DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE A FOME DE IMAGENS. OU: PRÓXIMO FOTOGRAMA, POR FAVOR!
Publicado no site do Estado S.Paulo ( estadão.com.br ), no blog de cinema do crítico Rodrigo Fonseca. Descontada a referência exagerada ao locutor-que-vos-fala na abertura, a entrevista foi uma chance de dizer duas ou três coisas sobre a Geleia Geral Brasileira e sobre a Fome de Imagem:
-----------------------------------------------------------------------------------
A Cinemateca do MAM, na curadoria do crítico Ricardo Cota, exibe um dos títulos mais aclamados da recém-finada Première Brasil: Cordilheiras no Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro, do pernambucano Geneton Moraes Netto – um filmaço com “F”. Laureado com uma menção especial no encerramento do Festival do Rio, há uma semana, o longa-metragem é centrado em uma reflexão histórica (e estética) sobre a aproximação entre o diretor Glauber Rocha (1939-1981) e os militares nos anos 1970. Ícone do telejornalismo, com um rol de entrevistas lendárias em seu currículo, Geneton também tem cinema nas veias, de genes glauberianos, a partir dos quais ele desenvolveu uma linguagem multifacetada entre dança, recital, entrevista e imagens de arquivo, sendo cada um desses vértices alinhavados por uma ironia política das mais vulcânicas.
Em Cordilheiras no Mar, Geneton resgata depoimentos comoventes de autoridades da crítica e da análise cinematográfica (entre eles está um papa do documentário: Jean Rouch) esquadrinhando a vitalidade do pensamento do diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) para a redescoberta da América Latina pelas veias abertas do cinema. “Nossa cultura é a macumba, não a ópera”, diz Glauber no filme, que escalou o ator cearense Cláudio Jaborandy para declamar pensamentos do cineasta mais famoso da Bahia. Aparecem ainda em cena atores como Paulo César Peréio, Ana Maria Magalhães e Aderbal Freire-Filho a declamar ensaios sobre arte e governança. Entre os entrevistados, está a nata do Cinema Novo: Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos e Zelito Vianna. Fala ainda o cantor e compositor Jards Macalé, grande amigo de Glauber.
Na entrevista a seguir para o P de Pop, Geneton fala de suas opções narrativas e de sua conexão com a arte cinematográfica.
De que maneira as conexões e sinapses de Glauber, acerca da movimentação militar nos tempos da ditadura, incendiou os debates sobre liberdade de expressão e sobre preservação ideológica na seara cultural brasileira dos anos 1970?
GENETON MORAES NETO – É claro que um artista como Glauber Rocha não pode – nem deve – ser julgado de acordo com os “cânones” partidários e ideológicos “tradicionais”, porque ele transcende os pobres limites destes territórios. Glauber não existiu para demarcar fronteiras ideológicas, mas para implodi-las. Não por acaso, terminou patrulhado, atacado, pichado, crucificado por ter apostado numa saída possível num momento dramático para o Brasil: não se deve esquecer que o país vivia sob o horror de tempos sufocantes, ali entre o final do governo Médici e o início do governo Geisel. Glauber Rocha teve uma informação privilegiada nos bastidores: nomes emblemáticos da esquerda, como o ex-governador Miguel Arraes e o ex-presidente João Goulart, disseram, pessoalmente, a Glauber que o general Geisel proporia uma espécie de abertura política. O que fez Glauber? Sem as “amarras” partidárias, botou a boca no trombone. Provocou rachas e polêmicas entre a esquerda. Historicamente, ele tinha razão. Não custa lembrar que o ambiente era sufocante. A luta armada tinha fracassado. O que Glauber fez? Apostou num aceno, numa possibilidade de saída para o sufoco. A atitude de Glauber – curiosamente – trazia uma mistura de realpolitik com delírio. Acreditava que militares nacionalistas poderiam ser protagonistas de um projeto político para o Brasil. Como bem lembra um dos entrevistados do nosso documentário, Glauber fez a declaração de apoio ao projeto de Geisel/Golbery na esperança de que houvesse um debate. Mas, como lembra Jânio de Freitas no documentário, não havia clima para debate.
E seria possível associar Glauber a ideologias partidárias?
GENETON – Eu disse que não se pode enquadrar Glauber de acordo em figurinos partidários e ideológicos. Mas quero chamar a atenção para um “perigo”: não se deve olhar para Glauber Rocha como se ele fosse uma entidade à parte e um alienígena. Não! Isso é uma visão equivocada, excludente e pobre. Glauber Rocha era, sim, um grande artista brasileiro – uma inteligência fulgurante, reluzente, incendiária que não cabia apenas no cinema. Fez um bem enorme ao país: com tintas até dramáticas, mostrou como é importante pensar livremente sobre o Brasil, imaginar destinos bonitos, originais e gloriosos para o país. Não é pouco.
Que fascínio Glauber exercia sobre o senhor durante sua formação, nos anos 1970? Como ele influenciou seu desejo de ser cineasta?
GENETON – Como faço coisas para a tevê, de vez em quando me perguntam se meu trabalho como documentarista vem de minha experiência televisiva. É exatamente o contrário. Participei ativamente do movimento do cinema Super-8 do Recife, na segunda metade dos anos setenta. Cheguei a receber prêmios em festivais nacionais. Faz pouco tempo, postei no YouTube alguns desses curtas – como este, realizado no Recife em 1978:
https://www.youtube.com/watch?v=qSzAY2FgzAI
Glauber Rocha era, para mim, um ídolo desde que li, nestes tempos do Super-8, textos como o da Estética da Fome e os ensaios de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Eu me lembro que o exemplar de Revisão… que li estava gasto, com a capa rasgada. O livro, possivelmente, me foi emprestado pelo hoje roteirista Amin Stepple. Era uma espécie de “guru” do nosso grupo. Tinha – e tem – um olhar ferino sobre o estado geral das coisas – inclusive, claro, sobre o cinema. Deixei o Recife em direção a Paris por puro espírito de aventura. Pedi demissão do emprego estável que tinha – por coincidência, a sucursal do Estado de S.Paulo que hoje abriga este blog… Fui repórter da sucursal por cinco anos. Terminei estudando Cinema em Paris. Meu projeto de tese – Cinema e Subdesenvolvimento: o Caso Brasileiro – foi aceito na Universidade de Paris I / Sorbonne. Eu ia usar os filmes de Glauber para discutir o seguinte: um país economicamente subdesenvolvido pode produzir um cinema esteticamente desenvolvimento? Mas descobri que não tinha a menor vocação acadêmica. Jamais enfrentaria a maratona de escrever uma tese. Deixei o curso depois de frequentar os seminários do primeiro ano. O que eu queria era pegar uma câmera e filmar. Minha fome era de imagem.
Como foi seu encontro com Glauber na França?
GENETON – O impacto do encontro que tive com Glauber Rocha em Paris, numa manhã cinzenta de inverno, durante uma sessão especial do filme A Idade da Terra para críticos franceses, foi enorme. Trato do assunto no filme. Glauber reagiu com entusiasmo ao se encontrar, ali, com dois estudantes brasileiros: eu e Marcos de Souza Mendes – que seguiu carreira acadêmica e terminou ensinando cinema na Universidade de Brasília. Eu saí da sessão com fome de cinema. Poucos meses depois, depois de ouvir boatos desencontrados, li no Le Monde a notícia de que ele tinha morrido em Portugal. Fiquei chocado. Desde então, tinha uma dívida comigo mesmo e com Glauber: queria dar um destino a tudo o que pensei em fazer sobre ele ( a tese, o filme etc. etc. ). Fico feliz com o resultado. Cordilheiras no Mar ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival Ibero-Americano Cine Ceará e uma menção honrosa do júri do Festival do Rio. A noite da exibição no FestRio foi mágica. Acontece “uma vez na vida”: lá estavam, na plateia, entre outros, Caetano Veloso, Paulo César Peréio, Othon Bastos, Luiz Carlos Barreto, Ana Maria Magalhães, Ney Matogrosso, o ex-ministro João Paulo dos Reis Veloso, Jaguar, Cláudio Jaborandy (que dá um show particular “encarnando” Glauber Rocha no filme ), Hamilton Vaz Pereira, Helio Eichbauer, Dedé Veloso, Antônio Pitanga, Paloma Rocha e Joel Pizzini (autor do belo curta Mar de Fogo, sobre como Mário Peixoto concebeu o mítico Limite). Minha “dívida” estava paga.
De que maneira, com suas medidas em relação a Golbery, Glauber transcendeu sua condição de artista da imagem?
GENETON – O fogo de Glauber transcendia os limites da tela. Serge Daney, então editor-chefe do Cahiers du Cinema, disse a mim, na entrevista que fiz com ele para a tese que nunca escrevi sobre Cinema & Subdesenvolvimento, que a influência de cineastas como Glauber Rocha não se dá apenas através dos filmes que eles fazem mas também – e principalmente – por atitudes extracinematográficas. É provável que Serge Daney tenha razão. Glauber pensava em política o tempo todo. A capacidade (e, por que não? – a coragem) de pensar sem amarras provoca sempre reações, choques, desconfianças e, no extremo, pedradas. Há uma declaração de Glauber que, creio, resume a gênese do que ele pensava e corrige equívocos dos que, rasteiramente, o acusam de “adesão” aos militares: “A ideologia não me interessa como escapatória ou certificado de boa consciência. Minha ideologia é um movimento contínuo em direção ao desconhecido – o qual não exclui minha luta contra o imperialismo, o fascismo e outras deformações políticas”. O avanço do pensamento progressista não é linear, nunca foi, não pode ser. Pelo contrário: o pensamento progressista brasileiro é movido, também, por atalhos, por aparentes contradições, por delírios, por apostas, por riscos, por mistérios, por sutilezas. Glauber encarnava, em maior ou menor grau, esse caldeirão. É assim que a História se move.
E você, em que grau encarna o caldeirão do cinema?
GENETON – Você pergunta se Glauber marcou minhas “pretensões de ser cineasta”. É claro que marcou. Mas devo dizer que não me considero exatamente um cineasta – no sentido profissional da palavra. Já fiz quatro longas – todos, originalmente, para televisão (Globonews e Canal Brasil), mas realizo meus filmes num “universo paralelo”: não corro atrás de patrocínios, nunca concorri a editais. O orçamento é o básico dos básicos. Se os filmes fossem lançados “comercialmente”, seriam exibidos em “horários alternativos”. Exibidos em tevê, atingem um público que eu não imaginaria alcançar no circuito. Em suma : o que tento fazer, na medida do possível e do impossível, é produzir beleza e memória. Bem ou mal, já registrei em meus documentários os relatos de Caetano Veloso e Gilberto Gil – e também de Jards Macalé e de Jorge Mautner – sobre os tempos de exílio, em Londres (em Canções do Exílio); a palavra do maior repórter brasileiro, Joel Silveira (em Garrafas ao Mar: A Víbora Manda Lembranças); os depoimentos dos onze jogadores brasileiros que perderam a Copa de 50 (em Dossiê 50: Comício a Favor dos Náufragos). Eu me “reconheço” mais nestes documentários do que em qualquer outra coisa que eu tenha feito ou venha a fazer em tevê. Acidentalmente, meus documentários passam na televisão. Faço meus documentários da mesmíssima maneira que faria se eles fossem produzidos para exibição nas salas. O meio não determina a forma nem o conteúdo. A bem da verdade, minha relação com tevê – fora dos documentários – é acidentada. Não sou um bicho televisivo. Nunca fui. Nunca tentei ser. Não é o meu veículo. Nunca foi. A recíproca é verdadeira! A tevê já mandou para o lixo coisas que fiz – uma atrás da outra, em série. Ou seja: a rigor, já recebi meu veredicto. Não quero ser “dramático”. É saudável encarar as coisas como são. Queria ter voltado para a imprensa escrita. Não consegui quando tentei. A época era de crise – como agora, aliás. Como não pude voltar para a “imprensa escrita”, passei a me dedicar com mais frequência aos documentários. E assim vou tocando meu realejo desafinado. É melhor do que nada.
Posted by geneton at outubro 22, 2015 11:51 AM