DICA DE LEITURA: "AFINAL, O QUE VIEMOS FAZER EM PARIS ?" ACABA DE CHEGAR ÀS LIVRARIAS
Acaba de sair do forno uma delícia de livro. Título: "Afinal, o que Viemos Fazer em Paris ?". Autor: Alberto Villas. Editora: Globo. Para quem não ligou o autor à obra: Alberto Villas, jornalista, revelou-se um memorialista "de mão-cheia" em "O Mundo Acabou". Ali, ele mistura memória pessoal com memória social com talento, leveza, humor - e competência.
Agora, em "Afinal, o Que Viemos Fazer em Paris", ele parte para uma nova empreitada memorialística sobre um período riquíssimo que viveu: um exílio voluntário em Paris, a partir do início dos anos setenta, época em que os militares diziam para o Brasil o que o Rei da Espanha disse para o presidente da Venezuela outro dia: "Por que não te calas ?".
O projeto gráfico do livro é um show. Os textos, divididos em blocos, fluem sem atropelo. Bom livro, afinal de contas, é o que dá prazer de ler. "Afinal, o que Viemos Fazer em Paris? " dá. É o que basta. Comecei a ler. Não dá vontade de parar.
O livro funciona como uma "madeleine", aquele gatilho que desperta imediatamente uma fileira de lembranças. Em um minuto, volto no tempo para 1980, ano em que o locutor que vos fala embarcou, também em "exílio" voluntário, rumo a Paris.
Eu me lembro do primeiro choque térmico e cultural: um amigo - que morava com a namorada australiana no terceiro andar de um prédio em ruínas desprovido de chuveiro num ruela sem movimento - organizava, uma vez por semana, uma "expedição" rumo aos chuveiros públicos. Íamos a pé. Cada um levava uma toalha, o sabonete, o desodorante e uma muda de roupa embrulhados num saco plástico. Lá, em troca de um punhado de francos, o forasteiro podia tomar banho cronometrado: dez minutos depois de ligado o chuveiro, o fiscal batia na porta para avisar que chega, a fila estava grande, era preciso dar lugar ao africano que esperava a hora de mergulhar na ducha.
Eu me lembro de Manoel, um brasileiro que passava doze horas por dia trancado num quarto insalubre de hotel tocando num fagote as Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos. Uma vez, ele bateu na porta do meu quarto de madrugada para avisar que conseguira o grande feito: tinha finalmente descoberto como fazer os telefones públicos da Place D´Italie ligarem de graça para o Brasil. Corremos para as cabines telefônicas na madrugada gelada. Passamos seis horas usando o orelhão. Só saímos quando o dia amanhecia. Merci bien, France Telecom! Deus te pague! Um brasileiro descarado ainda tentava teorizar sobre o absurdo que cometíamos nas cabines telefônicas : "Os países ricos vivem explorando o Terceiro Mundo. É hora de a gente receber alguma coisa de volta!".
Eu me lembro de ter visto Bob Dylan cantando "Like a Rolling Stone" num estádio enquanto um grupo de holandeses incendiava os pulmões de haxixe a um passo de onde eu estava, no meio do gramado, assustado com a desfaçatez. A polícia não notou a fumaça dos holandeses. Gravei imagens mudas e tremidas de Bob Dylan com uma câmera Super-8. Nunca as usei para nada.
Eu me lembro de ter visto Pelé dando a volta olímpica no estádio para agradecer o título de Atleta do Século, antes de um jogo da seleção brasileira contra a da França. O Brasil ganhou.
Eu me lembro de ter testemunhado a aparição de um Glauber Rocha com rosto inchado e cara de sono, numa sala de cinema perto da Gare de Lyon, para uma sessão privê de A Idade da Terra, numa manhã de sábado de inverno.
Eu me lembro de ter olhado com algum deslumbramento para o festival de pichações políticas nas paredes da Universidade de Nanterre, no meu primeiro dia de aula de um curso de Cinema que jamais concluí. Uma das pichações mais visíveis convocava: "Aliste-se no Partido Comunista!". Naquela época, o Partido Comunista ainda era clandestino no Brasil. Eu nunca tinha visto algo assim numa universidade brasileira. Pensei: "Democracia!".
Eu me lembro de um brasileiro que não sabia quase nada de francês comentando, espantado, que nunca tinha visto tanta escola de garçom como em Paris. "Não é à toa que os restaurantes franceses são tão badalados. Com tanta escola de garçom desse jeito...". O brasileiro só não sabia que aquilo era Escola para Meninos ( "garçons", em francês). Nada a ver com garçom de restaurante.
Eu me lembro de ter arranjado dois empregos, ambos, claro, clandestinos: o primeiro como camareiro de um hotel numa rua chamada Champollion, ao lado da Sorbonne, no coração do Quartier Latin. Era duro fazer vinte e seis camas nos dias azuis de verão, em que o hotel ficava lotado de americanos e japoneses que comiam pão nos quartos e, para meu desespero, espalhavam farelo pelo carpete, o que exigia um trabalho extra com o aspirador de pé.Uma semana depois de me aceitar como camareiro, o dono de hotel, um homem chamado Ortega, fez uma confissão inconfessável: disse-me que, se o hóspede só passasse uma noite no hotel, eu não deveria trocar o lençol da cama. Bastava inverter o lado do lençol, esticá-lo ao máximo para dar ao próximo hóspede a impressão de limpeza e pronto. O dono queria economizar energia da máquina de lavar. O segundo emprego foi como motorista de uma família rica que tinha um filho "excepcional", Douglas. Já era um rapaz. Não falava nem andava. Meu trabalho era embrulhar Douglas num saco de dormir para protegê-lo do frio, carregá-lo nos braços dentro de um elevador minúsculo e levá-lo de carro até a um hospital que ficava a uns quarenta minutos de Paris. A rua em que a família morava se chamava Yvette. O metrô: Jasmin. Nem carteira de motorista internacional eu tinha. Só a brasileira - que não valia na França. Um dia, a polícia se aproximou do carro. Gelei até a alma. Mas, quando viram o menino, os guardas se retiraram, sem nos importunar. Intimamente, eu vibrava: "Deus é brasileiro!". Se um guarda cismasse de me pedir a carteira de motorista, era problema na certa.
Eu me lembro de ter visto um bêbado anunciando, sozinho, para os frequentadores de um café, perto do Boulevard Saint Michel : "O grande ator americano Steve McQueen morreu!". O bêbado tinha acabado de ler a notícia num jornal. Eram sete da manhã. Eu estava lá para tomar um café apressado, porque pouco depois teria de me apresentar à "Prefeitura de Polícia" para tentar renovar meu visto. Fiquei lembrando das velhas sessões no Cinema da Torre,no Recife: a platéia batia palmas a cada vez que Steve McQueen escapava de soldados nazistas.O filme se chamava "Fugindo do Inferno". Agora, um bêbado me dava a notícia de que o meu ídolo das matinês estava morto.
O café estava mergulhado em fumaça. Lá fora, fazia um frio de rachar. Era novembro, se não engano.
Eu sabia o que estava fazendo em Paris: sem imaginar, tinha viajado doze horas de avião para, meses depois, ouvir um bêbado me dizer que Steven McQueen tinha morrido. C´est la vie.
O que é que o livro "Afinal,o que Viemos Fazer em Paris? " tem a ver com essas cenas todas ?
Tudo e nada. Livro bom é o que acende um rastilho de lembranças. É o que a nova investida memorialística de Villas acaba de fazer.
Bola na rede.
Posted by geneton at novembro 14, 2007 12:30 PM