outubro 26, 2009

MILVINA DEAN

SURPRESA : ÚLTIMA SOBREVIVENTE DO TITANIC NÃO BEBIA ÁGUA. E QUASE CHEGOU AOS CEM ANOS DE IDADE…

O que não se faz por uma boa imagem para a televisão…

O locutor-que-vos-fala confessa, diante deste tribunal, que foi co-autor de um pequeno atentado contra a integridade física de uma quase nonagenária ( já, já, os detalhes).

“Vergonha ! Vergonha!” - dedos inquisidores apontariam em minha direção. “Como é que se faz uma coisa dessas ?” – gritaria o ocupante da penúltima fila do teatro de beira de estrada onde enceno meu espetáculo mambembe.

A meu favor, devo declarar que a causa era nobre – e o atentado foi involuntário, é claro. A “vítima” não era uma figura qualquer : era a mulher que, com o tempo, se transformou na única sobrevivente do Titanic. Dos 702 passageiros que conseguiram sair com vida do inferno no alto mar, em 1912, Milvina foi a última a morrer. Conseguiu chegar ao ano de 2009 ( Milvina ostentava também o título de mais jovem passageira a embarcar no Titanic: nascida em Londres em fevereiro de 1912, tinha apenas nove semanas de vida no dia da tragédia. Viveu até o dia 31 de maio deste ano. As cinzas foram jogadas ao mar neste fim de semana, quase cinco meses depois da morte de Milvina, portanto).

Eu me lembrei do “atentado” que cometi contra a sobrevivente do Titanic ao ler a notícia de que cinzas de Milvina Dean foram lançadas ao mar, na Inglaterra, no exato ponto de onde o navio zarpou para a fama e a tragédia, em 1912.

Tive a chance de gravar uma entrevista com Milvina Dean no mesmíssimo local agora usado como cenário para a última homenagem a ela : o porto de onde o Titanic partiu para a viagem que nunca chegou ao fim -entre a Inglaterra e os Estados Unidos.

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Milvina Dean : a última sobrevivente sai de cena aos 97 anos

Um detalhe inacreditável : a sobrevivente do Titanic me disse que, por uma espécie de idiossincrasia familiar, não bebia água. A mãe,a avó e uma tia também não bebiam. As três morreram perto dos cem anos. Milvina chamou atenção para o caso de uma tia-avó – que, sem beber água, vivera até os noventa e sete anos. Incrivelmente, Milvina Dean morreria com noventa e sete anos, a mesma idade da tia que lhe servia de exemplo. Não bebiam água, segundo ela, mas consumiam, é claro, outros tipos de líquido : sucos, refrigerantes, vinho e, pelo menos no caso de Milvina, copos ocasionais de bebidas mais apimentadas.

Eis o que meus arquivos implacáveis guardam sobre o encontro com esta personagem que passou a vida perseguida pela sombra do Titanic:

Quando chegar o dia do Juízo Final, este pobre jornalista brasileiro confessará diante do Criador: quase matei de frio a mais jovem sobrevivente do Titanic.

Como ? Quando ? Onde e por quê ?

Aos fatos, pois: desembarquei no porto de Southampton, na Inglaterra, num dia gelado de inverno, em companhia do cinegrafista Sérgio Gilz, para um encontro marcado com Milvina Dean.

Aos não familiarizados com a crônica das tragédias marítimas, diga-se que Milvina Dean foi manchete dos jornais no já remotíssimo ano de 1912. A façanha involuntária de Milvina: ter escapado do naufrágio do Titanic. Milvina – um bebê de colo – se salvou porque a mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas. O pai afundou junto com o navio.

Compreensivelmente, Milvina passou a ouvir a história do Titanic desde que se entende por gente. Quando tinha oito anos, ouviu da mãe um relato completo sobre tudo o que aconteceu. Por razões óbvias, passou a se interessar pela história do naufrágio.

Passou a ser abordada a cada aparição pública pela legião de excêntricos que vivem à procura de personagens direta ou indiretamente ligados à história do mais famoso desastre marítimo de todos os tempos. Para quem não sabe: funciona na Inglaterra uma certa Titanic Society – uma espécie de clube que reúne fanáticos de carteirinha pela história do Titanic. Aceitam-se sócios de qualquer país.

Depois de obter um contato com Milvina Dean através da assessora de um museu marítimo que organizara uma exposição sobre o Titanic, partimos rumo a Southampton. O encontro ficou marcado para o restaurante de um hotel – um local confortável para quem, como Milvina, carrega sobre os ombros o peso de quase nove décadas de vida.

A caminho do hotel, decidimos percorrer o cais do porto de Southampton, em busca do local exato de onde o Titanic partiu para a viagem que não teve volta, em direção a Nova York. Um guarda indicou o ponto em que uma pequena placa de bronze foi afixada para marcar o mais notório acontecimento já registrado na história do porto de Southampton. Vindas do mar, lufadas de vento gelado fariam um pingüim reclamar do incômodo do frio. Era janeiro.

Não resistimos à tentação de convidar Milvina Dean para uma visita ao local de onde partiu o Titanic. Partimos, finalmente, em direção ao hotel. Com a esperada “pontualidade britânica”, ela desembarcou do carro de um amigo – sapeca e bem-humorada. Parecia velhinha de filme inglês. Fizemos o convite: e se ela fosse com a gente ao local de onde o Titanic zarpou? Milvina disse sim. Nossa mini-caravana seguiu de volta ao porto.

Gravamos a entrevista com Milvina Dean no cenário dos sonhos: a mais jovem sobrevivente contemplando o mar exatamente no local em que começou uma saga que até hoje atrai a curiosidade de multidões no mundo todo (é só checar os números da bilheteria do filme Titanic, mega-sucesso de Hollywood).

A viagem do Titanic começou no dia 10 de abril de 1912. Quatro dias depois, no fim da noite do dia 14, o navio se chocou contra um iceberg. A madrugada seguinte foi de pavor. Quando o dia amanheceu, o gigante estava no fundo do mar. Havia 2.223 passageiros a bordo. Número de mortos: 1.517. Setecentos e seis escaparam.

Quando se aproximava o final da entrevista, Milvina – sempre com uma das mãos na cabeça, para evitar que o chapéu, levado pelo vento, fosse enfeitar o mar de Southampton, tal qual o Titanic fizera em 1912 – começou a se queixar dos rigores da temperatura.

“Eu estou ficando azul de frio”, disse. A mulher que já contava, no currículo, com dezenas de invernos, não iria reclamar à toa. Por precaução, decidimos escoltá-la de volta ao hotel, num carro devidamente aquecido. Não queríamos correr o risco de matar de frio a passageira que, nove décadas atrás, escapara de um infortúnio maior que o de ser importunada por repórteres brasileiros num dia gelado de inverno.

Enquanto o vento soprava gelado, gravamos a entrevista. Trechos foram ao ar no Fantástico. Eis a íntegra:

Qual é a grande pergunta que ficou sem resposta sobre o Titanic?

“A pergunta que sempre me faço é a seguinte: por que será que o navio navegou em direção a um iceberg? Penso freqüentemente sobre este detalhe: o capitão sabia da existência de icebergs na região? O navio estava na rota errada? Eu me pergunto por que o desastre aconteceu. Mas acho que jamais terei uma resposta”

A senhora ficou satisfeita com as respostas que obteve até hoje?

“Nunca houve uma resposta apropriada. Ninguém sabe com exatidão por que o Titanic afundou. Não sei se adianta perguntar: o que fez o Titanic ir em direção aos icerbergs?

O que aconteceu exatamente com a família?

“Meu pai morreu. Afundou junto com o Titanic. Meu irmão – que tinha menos de dois anos de idade – se salvou, junto com minha mãe e eu. O meu pai ouviu um barulho na noite do desastre. Correu para o convés, para ver o que é que tinha acontecido. Disseram a ele que, aparentemente, o navio tinha batido num iceberg. O melhor seria ir com as crianças para o convés. É o que minha mãe fez.

Minha mãe conseguiu um lugar no barco salva-vidas de número 13. Eu – que era pequena demais para usar coisas como coletes – fui embrulhada numa espécie de saco. O pior é que, em meio à confusão que se formou no momento em que os passageiros eram retirados do Titanic para serem encaminhados aos botes salva-vidas, minha mãe se perdeu do meu irmão. Só conseguiu reencontrá-lo quando outro navio – que passava pela região – nos resgatou. Aquilo foi terrível para a minha mãe. Além de perder o meu pai, que afundou junto com o navio, ela simplesmente não conseguia encontrar o meu irmão, uma criança de menos de dois anos de idade.

Minha mãe teve de ser levada ao hospital. Ficou em estado de choque. De volta à Inglaterra, minha mãe passou a receber uma pensão, para educar a mim e ao meu irmão. Quando eu tinha oito anos, minha mãe começou a me contar tudo o que se passara com nossa família no Titanic.

Um detalhe curioso: o meu irmão – que viria a ter quatro filhos – morreu, aos 82 anos de idade, exatamente no dia do aniversário do naufrágio do Titanic, em 1992. É extraordinario. Quero dizer que acredito em destino. Não foi por acaso que ele morreu”

A senhora diz que acredita em destino. Que outros fatos ligados ao Titanic que fizeram a senhora adquiria essa crença?

“Eu acredito na força do destino, em primeiro lugar, porque nossa família não iria viajar no Titanic. Nós, na verdade, iríamos embarcar em outro navio. Meu pai ia tentar a vida nos Estados Unidos, com nossa família – eu, minha mãe e meu irmão. Um dia antes da viagem, meu pai soube, na companhia de navegação, que tinha havido desistências entre os passageiros que viajariam no Titanic para os Estados Unidos. O funcionário da companhia perguntou se ele gostaria de trocar de navio. O meu pai ficou super-feliz com a chance de embarcar no Titanic. A outra coincidência – ocorrida tempos depois – foi, como eu disse, o fato de meu irmão morrer no dia do aniversário do naufrágio.

Houve outro detalhe: numa escala da viagem, minha mãe mandou um postal para o meu avô e minha avó dizendo “tudo bem até agora”, como se tivesse tido uma premonição sobre o que viria a acontecer”

Por que o Titanic chama tanta atenção ainda hoje?

“O principal motivo da mística que se criou em torno do Titanic foi o fato de terem dito que o navio jamais afundaria. É esta a razão principal por que o navio desperta tanto interesse: um transatlântico tão maravilhoso não poderia afundar – mas afundou. Por esse motivo, o interesse sobre o Titanic continua. Não pára”.

O que é que a senhora diz dessas expedições que tentam recolher objetos do Titanic no fundo do mar?

“Há uma distinção importante a ser feita. Não me oponho que se resgatem objetos que estão espalhados no fundo do mar, ao redor da área onde se encontram os destroços do navio. São parte da história. Eu sei que objetos ficaram espalhados num longo raio em torno do ponto exato do naufrágio. Mas não concordo que retirem objetos encontrados dentro da carcaça do navio.

Detesto a idéia de ver exploradores tirando objetos no interior dos destroços do Titanic. Fico pensando onde estariam os restos do meu pai. É horrível”

É verdade que a senhora nunca bebe água?

“Nunca bebo água. Por quê? Minha avó não bebia. Viveu 93 anos. Minha mãe não bebia. Viveu 95 anos. Minha tia-avó não bebia. Viveu 97. Por que eu deveria beber água? Além de tudo, não gosto”.

Há alguma relação entre o Titanic e o fato de a senhora jamais beber água?

“Não existe nenhuma conexão. Afinal, o Titanic naufragou na água salgada. Não bebemos água do mar de maneira nenhuma… (ri)

A senhora culpa alguém pelo desastre?

“Honestamente, penso que o naufrágio não deveria ter acontecido de maneira nenhuma. Mas não tenho conhecimento suficiente para culpar alguém pelo desastre. Ninguém sabe realmente o que aconteceu naquela noite”.

A lenda sobre o Titanic vai sobreviver para sempre?

“Vai, sim. Há um fenômeno interessante: não apenas gente idosa se interessa pelo Titanic. Fui a uma escola em que crianças me pediam autógrafo. Perguntam sobre minha idade, se não foi terrível perder meu pai, o que minha mãe pensava. São super-curiosas. A pergunta mais inteligente foi feita por um menino – que quis saber se minha família tinha perdido tudo no naufrágio, inclusive dinheiro, o que é que fizemos para sobreviver quando voltamos à Inglaterra? Eu disse a ele que minha mãe nos levou para a casa de nossos avós. A fascinação sobre o Titanic continuará – para sempre”.

O que é que o Titanic significa para a senhora hoje? O que é que significa, para a senhora, voltar a este cenário ?

“Tudo o que sei sobre o Titanic me foi contado por minha mãe. Quando minha família – eu, meu pai, minha mãe e meu irmão – se preparava para embarcar no Titanic, meu avô e minha avó disseram: “Que navio maravilhoso! Não vai afundar nunca! Vocês vão ter uma viagem maravilhosa!”. É o que penso quando volto a este lugar. De qualquer maneira, devo admitir que o Titanic hoje significa para mim a oportunidade de encontrar gente. É o que faço.

Penso que é extraordinária a chance que sempre tenho de me encontrar com gente de todas as partes do mundo.O Titanic desperta um grande interesse. O meu sentimento em relação a tudo que aconteceu é diferente de uma sobrevivente que, por exemplo, tenha uma lembrança vívida de parentes que morreram no naufrágio. O meu sentimento é de outro tipo. Não tenho lembrança do meu pai – que morreu na tragédia – porque eu era um bebê. Se eu o tivesse lembranças da convivência com o meu pai, este fato certamente teria um grande efeito sobre a natureza de meus sentimentos diante do Titanic”.

Uma das sobreviventes disse que o Titanic provou que o homem não pode desafiar Deus. A senhora diria o mesmo?

“Definitivamente, acredito que não podemos desafiar as forças da natureza. Fatos como o naufrágio do Titanic acontecerão sempre. Porque nada na vida é certo. O homem propõe. Mas Deus dispõe. Aquela foi a única vez em que se disse que um navio não iria afundar de maneira nenhuma. Não se dirá tal coisa novamente. Penso em tanta gente que pereceu no fundo do mar. A gente vê nos filmes os gritos de gente que não conseguiu escapar na hora do naufrágio. É horrível. Tudo parece tão bem na hora em que os passageiros embarcam. Fui a uma exposição que exibia objetos recolhidos no fundo do mar, perto do Titanic. Vi objetos de uso pessoal – como pentes, por exemplo. Fiquei pensando que os donos desses objetos morreram no mar. É triste”.

PS: Aos Titanicmaníacos : os arquivos do blogueiro guardam, em algum ponto incerto e não sabido, uma preciosidade – a gravação de uma entrevista com outra passageira do Titanic. Nome: Eva Hart. Tinha sete anos de idade quando embarcou. Guardava lembranças vívidas da aventura que viveu em alto mar: a corrida para sair viva de um transatlântico que, aos poucos, era engolido pelo oceano – de madrugada. Em breve, no Dossiê Geral.

Posted by geneton at outubro 26, 2009 08:06 PM
   
   
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