novembro 02, 2009

LEDO IVO - PARTE 2

LEDO IVO (PARTE 2) / A INCRÍVEL PACIÊNCIA DO ESCRITOR E POETA QUE HÁ SESSENTA ANOS ESPERA PELO LEITOR : “UM DIA, ELE HAVERÁ DE APARECER”

GMN : O senhor escreveu em suas memórias : “Vivo escrevendo, mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que freqüência,então, o senhor tem a sensação de estar substituindo a vida pela escrita ?

Ledo Ivo: “É um drama comum a todo e qualquer escritor este sentimento de que estamos vivendo,sim, mas essa vida se destina somente a acumular experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se limita a viver, porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia : por que logo eu, numa família de onze, revelou a vocação e o destino para a escrita, numa família que não tinha pendores literários ? Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um escritor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra literária. O escritor é,então,uma pessoa condenada não a viver, mas a escrever.

Fausto Cunha – grande crítico,que notou,em minha procedência literária, a influência de poetas malditos como Rimbaud,Verlaine e Baudelaire – me disse : “O grande erro de sua vida é que você não morreu aos vinte anos. Se tivesse morrido moço, teria deixado “Ode e Elegia”, “As Imaginações”, e “Acontecimento do Soneto”. Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casemiro de Abreu !.Vida longa atrapalha a biografia !”.

João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi : “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas – o poeta que vive até os oitenta anos !”. Prefiro o mistério dos poetas que,como Drummond e Manuel Bandeira,tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa”.

GMN : Ariano Suassuna – que foi homenageado no carnaval aqui no Rio – disse que já tinha recebido a homenagem do “Brasil oficial”, ao entrar para a Academia Brasileira de Letras e estava recebendo ali,no sambódromo,a homenagem do que ele chama de “Brasil Real”. O senhor – que já foi homenageado pelo “Brasil Oficial” ao ser recebido por unanimidade na Academia Brasileira de Letras – sente falta do reconhecimento do “Brasil Real”,já que não é tão conhecido como poeta como deveria ?

Ledo Ivo: “O poeta inglês John Mansfield diz que já viu o azarão no jóquei ganhar o prêmio, já viu flor brotar da pedra, já viu coisas amáveis feitas por homens de rosto feio. “Eu também espero” – diz ele. Confesso que o problema do reconhecimento vasto não me preocupa. A vida literária se faz pela diversidade e pela multiplicidade. Não se sabe se o escritor de pouco público de hoje será o escritor de grande público de amanhã.

Um escritor pode ser obscuro e desconhecido hoje e famoso e glorioso amanhã. Você pode também estar dentro da literatura e um dia ser expulso ! São coisas que não me preocupam. O que me preocupa é a criação literária. Já que sou uma criatura dotada de linguagem, quero me exprimir. Mas sei que uma obra só se completa com a existência do outro. Há sessenta anos estou esperando por esse leitor. Um dia ele haverá de aparecer”.

GMN : O poema “A Queimada” – aquele que fala do lobo no covil – é uma declaração de princípios de que o escritor deve ser,no fim das contas,um solitário ?

Ledo Ivo: “O escritor deve ser um solitário solidário. A verdade, como digo no poema,não pode ser dita”.

GMN : O senhor reclama daqueles escritores que só brilham em congressos….

Ledo Ivo: “Oswald de Andrade – de quem fui muito amigo até brigarmos – me procurou, magoado, porque tinha sido expulso do Partido Comunista. Os comunistas, então, não o deixaram participar do Congresso dos Escritores de São Paulo. Eu disse a ele: “É besteira ! . Nietzsche nunca participou de um congresso de escritores” (risos)…

GMN: Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício” ?

Ledo Ivo: “Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas já vêm prontas, organizadas subconscientemente. Pensam que “capino” o meu texto. Mas o meu texto vem espontaneamente. Não tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que acrescentam !.

João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa inveja, mas não causa não!”.

GMN : Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de Andrade, escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar?

Ledo Ivo: “Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele que “enterra uma palavra por dia”. Para mim, o bom escritor é o que desenterra uma palavra por dia ! . Porque o escritor lida com um patrimônio lingüístico. De vez em quando o brasileiro ressuscita palavras esquecidas”.

GMN : Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus livros o tão citado poema sobre o Recife ?

Ledo Ivo: Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam. Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema :

“Amar mulheres,várias
amar cidade,só uma – Recife.
E assim mesmo com as suas pontes
E os seus rios que cantam
E seus jardins leves como sonâmbulos
E suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau”

O poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque Recife tem um lado cosmopolita – que me impressionou muito. O meu pai era pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era considerado meio pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico Willy Lewin,nos anos quarenta. Recife foi a cidade de minha primeira formação literária. Fazíamos poemas nas mesas do Lafayette,numa época de boemia. O poema sobre o Recife ficou desaparecido até 1947, quando chegou às mãos de Mauro Mota – que o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no Jornal do Commercio). O destino de um poema é curioso. A gente escreve um poema; ele ganha vida própria,começa a circular.

Guardo a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu : ele dizia que eu deveria ser um poeta alagoano,assim como ele era um poeta pernambucano. O sentimento do berço tinha grande importância para ele”.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE,O GRANDE POETA SECRETO,ENTRA EM CENA

GMN : Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência com Carlos Drummond de Andrade ?

Ledo Ivo: “O que me impressionou em Drummond, já no primeiro encontro, foi um certo “fechamento” interior. Não se entregava. Era como se vivesse insulado em si mesmo. Há em Drummond algo que é “intransmissível”. Tive essa sensação de intransmissibilidade.

Eu levei meus primeiros poemas para Drummond, no gabinete em que ele trabalhava, no prédio do Ministério da Educação, no centro do Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção de outros escritores para mim. Em seguida, vieram as rusgas, porque havia divisões políticas naquele tempo.

A coisa mais impressionante que Drummond me disse foi num de nossos últimos encontros. Um certo poeta brasileiro – de quem não quero dizer o nome – proclamou-se herdeiro de Drummond. Quando me encontrei com ele, disse: “Como é que vai o herdeiro?” . E ele : “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do modelo. O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim : é esta a lição da poesia”.

O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de Andrade. Os herdeiros são os diferentes. São até os adversos : não são os assemelhados. É a grande lição de Drummond que ficou em mim : ele não espera ter um clone como herdeiro. (risos) O que Drummond esperava era o “anti-clone”.

GMN : Nesse primeiro encontro, o senhor – que viria a se considerar um lobo no poema “A Queimada” – teve a sensação de que o Drummond era o “urso polar”,como ele disse que era num dos poemas ?

Ledo Ivo: “Tive essa sensação. Drummond tinha uma vida amorosa muito escondida – que depois, infelizmente, foi violada pela imprensa. Eu via, em Drummond, um grande poeta secreto. Naquela época, 1940, Drummond não tinha a notoriedade que ganhou depois. O próprio Manuel Bandeira pensava que o grande poeta brasileiro daquela época fosse Augusto Frederico Schmidt. Porque o Schmidt enrolava todo mundo (risos). Schmidt até pensou em fazer um poema sobre a descoberta do Brasil, mas depois Drummond veio com A Rosa do Povo e acabou com a festa”.

“Sou apenas um homem.

Um homem pequenino à beira de um rio.

Vejo as águas que passam e não as compreendo.

Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.

Vi que amanheceu porque os galos cantaram.

Como poderia compreender-te, América ?

É muito difícil.

Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.

O rosto denuncia certa experiência.

A mão escreveu tanto – e não sabe contar !

A boca também não sabe.

Os olhos sabem – e calam-se”

(Trecho de “América”, poema do livro “A Rosa do Povo”/Carlos Drummond de Andrade)

A SEGUIR : O GRANDE POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO DÁ DE PRESENTE UM EPITÁFIO EM VERSOS AO AMIGO LEDO IVO

Posted by geneton at novembro 2, 2009 07:47 PM
   
   
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