outubro 21, 2009

DÚVIDA REAL: POR QUE SERÁ QUE OS CARRASCOS GOSTAM TANTO DE FLORES ? (OU: O DIA EM QUE O BLOGUEIRO FOI “ENFORCADO” PELO ÚLTIMO CARRASCO DA INGLATERRA)

O carrasco entra na sala com a corda usada para executar os condenados à morte. Dirige-se até o local onde estou. Sem pronunciar uma palavra sequer, passa a corda em volta do meu pescoço.

Era só o que faltava: eis-me aqui, a nove mil quilômetros de casa, com uma corda no pescoço, diante de um carrasco de olhar pétreo.

A cena, como diriam jornalistas tombados pelo patrimônio histórico, “é rigorosamente verdadeira”. Há evidências documentais: uma câmera, ligada diante de nós, documenta tudo. O cinegrafista Paulo Pimental comtempla o ritual, embevecido.

Socorro.

Em nome do respeito aos fatos, devo declarar que o carrasco enrosca a corda no pescoço da pretensa vítima com a delicadeza de um cirurgião empunhando um bisturi. As sobrancelhas da fera estão levemente arqueadas. As feições são sóbrias, como convém a um carrasco – mas vislumbro um esboço de sorriso na interseção esquerda entre o lábio superior e o inferior de Syd Dernley.

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Syd Dernley : o último carrasco inglês "enforca" o blogueiro (Imagem: Paulo Pimentel/TV Globo)

É assim que ele se chama: Syd Dernley, o último carrasco inglês. Quando trabalhava a serviço de Sua Majestade, a tarefa de Dernley era executar,na forca, os infelizes que tinham sido condenados à morte.

Por dever de ofício, Syd Dernley passou a corda no pescoço de vinte e oito condenados. Segundos depois, eles estavam dependurados no cadafalso, inertes. Um médico entrava em cena para confirmar o que já se sabia: o coração do condenado tinha parado de bater. Próximo da fila, por favor.

Enquanto Syd passa a corda em meu pescoço, para fazer o que chama candidamente de “demonstração”, fico imaginando que a última imagem que os condenados à morte guardaram em suas retinas fatigadas foi exatamente esta: o olhar pétreo do carrasco. Depois, a escuridão se abatia sobre eles – primeiro, em forma de um capuz que lhes encobria a cabeça. Depois, vinha o apagão irrevogável.

Desde que se aposentou, o carrasco tornou-se um velhinho pacato – e excêntrico. Vivia em Mansfield, no interior da Inglaterra, em companhia da mulher, Joyce.

O ceifador de pescoços passava horas e horas cuidando do jardim. Fez questão de demonstrar, diante das lentes do cinegrafista Paulo Pimentel, a destreza com que cuidava de crisântemos, dálias e orquídeas (anos depois, no Texas, eu descobriria que o carrasco americano encarregado de executar os presos com a injeção letal era também um apaixonado por jardinagem, a ponto de manter uma página na internet sobre o tema. Que estranho fascínio será este, o das flores sobre o coração dos carrascos ?).

Além de cuidar das flores, Syd adorava reviver detalhes das execuções: dizia que jamais se esqueceu do prisioneiro que caminhou para a forca entoando um cântico religioso. O carrasco começa a cantar diante de mim, com surpreendente afinação: “Jesus, dono de minha alma, acolhe-me em teu reino…”. Depois, produz um som para reproduzir o ruído provocado pelo pescoço das vítimas se quebrando na hora da execução : “Faz assim: click!”.

Como se fosse uma criança orgulhosa de seus brinquedos favoritos, Syd tinha preparado uma surpresa para mim e para o cinegrafista: depois de pedir licença, desapareceu da sala. Quando voltou – com as sobrancelhas arqueadas e um sorriso traquinas -, trazia a réplica em miniatura de uma forca! Um boneco de madeira representa o condenado. Syd aciona a pequena alavanca que abre o cadafalso. O boneco cai. O carrasco contempla, embevecido, a mini-execução.

A surpresa maior viria depois: Syd traz para a sala uma corda grossa, idêntica à usada nos enforcamentos. É esta a corda que ele enrosca em meu pescoço agora, para mostrar com exatidão em que posição o nó deve ficar no pescoço do infeliz. O baú de horrores do carrasco tinha, também, uma coleção de fotos dos carrascos nazistas enforcados no Tribunal de Nuremberg.

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Syd Dernley : exímio enforcador ( Imagem: Paulo Pimentel/TV Globo)

O que leva um homem a escolher a profissão de carrasco como ganha-pão ? Syd Dernley me diz que resolveu se candidatar ao posto simplesmente porque, quando jovem, adorava ler histórias policiais. Se um dia passasse a habitar aquele território – povoado por corredores lúgubres, acusações, imprecações, juras de inocência, celas, manchetes de jornais – teria a chance de “ver de perto” os grandes nomes da crônica policial. Conseguiu.

Como se quisesse dar um toque extra de excentricidade a uma biografia já abarrotada de fatos incomuns, ele informa que, desde os onze anos de idade, já tinha tomado a decisão de abraçar a profissão de carrasco dos pescoços alheios.

O ritual da execução, diz-me o carrasco, é rapidíssimo: pode durar apenas dez segundos. O prontuário de Dernley registra um recorde mundial: a execução de um preso durou apenas sete segundos. Bastaram sete segundos para que o condenado fosse tirado da cela, levado ao cadafalso, encoberto com um capuz e lançado no vazio, com uma corda amarrada ao pescoço.

Ah, um detalhe intrigante: as gravatas de Syd Dernley traziam o desenho de uma forca.

Há uma mancha no currículo do carrasco: em pelo menos um caso, um dos homens que ele executou era inocente. Chamava-se Timothy John Evans. Acusação: teria assassinado a mulher e a filha de um ano de idade, por estrangulamento. Cinco anos depois, o autor dos crimes apareceu: John Holliday Christie. O drama virou um belo filme: “O Estrangulador de Rillington Place”, com Richard Attenborough. Mas o carrasco não dá o braço (nem o pescoço) a torcer: jura que Evans tinha sido,no mínimo, cúmplice dos crime.

Desde que a pena de morte foi abolida na Inglaterra, em 1965, Syd Dernley tornou-se uma figura esquisita: O carrasco passou a vida defendendo a forca como o melhor método de execução. Dizia que ficava sinceramente horrorizado com “métodos terríveis como a cadeira elétrica ou a injeção letal” ( As fitas de nossa longa entrevista estão preservadas. Um dia, pretendo publicar em livro nossos edificantes diálogos : um repórter que veio de longe com um carrasco que adorava o ofício de enforcar. C´est la vie).

Finda a explanação sobre os enforcamentos, ele, britanicamente, nos oferece um chá. Faz questão que a gente prove o líquido esverdeado.

Syd Dernley, um dos mais fascinantes e esquisitos personagens que já tive a chance de conhecer, morreu de um ataque cardíaco fulminante, no dia primeiro de novembro de 1994, três anos depois de nossa entrevista. Era véspera do nosso Dia de Finados. Dernley não esperou : partiu um dia antes, aos 73 anos de idade. Não quis dar este gosto à Grande Ceifadora.

Ah, o chá que ele nos serviu tinha gosto de erva cidreira.

Posted by geneton at outubro 21, 2009 08:34 PM
   
   
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