Um belo dia, você, coberto de trapos, com a voz trêmula, apoiado num cajado comprado em Islamabad, tentará reunir jovens aspirantes ao jornalismo à sombra de uma árvore, numa cidadezinha do interior do Brasil, para contar vantagem a eles.
Ninguém prestará atenção, é claro. Você,então, se dirigirá para o melhor de todos os ouvintes : o vento (acabo de cometer uma injustiça : o melhor de todos os ouvintes é a parede. Mas tudo bem).
Contar vantagem para o vento e as paredes é o que faz todo dinossauro que se preze. Você, íntimo do vento e das paredes, segue adiante.
Tenho uma vantagem a contar : já vi um jogo da seleção brasileira, diante da TV, em companhia do grandesíssimo cronista Nélson Rodrigues. Detalhe : um minuto antes do começo do jogo, Nélson Rodrigues não sabia contra quem a seleção ia jogar. Quando a TV repetiu um gol da seleção, ele pensou que o placa já estava dois a zero.
Assim:
"Nélson parece distante da disputa que se desenrola,ali,diante de nós,no vídeo da TV,entre a seleção brasileira e o escrete peruano. Faz ao repórter uma pergunta incrível : “Quem é o nosso adversário hoje ? “. Informo que é o Peru.
Fique registrado para a posteridade que o maior cronista do futebol brasileiro não precisava necessariamente saber quem era nosso adversário.
Quando Zico faz um a zero,aos trinta e quatro minutos do primeiro tempo,Nélson interrompe a entrevista para inaugurar,aos brados,uma nova expressão exclamativa :
- Que coisa beleza ! Que coisa beleza !
Depois,pede à família : “Pessoal,com licença dos nossos visitantes,vamos fechar essa máquina porque já estou começando a ficar nervoso”. Aos não iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, esclareça-se que “fechar a máquina” significa desligar a televisão – o que,aliás,não foi feito. Nélson dispara,então,um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigido por Cláudio Coutinho :
- Mas esses rapazes são uns gênios ! Uns gênios !
O repórter seria novamente surpreendido. Nélson já perguntara quem era “nosso adversário”. Agora,ao ver o replay do gol recém-marcado, toma um susto : “Mas já houve dois gols ? “. Digo a ele que não : é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah,sim !”. Teria dois outros motivos para vibrar : o mineiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes - faria dois gols,aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo,para fechar o placar : Brasil 3 x O Peru.
(Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nélson Rodrigues teria escrito sobre o jogo que eu não o deixara ver ? Eis :
- Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz.Mas não quero ter fantasias esplêndidas.O jogo Brasil x Peru,ontem,no Mário Filho,não assustou a gente.Diz o nosso João Saldanha : “O Brasil fez seu jogo,jogo brasileiro”. Vocês entendem ? Não há mistério.O brasileiro é assim.Quando um de nós se esquece da própria identidade,ganha de qualquer um.Outra coisa formidável : na semana passada,um craque nosso veio me dizer : “Nélson,é preciso que você não se esqueça : ao cretino fundamental,nem água”. O jogo foi lindo”.
Penso com meus botões que Nélson não precisou esperar pelo início do jogo para escrever a crônica. Com certeza, despachou o texto para o jornal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotas da objetividade” se encarregariam de registrar,nas páginas esportivas,o jogo real. Porque o jogo de Nélson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos fundamentais ? "Aos cretinos fundamentais, nem água".
(Aqui, o texto completo: http://www.geneton.com.br/archives/000012.html)