquido avermelhado banhava a garganta seca do menino que acabara de chegar da rua, onde disputara uma pelada épica - certamente sonhando que era um jogador do Sport Club do Recife dando dribles fantásticos diante do Estádio da Ilha do Retiro lotado.
Todo sujo de poeira, o menino levava bronca da mãe. Não deveria estar estudando? Deveria, sim. Mas o apelo de uma bola Dente de Leite rolando por uma rua sem asfalto era irresistível. Eu precisava entrar em campo.
A bronca tomou dimensões bíblicas no dia em que o menino resolveu, não se sabe por quê, usar um anel dourado que achara no fundo de alguma gaveta em casa. O anel caiu do dedo numa disputa de bola. Horas e horas de busca, para aplacar o desespero da mãe, se revelaram inúteis. Por algum mistério, a areia engoliu para sempre aquele anel - herança preciosa de algum antepassado do ramo materno da família.
Em nome da fidelidade aos fatos, devo confessar, cabisbaixo, que, na infância, fui um zagueiro terrivelmente medíocre. O sonho de atuar no Estádio da Ilha do Retiro se esfumaçou, é claro.
Por que me lembrei agora destes sonhos extraviados e de anéis perdidos na areia ? A culpa é deste "A Alma do Negócio" - atiçador de memórias.
Eu me lembro de ter recebido de presente do meu avô uma bicicleta Monark chamada Brasiliana 65. Meu avô, José Rodrigues Leite, era uma figura "mítica" na minha infância, porque morava longe. Vivia em Salvador, na Bahia. Quando foi visitar os netos, no Recife, nos inundou de presentes. O meu foi inesquecível: a Brasiliana 65.
Um dia, ao desfilar pela rua, certamente a uma velocidade que desafiava a prudência, a bicicleta foi atingida por um Aero Wills, dirigida por um vizinho. Escapei sem ferimentos. Mas, assustado, meu pai tratou de despachar a bicicleta para a fazenda, no interior. Passei a ver a Brasiliana 65 apenas nos fins de semana.
Por que me lembrei da saga do menino que perdeu a bicicleta? Culpa de "A Alma do Negócio".
Eu me lembro perfeitamente da TV Máscara Negra que minha mãe comprou. A tela era pequena. A TV podia ser transportada de um cômodo a outro, sem atropelos. Ali, eu via meus herois desfilando na programação da tarde: Batman, Nacional Kid, Roy Rogers.
De noite, eu via O Fugitivo. Era meu ídolo absoluto. Torcia para que o fugitivo - o doutor Richard Kimble, injustamente acusado de um crime - não fosse capturado pelo tenente Philip Gerard. Parece que estou vendo: o perseguidor Gerard exibia, sempre, uma feição dura, contrita, implacável. Não ria.
Passei a considerar meus algozes particulares - todos os meus professores de matemática, por exemplo - como réplicas acabadas do tenente Gerard. Tinha certeza de que eram.
Em meus pesadelos, meus professores ( os seja: meus tenentes Gerard ) viviam me perseguindo - com um livro de equações e fórmulas matemáticas indecifráveis nas mãos. Eu, no papel de um mini-Richard Kimble, fugia pelas vielas noturnas do Recife para escapar do terror de ter de estudar matemática.
Por que ressuscitar agora meus pesadelos matemáticos? Culpa de "A Alma do Negócio".
As histórias de Além da Imaginação tiravam o sono do menino. Havia sempre personagens que pertenciam a "outra dimensão". Ou seja: já tinham morrido há tempos, mas, por algum motivo, reapareciam no seriado. A lembrança da trilha sonora lúgubre só reforçava o medo do menino, mergulhado na escuridão do quarto.
Por que diabos fui me lembrar dos personagens de Além da Imaginação? Culpa de "Alma do Negócio".
Faça o teste: é inevitável que este livro desperte, em quem lê, uma viagem fascinante pelo que passou - mas ficou na lembrança.
O Villas cronista consegue fazer uma feliz combinação entre lembrança pessoal e lembrança histórica. Aqui, ele retoma esta fórmula, inesgotável - entre lembranças de anúncios, renascem as memórias de família, memórias de Minas, memórias de infância, memórias de juventude, memórias de hoje, memórias do Brasil.
Faz bem. Afinal, memória nunca foi "coisa de museu". Feitas as contas, a memória é, desde sempre, a velha e bela força que move cada um de nós.
( Texto da apresentação do livro recém-lançado pela Editora Globo )
Posted by geneton at setembro 16, 2014 12:18 PM