setembro 07, 2009

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

GRANDE POETA E PÉSSIMO PROFETA, DRUMMOND SE CONFESSA AO TELEFONE: “SOU UMA PESSOA TERRIVELMENTE CORAJOSA, PORQUE NÃO ESPERO NADA DE COISA NENHUMA”

Repórter existe para incomodar os outros. Ponto. Parágrafo.

A vocação para a inconveniência é defeito de fábrica. Vem no DNA. É caso perdido. Não há como corrigir, portanto.

Feita esta constatação, declaro: eu deveria cumprir dez anos de desterro por ter incomodado consistentemente o maior poeta brasileiro.

Repórteres em busca de declarações não deveriam perturbar a reclusão do autor de versos como “Consolo na Praia” :

“Vamos, não chores…

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu

(…) Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis casa, navio, terra.

Mas tens um cão.

(..) A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento…

Dorme, meu filho”

Ah, não, nem se discute. Fica decretado que o autor do poema “Hino Nacional” definitivamente não merecia ser importunado por repórteres que gastam a vida garimpando frases alheias :

“Precisamos descobrir o Brasil !

Escondido atrás das florestas,

com a água dos rios no meio,

o Brasil está domindo, coitado.

Precisamos colonizar o Brasil.

(…) Precisamos adorar o Brasil!

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão

no pobre coração já cheio de compromissos…

se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,

por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos”

Eu me penitencio. É óbvio que um repórter cometeria um pecado se pegasse o telefone para tentar extrair, a golpes de gravador, um punhado palavras de um poeta que já tinha oferecido ao Brasil versos como os de “América”:

“Sou apenas um homem.

Um homem pequenino à beira de um rio.

Vejo as águas que passam e não as compreendo

(…) Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.

O rosto denuncia certa experiência.

A mão escreveu tanto – e não sabe contar !

(…) Sou apenas o sorriso

na face de um homem calado”

Mas….o repórter-que-vos-fala confessa que perseguiu Carlos Drummond de Andrade – logo ele, o monumento que preferia se fechar “em copas”.

Usar o telefone. Era este o caminho das pedras para os repórteres que quisessem romper o muro de silêncio que o maior poeta brasileiro ergueu diante de si

O segredo para abordá-lo , com sucesso, era só um : usar o telefone como arma.

Atenção, pesquisadores de curiosidades zoológico-poéticas : o apartamento 701 do prédio número 60 da rua conselheiro Lafayette, em Copacabana, era palco diário de uma cena esquisita. Lá,um urso polar adorava falar ao telefone.

Desde que virou uma quase unanimidade nacional, Drummond ergueu em torno de si uma couraça para se proteger das investidas do mundo exterior. Era o exemplo acabado do mineiro arredio. Usava uma suposta timidez – desmentida por amigos íntimos – para manter longe de si, na medida do possível, as incoveniências da celebridade, descritas nos versos amargos do poema “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz” :

“Ah,não me tragam originais
para ler,para corrigir,para louvar
sobretudo,para louvar (….)

Respeitem a fera.Triste,sem presas,é fera”

Durante décadas, Drummond fugiu dos pedidos de entrevista. Preferia repetir a resposta-padrão : tudo o que tinha a dizer estava em seus poemas e crônicas. Mas mantinha um flanco aberto : o telefone.

Amigos chegaram a definir Drummond como um “ser telefônico”. Ziraldo escreveu que Drummond era “ao telefone, um derramado, com uma voz entre rouca e afunilada, meio tênue e fina, com a respiração difícil como quem tem desvio de septo”.

O “urso polar” cultivava esta pequena esquisitice : sempre que podia, fugia do contato pessoal, mas se mostrava surpreendentemente acessível a investidas telefônicas de intrusos como, por exemplo, este repórter-que-vos fala.

Quando era um dos editores do Jornal da Globo, cultivei, pelos idos de 1986, o hábito de incomodar o poeta pelo telefone,em busca de declarações que eram transformadas, no ar, em frases que exibiam a assinatura de Drummond.

“Não sou filólogo, não sou professor, não sou gramático.Sou um leigo em língua portuguesa”, disse-me o poeta Drummond. O caminho estava aberto para a abordagem : setenta e seis perguntas por telefone

O poeta jamais se esquivou de fazer rápidos comentários. A uma pergunta sobre o que pensava de uma reunião de professores de países de língua portuguesa em Lisboa para discutir uma proposta de unificação ortográfica, Drummond – tido como um dos maiores poetas já produzidos pela língua portuguesa – deu uma resposta tipicamente drummondiana :

- “Considero-me um usuário, não o proprietário da língua. Não sou filólogo, não sou professor, não sou gramático. Sou um leigo em língua portuguesa”.

Tive a chance de entrevistar outro gigante da poesia brasileira, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, sobre a idiossincrasia telefônica de Drummond :

- “Era uma coisa engraçada : pessoalmente,ele falava menos” – constatava Cabral. “Mas tinha uma conversa longuíssima ao telefone. Quer dizer : quanto mais longe a pessoa, mais afetuoso ele era. Tenho a impressão de que ele não gostava era do contato físico”.

O telefone terminou se transformando no caminho das pedras para a obtenção daquela que seria uma das maiores entrevistas já concedidas por Drummond, em julho de 1987.

Dezessete dias depois , o coração do poeta, já abalado por dois enfartes, parou de bater. Resultado: a entrevista gravada por telefone terminou se tornando uma espécie de testamento de Carlos Drummond de Andrade.

Ao todo, Drummond respondeu a setenta e seis perguntas que lhe fiz por telefone, em duas sessões. Transcrita, a gravação da entrevista rendeu cerca de duas mil linhas datilografadas. A íntegra foi publicada no “Dossiê Drummond” ( há os que se queixam de que repórteres não devem ficar trancafiados na redação diante de um telefone. Mas a experiência prova: investidas telefônicas podem dar grandes resultados, é claro. Por que não? ).

Duas semanas antes de morrer, Carlos Drummond de Andrade disse, a este repórter, que, em duas décadas, seus versos estariam esquecidos : “Ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”. A profecia estava errada.

As palavras do urso polar ficam. Diga-se que, em suas confissões telefônicas, o grande poeta revelou ser um péssimo profeta. Cometeu um monumental erro de avaliação : disse que, em duas décadas, estaria esquecido. Não foi. Não será. Errou feio.

Era um grandesíssimo poeta ? Era. Cometeu versos perfeitamente dispensáveis no fim da vida ? Cometeu. Era tão bom cronista quanto poeta ? Não era. Distribuiu elogios a torto e a direito ? Distribuiu, por gentileza. Mas o que fica, é claro, é a obra.

Versos como os de “A Máquina do Mundo”, obra-prima não tão conhecida quanto deveria, vão durar tanto quanto o mármore. Vai passar uma eternidade antes que alguém os iguale – em beleza, em brilho, em ouriversaria poética.

Em “A Máquina do Mundo”, o poeta tem a chance de decifrar o mistério do mundo numa caminhada de fim de tarde por uma estrada pedregosa de Minas. Mas dispensa a oferta. Prefere seguir a caminhada, solitário. Nada tão drummondiano. O final do poema:

“A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo

enquantio eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas”

Recolho um possível decálogo de nossa entrevista :

1
”Não tenho a menor pretensão de ser eterno.Pelo contrário : tenho a impressão de que daqui a vinte anos – e eu já estarei no cemitério São João Batista – ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”.

2
”A solidão em si é muito relativa. Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos ,uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler nunca está solitária, nunca estará sozinha. Terá sempre uma companhia : a imensa companhia de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”.

3
”Não fiz nada organizado. Não tive um projeto de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso. Não houve nenhuma programação. Por outro lado, não tendo tido nenhuma ambição literária, fui poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético”.

4
”A popularidade nada tem a ver com a poesia. A popularidade pode acontecer. Mas um grande poeta pode também passar despercebido”.

5
”Tive apenas o desejo de exprimir minhas emoções. Eu sentia necessidade de que eles se soltassem ; era um problema mais de ordem psicológica do que de outra natureza”.

6
”O jornalismo é uma forma de literatura. Eu,pelo menos,convivi – e mil escritores conviveram- com uma forma de jornalismo que me parece muito afeiçoada à criação literária : a crônica”.

7
“O que lamento é que as novas gerações já não tenham os estímulos intelectuais que havia até trinta ou quarenta anos passados. As pessoas que sabiam escrever a língua se destacavam na literatura e nas artes em geral. Hoje em dia,há escritores premiados que não conhecem a língua natal”.

8
”Sou uma pessoa terrivelmente corajosa, porque não espero nada de coisa nenhuma”.

9
”Considero-me agnóstico. Sou uma pessoa que não tem capacidade intelectual e competência para resolver o problema infinito que é se existe ou não existe uma divindade”.

10
”Minha motivação foi esta : tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo”.

Posted by geneton at setembro 7, 2009 09:41 PM
   
   
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