É hora de fazer uma declaração pensada sob medida para impressionar internautas distraídos :
o blogueiro-que-vos fala uma vez interrompeu a transmissão da novela da oito !
“Não é possível! Não é possível! Aposto um níquel que jornalista algum jamais conseguiria interromper o programa de maior audiência da TV brasileira !” – diz o espírito-de-porco sentado na quinta cadeira à direita de quem entra no Inferno dos Descrentes.
O meu demônio-da-guarda solta um sorriso de escárnio, idêntico aos das bruxas em filmes da Disney: “Consegue, sim ! Consegue,sim ! Basta que a Casa Branca resolva começar uma guerra!”.
Paulo Francis é que dizia:
“Todo jornalista decente é um urubu na sorte dos outros mortais. Ficamos esperando que as pessoas escorreguem numa casca de banana e batam com a cara no chão. Se tudo corre muito bem, para nós é muito mal”.
O grande repórter Joel Silveira ia direto ao ponto:
- Adoro uma guerra!
Aos fatos, pois.
Por uma “conjunção de fatores” que acontece uma vez na vida, eu estava na hora certa no lugar certo para interromper a novela das oito.
A novela se chamava “Meu Bem, Meu Mal”. A data: dezessete de janeiro de 1991. O personagem principal era um tal de Dom Lázaro Venturini, um empresário que, depois de ficar mudo em consequência de um derrame, volta falar no fim da trama, para desmascarar seus inimigos. Lima Duarte era o ator.
Em nome da precisão, diga-se que o blogueiro-que-vos-fala teve dois cúmplices na tarefa de tomar de assalto a novela das oito.
Primeiro cúmplice: o rapaz que hoje é editor-chefe do Jornal Nacional - William Bonner.
Segundo cúmplice: o técnico que estava de plantão, naquele momento, no chamado “controle-mestre” da Rede Globo, no Jardim Botânico. O controle-mestre, como o nome sugere, pode, em situações de extrema gravidade, interromper um programa para que o telespectador seja informado de uma notícia urgente.
A notícia, ali, era urgentíssima : estava começando uma guerra.
Vasculho meu pequeno e precário Museu de Papel em busca de um relato que escrevi a pedido de uma revista, "no calor da hora", sobre o que aconteceu naquela noite na redação Jornal Nacional ( eu era, na época, "editor-executivo" do Jornal Nacional. Minha função: escrever as chamadas e a "escalada" do telejornal - as manchetes que, minutos depois, seriam lidas pelas vozes imbatíveis de Sérgio Chapelin e Cid Moreira. William Bonner, também dono de um vozeirão, apresentava o Jornal da Globo. Eventualmente, substituía um dos dois titulares do JN ).
O relato de 1991:
"Quando o ex-fuzileiro naval Lee Harvey Oswald apertou o gatilho do rifle Mannlicher-Carcano contra a comitiva do presidente John Kennedy, às 12:30 da sexta-feira, vinte e dois de novembro de 1963, Walter Cronkite, a estrela máxima do telejornalismo da rede americana CBS, estava no lugar errado – mas nem tanto.
Se pudesse adivinhar o que iria acontecer, Cronkite teria chegado na véspera a Dallas para, em algum ponto da praça Dealey, viver a aventura com que todo repórter sonha: ser testemunha ocular de um fato histórico. Mas Cronkite nunca foi candidato a Nostradamus.
O despacho que a agência de notícias UPI disparou para as redações exatamente às 12:34 – quatro minutos do atentado, portanto - pegou Cronkite na sala de teletipos de CBS.
O texto do despacho urgente era curto: “Three shots were fired at president Kennedy´s motorcade today in downtown Dallas”
( “Três tiros atingiram a comitiva do presidente Kennedy durante o desfile de carro no centro de Dallas”). Criou-se, claro, um tumulto na redação. Era preciso dar uma edição extraordinária imediatamente.
Cronkite descobriu que teria de esperar dez minutos até que as luzes e as câmeras do estúdio estivessem prontas para levar ao ar a bomba. Acontece que, numa situação dessas, dez minutos significam dez mil anos. É impossível esperar.
A primeira informação foi dada em off, sem a imagem do âncora Walter Cronkite. Não havia tempo de preparar a câmera e a luz
A CBS, então, interrompeu a novela na hora do almoço com um letreiro que anunciava a edição extraordinária. A notícia – que atingiu os Estados Unidos com a potência de um “soco no estômago” em plena hora do almoço – foi dada somente com a voz, sem a imagem de Cronkite no vídeo.
O flash fatal chegou logo depois, pelo telex. Num exercício desesperado de agilidade e precisão, o flash da UPI resumia em três palavras, a uma e trinta da tarde, uma das notícias mais dramática do Século XX: “President Kennedy dead”.
Quando a tragédia se materializou em forma de uma frase, as luzes e câmeras finalmente estavam prontas, na redação da CBS. Somente aí Walter Cronkite pôde aparecer no vídeo. Com voz grave, ele levantou os olhos do pedaço de papel que tinha nas mãos, tirou os óculos e pronunciou em tom solene a notícia que, quem viu, não esqueceu: “President Kennedy died”.
Tempos depois, Cronkite descreveria assim o que sentiu quando teve de ler o primeiro flash – o dos tiros – , em off, sem aparecer no vídeo:
- “Nós tínhamos, ali, uma notícia terrível. Tínhamos de nos mobilizar. Fiquei desapontado ao saber que as câmeras iram demorar tanto para ficar prontas. Mas o fato de termos ido ao ar é o que importa. Nós fomos os primeiros a noticiar. É o que vale”.
Quando a obrigação de informar é urgentíssima, a televisão se transforma em rádio. Se não é possível ter a imagem em questão de segundos, por que não usar apenas o som ?
O fenômeno se repetiu vinte e oito anos depois, na explosão da Guerra do Golfo, um conflito que a tevê transformou em acontecimento planetário em questão de minutos. A chuva de bombas sobre Bagdá foi transmitida, num primeiro momento, apenas com o som da voz dos repórteres da CNN. Ponto. Parágrafo.
Meu nome não é Walter Cronkite, não ganho em dólar, a TV Globo não é a CBS, o Rio de Janeiro não é Nova York, Jardim Botânico não é Manhattan. Mas vivi na pele a certeza de que, numa tevê, não se pode esperar sequer por uma câmera quando se tem uma notícia histórica nas mãos.
O ajuste das câmeras e luzes num estúdio exige minutos adicionais de espera, o que, num caso desses, é fatal na velha briga pelo “furo”. As tevês vivem brigando pelo privilégio de dar as notícias em primeiro lugar. É natural. Não custa nada lembrar que uma das diferenças visíveis entre um telejornalista e uma samambaia é a obstinação em dar notícias inéditas. As outras diferenças não descobri ainda. Continuo tentando.
Quando ouvi o grito de alerta dado diante de um dos terminais de computador da redação pelo editor Aníbal Ribeiro – “a guerra começou!” – disparei pelos corredores com uma velocidade que, modéstia à parte, fez jus ao meu passado de zagueiro central amador na praia do janga, Pernambuco, Brasil.
Se aparecesse ali, naquela hora, o anabolizado Ben Johnson seria reduzido ao papel de tartaruga enferrujada. Não houve tempo de escrever nada. Trancado numa ilha de edição, às voltas com a gravação de um texto para o Jornal da Globo, o apresentador William Bonner ouviu meu grito: “Começou a guerra, porra!”.
Numa “fração de segundo”, ele disparou, também, pelos corredores das ilhas de edição. Invadimos, juntos, a sala onde fica a cabine de locução. A rapidez da equipe técnica de plantão completou o serviço: entre o alerta de Aníbal e a interrupção da novela com a “edição extra” do Jornal Nacional, passaram-se exatos 41 segundos, conforme registram os relatórios de programação que tive o cuidado de consultar depois.
Só tivemos tempo de improvisar um texto que atribuía a informação às agências de notícias. Algo assim: “As agências internacionais acabam de informar que começou o bombardeio de Bagdá”.
A novela das oito estava no ar. Mas não havia tempo de esperar pelo intervalo comercial.
(Dias antes, o então diretor da Central Globo de Jornalismo, Alberico de Sousa Cruz, tinha me perguntado qual o tempo mínimo necessário para botar no ar uma informação. Disse a ele que, numa situação extrema, era o tempo de correr da redação para a cabine. É o que terminou acontecendo….).
A revista ISTOÉ teve o cuidado de cronometrar a corrida. O plantão do Jornal Nacional foi ao ar dois minutos antes da emissora que tirou segundo lugar na batalha contra o relógio.
Numa hora dessas, quando acende o pavio de uma bomba que vai explodir diante dos olhos do telespectador, a TV cumpre o papel que o tantas vezes citado Marshall McLuhan descrevia: se o rádio é a extensão do ouvido e o cinema é a extensão do olho, a teve “é a extensão do sistema nervoso central dos telespectadores”.
É uma evidência científica indiscutível : quando o mundo vem abaixo, quando um louco atira na cabeça de um presidente, quando uma “chuva de bombas” desaba sobre Bagdá, o telejornalismo é C9H13N03 - a fórmula da adrenalina pura".
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( Faço uma busca rápida no Youtube. Termino encontrando a abertura do Jornal Nacional do dia seguinte - as primeiras notícias sobre a Guerra do Golfo:
https://www.youtube.com/watch?v=LPRy5sQxMRw )