ANOTAÇÕES LIGEIRAS DE UM ANDARILHO PELOS SUBTERRÂNEOS DO VATICANO : A BELEZA ESMAGADORA DO TETO DA CAPELA SISTINA ABALA O PEITO DOS DESCRENTES
CIDADE DO VATICANO – Nem 11:59 nem 12:01. O relógio marca meio-dia em ponto quando uma das janelas do Vaticano se abre. Apequenada pela distância que a separa da multidão, uma figura se aproxima do parapeito para saudar os visitantes que, lá embaixo, na Praça de São Pedro, apontam para a janela um oceano de câmeras digitais.
De longe, é impossível discernir, a olho nu, as feições da figura que acena da janela. Mas quem usa o visor das câmeras como uma espécie de binóculo improvisado vai enxergar, com razoável clareza, o sorriso travado do personagem. Ei-lo: o papa Bento XVI acaba de fazer uma aparição no Vaticano.
O Papa aparece : a multidão reage (Foto: GMN)
Justiça se faça: a taxa de carisma do Papa é algo perto de zero, comparada com a de João Paulo II. Mas uma aparição do sucessor de São Pedro é sempre capaz de espalhar pela multidão uma corrente de entusiasmo. É o que acontece. Os fiéis aplaudem. Bento XVI acena. Gritos. Novas palmas.
Uma dúvida incendeia minhas florestas interiores: quem disse que o Papa precisa necessariamente ser “midiático”?Sem que jamais tenha tido esta intenção, o Papa de riso travado termina funcionando como um saudável contraponto a este mundo dominado pela idiotia exibicionista e vulgar.
Depois que o Papa se recolhe, a multidão forma uma fila para entrar no Vaticano. Um ponto de passagem quase obrigatório : os túmulos dos Papas. Despojado, como os outros, o túmulo de João Paulo II desperta comoção. Quem não se lembra da imagem comovente de João Paulo II se contorcendo de dores naquela janela do Vaticano, incapaz de pronunciar até o fim a bênção aos fiéis ?
Visitantes mais devotos choram lágrimas discretas diante do túmulo. Poucos resistem à tentação de fotografar. Um funcionário pede que a fila apresse o passo, para evitar um congestionamento humano nos corredores do Vaticano. Numa concessão aos tempos modernos, o Vaticano instalou, diante do túmulo de João Paulo II, uma webcam. Internautas de qualquer parte do planeta poderão acessar, a qualquer hora, a paisagem imóvel deste subterrâneo.
O túmulo de João Paulo II : despojado (Foto: GMN)
A dois passos dali, outro túmulo atrai atenções: o de João Paulo I, o Papa que reinou por um brevíssimo tempo, em 1978. Trinta e três dias depois de eleito, morreu do coração. Um visitante anônimo deixa uma rosa vermelha sobre o túmulo deste cardeal que arrebatou os fiéis ao aparecer sorridente e efusivo, na janela do Vaticano, instantes depois de ter sido eleito Papa. A homenagem, singela, emociona. É o único ornamento de um túmulo extremamente despojado. Silêncio, pedem os vigilantes do Vaticano. ”Um minuto, é só uma foto”, respondem os turistas.
A figura do Papa pode até parecer um anacronismo. Mas a aura de segredo que envolve aqueles corredores, a sincera comoção despertada – por exemplo – pela visão do túmulo de João Paulo II ou a corrente de eletricidade que percorre a multidão quando o Papa surge na janela deixam uma certeza : o fascínio produzido por estes rituais é que garante a permanência da Igreja.
Sem segredos, sem esta pompa, sem esta grandiosidade que se estende por corredores sem fim, o que restaria?
O túmulo de João Paulo I : um buquè de rosas (Foto:GMN)
Ainda assim, o Vaticano de vez em quando concede ao populacho a chance de espiar de relance uma nesga do que acontece por trás daqueles muros. Faz algum tempo, o Museu do Vaticano abriu, no Palazzo Apostolico Lateranense, uma exposiçao chamada “Habemus Papa”. Lá estavam relíquias como o martelo usado para constatar a morte dos Papas. O martelo exposto à curiosidade pública foi usado para cumprir o ritual fúnebre de Leão XIII, em 1903. Um ajudante bate três vezes na fronte do Papa morto com o martelo, para constatar a morte. Chama o nome de batismo do Papa. O silêncio é a resposta.
É assim que tudo acaba. O que fica ? A grandeza esmagadora do Vaticano e a beleza de rituais capazes até de acender uma fagulha de fé no peito de descrentes. Ninguém sai impune da experiência de contemplar a beleza absurda do teto da Capela Sistina, pintado por Miguelângelo. Se Deus existe, ele se manifestou ali.
Remember o velho Paulo Francis: “A morte é uma piada. A vida é uma tragédia. Mas, dentro de nós, mesmo no maior desespero, há uma força que clama por coisas melhores. Os artistas estão sempre aí nos lembrando disso. Existe um paraíso, pois Beethoven ou Gauguin já nos deram mostras convincentes. É inatingível permanentemente, mas devemos ser gratos pelas sobras que nos couberem”.
A mão de Deus cria o homem: beleza no teto da Capela Sistina
Faltou acrescentar : Miguelângelo nos deu também mostras exuberantes da beleza e do mistério da Criação.
A letra de uma música popular – uma manifestação de arte que soa obrigatoriamente banal diante de tanta grandeza – pode ter, quem diria, a capacidade de resumir o sentimento de quem sai da Capela Sistina “varado de luz” : “A violência, a injustiça e a traição/ ainda podem perturbar meu coração/ mas já não podem abalar a minha fé /Porque eu sou/ e Deus é/ E disso é que resulta toda a Criação” (Gilberto Gil)
Posted by geneton at novembro 5, 2009 07:22 PM