EVALDO CABRAL DE MELLO
BRASILEIRO ADORA CHORAR EM AEROPORTO. SÓ EXISTE UM POVO TÃO PIEGAS QUANTO O BRASILEIRO: O PORTUGUÊS – QUE CHORA ATÉ PARA ATRAVESSAR UM RIO (PALAVRA DE UM HISTORIADOR QUE ENTENDE DE BRASIL)
Quem quiser conhecer uma manifestação genuína do espírito brasileiro não precisa ir longe: basta dar um plantão diante diante dos portões de embarque e desembarque de qualquer aeroporto do país. Lá, as manifestações derramadas de afeto, as efusões, as lágrimas, os abraços, os beijos, o chororô – tudo funcionará como um retrato fiel da “pieguice luso-brasileira”.
O que é que os documentaristas estão esperando ? Por que não apontam suas câmeras durante doze horas seguidas para os portões de embarque e desembarque de algum aeroporto movimentado ? Ao término da gravação, terão em mãos, com certeza, material suficiente para compor um retrato fiel do temperamento brasileiro.
Quem chama a atenção para este detalhe do caráter brasileiro é um historiador que merece ser lido, ouvido e estudado, porque é capaz de produzir, em série, idéias originais e provocativas sobre o Brasil e o brasileiro – este povo bipolar. Chama-se Evaldo Cabral de Mello (sim, é irmão do grande poeta João Cabral de Mello Neto. Autor de livros como “O Negócio do Brasil” e “A Fronda dos Mazombos”, é apontado como um dos maiores especialistas em um tema que até hoje provoca debates: o período da dominação holandesa no Nordeste brasileiro).
Já se disse que o brasileiro é, essencialmente, um povo emotivo. Brasileiros choram quando ganham todo e qualquer tipo de competição, especialmente as disputadas longe do solo pátrio. Choram quando ouvem o hino. Choram quando o país é escolhido para sediar uma Olimpíada. Quando vi o chororô que se seguiu ao anúncio do Rio de Janeiro como sede das Olímpíadas, pensei comigo “que coisa patética, que coisa patética”. Só não consegui enxergar direito o que se passava na tela da Tv porque minha visão estava totalmente enevoada – pelas lágrimas. Patético, patético – mas brasileiro.
Voilá a transcrição de uma (rara) entrevista televisiva que Evaldo Cabral de Mello concedeu ao locutor-que-vos-fala sobre não apenas a pieguice, mas outros traços da geléia geral brasileira :
Quais são os sintomas dessa pieguice luso-brasileira?
Evaldo Cabral de Mello – “Vou citar apenas dois exemplos – que me parecem engraçados. Primeiro : a quantidade de pessoas que, no Brasil, se deslocam aos aeroportos para levar parentes e amigos. Se você pensar bem, cada pessoa que pega um avião no Brasil é levada por outras cinco ao aeroporto…Ou vão cinco receber cada pessoa que chega. Em relação a Portugal, me lembro do caso que me contou o pintor Cícero Dias. Morador em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial, ele se divertia muito ao ver os barcos que faziam a ligação entre o Terreiro do Paço e Cacílias. É como a barca Rio-Niterói. A distância é até menor que do que a do Rio a Niterói. Cícero ficava sentado, às gargalhadas, vendo o número de pessoas que, aos prantos, se despediam de parentes que iam atravessar o rio…”.
GMN – O senhor disse, numa entrevista, que o Brasil conseguirá, no máximo, ser um “Canadá dos Trópicos”. Isso é uma avaliação otimista ou pessimista ?
ECM – “Bastante otimista! Afinal de contas, eu me sentiria muito bem se tivesse a certeza de que, em vinte, trinta anos, o Brasil teria a renda per capita, o grau de desenvolvimento, o respeito pelos direitos humanos e as instituições democráticas estáveis que existem no Canadá, a despeito de todos os problemas de separatismo que os canadenses têm. Eu quis me referir, com a expressão “Canadá dos Trópicos”, a um país que fosse desenvolvido, ocidental, democrático – com a diferença de que fica nos trópicos. A mim não me parece que o povo brasileiro tenha vocação para grande potência. O Canadá é um país que conseguiu um nível de vida e certa projeção internacional, mas não reivindica um estatuto especial de grande potência, não tem ambições mundiais. Eu pessoalmente me pergunto se o Brasil, que ainda vive o processo de pôr a própria casa em ordem, é um país em condições de exercer uma influência internacional ampla. Nós podemos exercer influência dentro da América Latina, no Mercosul, nas nossas relações com a Europa ocidental, com os Estados Unidos, com países da África, em vista de nossa herança comum, mas acho otimista, pelos próximos vinte ou trinta anos, ver o Brasil como uma das potências mundiais”.
GMN – A natureza tropical, “grandiosa e barroca”, é “triste e deprimente”, na opinião do senhor. Mas uma natureza grandiosa não poderia inspirar, o país, ideais de grandeza ? Por que é que o senhor não gosta dessa natureza tropical ?
ECM – “Se natureza grandiosa inspirasse ideais de grandeza, a Suíça seria uma grande potência mundial. É uma questão de gosto estético. Eu entendo perfeitamente que uma pessoa goste de paisagens tropicais. Mas não gosto de nada majestoso. Tudo o que é majestoso me deixa perfeitamente frio. Comparado com certas paisagens européias, a paisagem tropical é majestosa, monumental. Não me diz nada. Sou muito favorável á paisagem já marcada pelo homem; a paisagem que tem o seu lado histórico. Já a paisagem nua e virgem não me atrai, absolutamente”.
GMN – O senhor já reclamou da falta de objetividade do brasileiro. Aqui, quem é pouco objetivo é “tido como inteligente”. O senhor quer que o brasileiro se transforme num alemão – metódico, frio e eficiente ?
ECM – “Não. Ocorreria uma negação da autenticidade do brasileiro se ele se transformasse num alemão. Mas seria bom que o brasileiro tomasse consciência de uns tantos defeitos da sua formação cultural e procurasse corrigi-los num sentido mais compatível com as exigências de um mundo crescentemente globalizado. Não adianta, diante da globalização, fincar os pés no terreno ou fazer como um avestruz. Não se pode ignorá-la ou detê-la. É preciso encará-la e enfrentá-la como brasileiro, mas também com a consciência de que a globalização vem trazer mudanças completamente irresistíveis”.
GMN – Nós temos a tendência de enxergar, no futebol e no carnaval, traços do caráter brasileiro. O futebol resumiria nosso talento para o improviso. O carnaval seria uma prova de nossa vitalidade. O senhor, como historiador, acha que o futebol e o carnaval são retratos fiéis do brasileiro ?
ECM- “São retratos parciais do brasileiro do século vinte. A popularidade do futebol e do carnaval no Brasil são fenômenos bastante recentes. O carnaval que se conhecia no Brasil no período colonial e ao longo do século dezenove era o chamado entrudo português – que não tinha nada a ver com o carnaval que se faz atualmente no Brasil. Já o futebol foi um jogo transplantado para Brasil por funcionários ingleses de companhias de eletricidade e outras que operavam aqui no fim do século passado. Para o século vinte, compreender o Brasil sem o futebol e sem o carnaval é impossível. Mas é preciso ter presente que todas essas idéias de identidade nacional, tanto no Brasil como fora, têm muito de uma construção ideológica. Nenhum país tem identidade. Uma identidade é inventada para um país. O futebol e o carnaval, então, são dois elementos fundamentais através dos quais a cultura brasileira do século dezenove inventou uma identidade para o Brasil. A preocupação com a identidade nacional, que sempre houve desde o período colonial, só se tornou absorvente e monopolizou as preocupações do Brasil do Modernismo para cá, ao longo dos últimos oitenta anos”.
GMN – O senhor diz que a busca permanente por uma identidade nacional é uma característica de “países inseguros”. A busca por uma identidade não seria, pelo contrário, um sinal de vitalidade ?
ECM – “Pode ser um sinal de vitalidade, mas este detalhe não exclui o fato de que normalmente os países não se perguntam por suas identidades ! Os países vivem suas vidas sem perguntar e sem levantar este problema !. A tendência a proclamar a identidade em face do mundo, como ocorre hoje com o Brasil, me soa como uma espécie de narcisismo coletivo que acho desagradável, como todo tipo de narcisismo. Todo tipo de narcisismo ,individual ou coletivo, é uma agressão em relação ao próximo. A mania de ficar lançando aos olhos da humanidade a nossa grande originalidade nacional me parece uma coisa de gosto duvidoso”.
GMN -…Mas a busca por uma identidade nacional gerou obras fundamentais, como Casa Grande & Senzala; livros importantes, como “Teoria do Brasil” – de Darcy Ribeiro – e até movimentos culturais, como o Manifesto Antropofágico, por exemplo. O senhor nega o valor dessas obras ?
ECM – “Claro que não nego o valor dessas obras, essenciais para a cultura brasileira no século vinte. O que estou dizendo apenas é que elas correspondem a uma receita cultural que, como toda receita cultural, se esgota ao longo do tempo, como as escolas literárias ou escolas de pintura se esgotam. Toda essa preocupação com a identidade na cultura brasileira já vem dando evidentes sinais de cansaço. Já não produz hoje os livros que produziu há cinqüenta, sessenta anos. Pelo contrário : nota-se um declínio pronunciado na qualidade dos livros. Porque não há como falar indefinidamente de um assunto que, por natureza, é esgotável”.
GMN – Quem foi o maior brasileiro do século vinte ?
ECM - “Eu perguntaria quem foi o brasileiro mais importante do século vinte, não o maior. O brasileiro de maior influência sobre o século XX, até diante do tempo em que exerceu o poder, foi Getúlio Vargas, assim como o brasileiro de maior impacto na história nacional no século XIX foi Dom Pedro II -que ficou quase cinqüenta anos como imperador”.
GMN – O julgamento da história vai ser favorável ou desfavorável a Getúlio Vargas ?
ECM – “Todo julgamento da história é misto. É raro a história fazer julgamentos completamente positivos ou completamente negativos. Getúlio deixou um herança que, como toda herança política, é ambígua. Podem-se ver pontos positivos, assim como podem-se ver falhas incríveis. É evidente, por exemplo, que ele foi o responsável por toda essa onda populista que se gerou no Brasil dos anos quarenta para cá. Igualmente, é inegável que ele tinha uma inclinação autoritária bastante pronunciada. Getúlio se beneficiou da inclinação autoritária que havia na sociedade e no regime político para permanecer longo tempo no poder. Mas é também inegável que, durante o governo de Getúlio Vargas, o Brasil alcançou metas importantes, sobretudo em matéria industrial. Pela primeira vez, teve-se a noção de planejar a economia brasileira no sentido da industrialização do país”.
GMN – Por que é que o senhor ficou decepcionado com os diários de Getúlio Vargas ? O senhor acha que, na intimidade, faltava grandeza a ele ?
ECM – “O que me decepcionou é que, como historiador, eu esperava, talvez, revelações sensacionais. O diário, na verdade, é um documento de um burocratismo cansativo. Getúlio foi, sobretudo, um grande burocrata; um homem com um pronunciado gosto da administração, o que, aliás, é uma característica bem rara em políticos brasileiros. O fato é que os políticos brasileiros têm horror à administração. Se eles se dedicassem apenas ao poder legislativo, não haveria maior problema. Mas chega um momento em que o político transita do legislativo para o executivo. Quando chega ao executivo, evidentemente que ele não pode continuar a se comportar como um deputado ou um senador. É preciso que o político brasileiro que se proponha a exercer funções executivas tenha o gosto da administração. Mas o que observo é que há uma carência quase generalizada nos políticos brasileiros. Porque os políticos brasileiros gostam do debate político-ideológico, gostam da transação, mas, quando estão diante da possibilidade de administrar um estado ou um município de maneira objetiva, caem na tentação política! Não conseguem se desligar da antiga condição de deputado ou senador para transitar para a condição de um executivo. Getúlio tinha o gosto pela administração, se bem que este gosto fosse bastante burocrático, fosse muito pouco inovador”.
GMN – Há autores que dizem que o subdesenvolvimento pode não ser apenas um estágio rumo ao desenvolvimento, mas uma condição permanente. Nós corremos este risco?
ECM – “Corremos, como todo país em desenvolvimento. Dos anos cinqüenta e sessenta, herdamos um otimismo fácil que pensava que normalmente todo país acaba se desenvolvendo. É uma idéia completamente equivocada ! Um país pode encontrar ao longo de seu percurso econômico obstáculos que não consiga resolver nem vencer. O país pode se ver numa situação de estagnação. Veja-se o caso da Holanda no século dezoito. A Holanda foi a primeira potência capitalista do ocidente, no século dezessete. Um século depois, devido a uma série de limitações, a Holanda foi passada para trás por um pelotão de países – sobretudo a Inglaterra, mas também a França. Passou, inclusive, por um período econômico de regressão bastante pronunciada, até que, no século dezenove, resolveu se recuperar para se tornar o grande país industrializado que é hoje – mas longe de pretender qualquer posição de primeiro plano no cenário mundial. Temos, realmente, uma noção linear do processo de desenvolvimento, como se saíssemos de uma posição de subdesenvolvimento para outra posição. De qualquer maneira, o Brasil tem grandes chances, por nossas dimensões continentais, por nossa estrutura de recursos naturais, pelo grau de desenvolvimento que já atingimos, pela existência de um parque industrial. Mas é evidente que a maioria dos países do Terceiro Mundo não tem condições de se desenvolverem no sentido do desenvolvimento dos países europeus”..
GMN – O senhor, então, não subscreve esta crença de que o Brasil um dia, no futuro, seria uma grande potência?
ECM – “Não há garantia nenhuma para um país, qualquer que ele seja, de que se tornará, em dez, vinte ou trinta anos, superdesenvolvido ou uma grande potência. Vai depender da capacidade das classes dirigentes – e da população em geral – para responder aos problemas que vão surgindo. Devo dizer que a experiência do Brasil no último meio século não é especialmente encorajadora. Se fomos capazes de resolver problemas e criar um parque industrial, o fato é que há uma série de problemas que o Brasil não vem conseguindo resolver a contento ! São problemas que o país não pode ficar indefinidamente sem resolver. Isso implica um atraso substancial no projeto desenvolvimentista. Um exemplo : reforma agrária é um negócio que já deveria ter sido feito no brasil desde os anos cinqüenta, sessenta. Controle demográfico é uma coisa que deveria ter sido feita no Brasil desde os anos cinqüenta. Eu sei que seria utópico esperar que tivéssemos feito este controle nos anos cinqüenta, quando havia obstáculos institucionais ao controle demográfico. Mas o fato é que, se o Brasil tivesse feito uma reforma agrária e um controle populacional a partir dos anos cinqüenta, a situação do país hoje seria incomparavelmente melhor, sobretudo do ponto de vista das disparidades de renda – que não seriam tão pronunciadas – e da violência humana, com a criação de enormes cidades com populações flutuantes e desempregadas. Não teríamos o grau de desemprego que estamos ameaçados agora de ter. Quando olho de volta no tempo, tenho a sensação de que o Brasil perdeu, nos anos cinqüenta, um momento essencial. Houve a presidência Kubitscheck, um ponto positivo, sem dúvida. Mas outras coisas foram completamente deixadas de lado. Os primeiros anos da década de cinqüenta me dão a impressão de anos perdidos”.
GMN – O senhor é uma dos maiores especialistas brasileiros sobre o período de dominação holandesa no Brasil. Se os holandeses tivessem ficado no Brasil, nós estaríamos hoje numa situação melhor ou pior ?
ECM – “Não há historiador que possa dar resposta a uma pergunta dessas. Se der, não é historiador. Mas, no século dezenove, houve uma tendência nativista de negar o valor da colonização portuguesa e dizer que, se os holandeses tivessem permanecido no Brasil, o nosso país seria um país muito mais próximo dos padrões ocidentais de vida. O que existe por trás desse debate é uma opção ideológica. É preciso partir de um princípio determinado para dar uma resposta. Se o essencial da história brasileira é a preservação da unidade nacional e da integridade territorial, então é evidente que a colonização portuguesa foi preferível, porque garantiu essas condições. Mas, se você achar que o importante não é a unidade nacional ou a integridade territorial, mas a adoção de valores mais compatíveis com a democracia, com os direitos humanos e com o desenvolvimento capitalista, então é possível e plausível que a colonização holandesa tivesse sido mais favorável. De qualquer forma, não se deve esquecer que a Holanda colonizou a Indonésia atual, um país que, pelo que se sabe, não parece ter assimilado as grandes virtudes nacionais do povo holandês. Toda esta discussão me parece um pouco acadêmica..”
GMN – Em certas áreas, fala-se com um pouco de saudosismo sobre a passagem do príncipe holandês Maurício de Nassau pelo brasil. Afinal, ele trouxe uma corte de artistas, construiu o primeiro observatório astronômico das Américas no Brasil. O senhor acha que existe fundamento histórico nesse saudosismo ?
ECM – “É evidente que o governo de Nassau foi um episódio completamente excepcional na história colonial do Brasil. Mas toda nostalgia histórica é inútil, infecunda e improdutiva. O que temos de fazer é olhar para a frente; não para o período holandês”.
GMN – Que avaliação o senhor faz do príncipe Maurício de Nassau ?
ECM – “É uma das personalidades mais simpáticas da história brasileira !”.
Posted by geneton at outubro 27, 2009 08:03 PM