UM JORNALISTA INVENTA NA REDAÇÃO UM “MILENAR” PROVÉRBIO EGÍPCIO: “SOMENTE AS MÚMIAS SÃO CAPAZES DE SOFRER ETERNAMENTE EM SILÊNCIO”. RESULTADO: O PROVÉRBIO GANHA VIDA PRÓPRIA E CORRE MUNDO…
O mundo lembra a derrubada do Muro de Berlim - um marco do fim do comunismo.
Tive a chance (rara) de ouvir, em Moscou, um personagem que testemunhou, nas redações, as décadas de vigência do regime comunista na União Soviética : um velho jornalista russo que cometeu pelo menos três indiscrições ao passar em revista uma vida de militância jornalística.
Primeira cena: inventou um provérbio egípcio para tornar menos chato um texto sobre relações entre a União Soviética e o Egito.
Segunda: viveu um drama na redação no dia em que um puxa-saco enviou, para publicação, um poema que comparava o todo-poderoso Stalin a uma “águia das montanhas”.
Terceira: numa concessão às artes da ficção, ele criou um personagem brilhante na seção de cartas dos leitores – um suposto tratorista chinês que dava lições de consciência política….
Aos fatos:
Próxima parada : segredos dos bastidores do Pravda,o mais famoso jornal da Rússia soviética. Quando Moscou era sede de um regime fechado, o mundo tentava decifrar,nas entrelinhas dos textos do Pravda, os humores do Kremlin. Que revelações guardará um velho jornalista que correu o mundo pelo Pravda, no auge do regime comunista ?
Quem me aponta o caminho das pedras – o telefone do velho jornalista do Pravda, já fora de combate – é um executivo da maior rede de TV da Rússia,um historiador chamado Anatoli Sosnovski. A investida à toca do dinossauro seria recompensada. Eu sairia de lá com um pequeno tesouro nas mãos : o globe-trotter do Pravda me confiaria a cópia de um relato inédito, já devidamente traduzido para o português,sobre os bastidores do jornal.
O carro segue para uma rua chamada Vorontsovskie Prudi. Ali,num apartamento modesto, vive Oleg Ignatiev, ex-secretário da embaixada soviética na Argentina,ex-dirigente do Bureau Soviético de Informação e correspondente estrangeiro dos jornais Komsomolskaia Pravda e Pravda durante exatos quarenta e cinco anos. A pensão que recebe como jornalista aposentado é modestíssima : o equivalente a 100 dólares por mês.
Uma foto de Che Guevara ornamenta a sala de estar. Uma das estantes exibe uma foto de Ignatiev em companhia de duas figuras ilustres da constelação comunista : o então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética – Nikita Kruschev – e o homem-forte de Cuba, Fidel Castro. Ignatiev serviu de intérprete no encontro entre os dois em Nova Iorque.
Apaixonado pelo Brasil,Ignatiev guarda fotos em que aparece ao lado de Jorge Amado e Luiz Carlos Prestes. Chegou a escrever uma biografia de Tiradentes,publicada na Rússia. A alma de repórter levou-o a se embrenhar pela floresta amazônica. O resultado da expedição foi o livro “A Amazônia pelos Olhos de um Moscovita”.
Surpreso por ter sido procurado por um brasileiro,Ignatiev fora efusivo quando fiz o primeiro contato,por telefone. Logo marcou o encontro. Fala um português cambaleante mas perfeitamente compreensível.
Primeiro, faz uma profissão de fé no regime comunista. Depois,revela cenas inacreditáveis,ocorridas longe dos olhos dos leitores, nos bastidores da redação do Pravda.
Um patrulheiro ideológico poderia, agora, cobrar de Ignatiev as décadas em que ele serviu com dedicação absoluta ao regime soviético, mas danem-se os analistas políticos : a verdade é que a imagem deste velho e pobre jornalista do Pravda falando – emocionado – sobre Ernesto Che Guevara, sobre o Brasil ou sobre as noitadas sem fim na redação do jornal é comovente. Magro, dono de olhos miúdos escondidos atrás de grossas lentes, Ignatiev não quer ser visto como um ativista político : é um militante do jornalismo.
O que Ignatiev vai fazer agora é um exercício do que os franceses chamam de “petite Histoire” – a descrição de fatos que podem parecer banais e desimportantes mas ajudam a compreender uma época. A história de um homem sentado num velho birô de madeira num canto da redação de dois dos mais importantes jornais da Rússia comunista pode, sim, jogar um pequeno facho de luz sobre o que era ser jornalista num regime fechado à inspeção externa. A Rússia – na definição perfeita de Winston Churchill – era um mistério, envolto por um enigma,embrulhado num segredo.
Enquanto fazia a contagem regressiva para a eleição presidencial de 1996 – a primeira realizada na Rússia depois do fim da União Soviética -, Ignatiev descreveu três cenas exemplares. É hora de purgar pequenos pecados.
Depois de procurar,em vão,um provérbio egípcio que seria usado para abrilhantar o artigo que estava escrevendo sobre a situação política do Egito, Ignatiev cometeu um pecado contra um dos mandamentos básicos do jornalismo : Não inventarás !. Ignatiev inventou um provérbio.Depois,como se tivesse vida própria, o provérbio inventado por Ignatiev num momento de fraqueza saiu das páginas do jornal para os textos de discursos políticos. O pai do provérbio passou décadas sem confessar a ninguém a autoria daquela fraude inofensiva mas vexatória. Ignatiev narra assim, no texto inédito que me entrega nesse fim de tarde em Moscou, a incrível história do provérbio que nunca existiu :
“O parlamento egípcio tinha denunciado,no Cairo, o tratado anglo-egípcio que permitia ao governo da Inglaterra manter,em época de paz,até dez mil militares na zona do canal de Suez.Houve grandes manifestações de apoio a esta decisão. Um dos membros de uma delegação juvenil soviética – o jornalista Vladimir Parkhitko – recolheu imagens fotográficas de manifestações e cenas de júbilo nas ruas da capital egípcia. Quando a delegação regressou a Moscou,ele foi imediatamente à redação do Komsomolskaia Pravda para oferecer as suas fotos ao jornal. Tivemos,então,a possibilidade de ser o primeiro jornal soviético a publicar as fotos que acabavam de chegar do Egito”.
“Fui encarregado de escrever com urgência um texto especial sobre o assunto. Jamais havia estado no Egito. Não poderia utilizar expressões pessoais sobre o país. Mas,como se tratava de uma revolução (e na nossa seção internacional todos éramos jovens e,portanto,não tínhamos a menor dúvida de que,no Egito,se realizava uma revolução….),seria impossível dar cobertura a um acontecimento destes sem emoções. Tive,então,uma idéia genial : para atribuir um colorido específico à minha reportagem,deveria usar um ditado ou um provérbio egípcio”.
“Infelizmente, nas bibliotecas do jornal Pravda e do nosso jornal, não havia nenhuma coletânea de ditados e provérbios egípcios ou árabes. Mas eu não queria renunciar a este lance interessante.Restava uma única coisa : inventar um ditado. A criação do folclore é uma coisa bastante difícil.Tive de gastar um bom tempo para alcançar o resultado desejado. Afinal,escrevi : “Somente as múmias são capazes de sofrer eternamente em silêncio”. A seguir,vinham frases padronizadas. Depois de entregar o material,fui para casa”.
“Um ditado russo diz “o que se escreveu a pena não se apaga nem a machado”. Agora, já não era possível alterar nada. O “ditado” inventado por uma pessoa real passou a viver, depois de publicado no jornal, uma vida autônoma, independentemente do autor. A redação poderia – naturalmente – fazer uma correção num dos próximos números. Mas o autor não pretendia confessar o excesso de fantasia inventiva…..Em segundo lugar,o “ditado” foi publicado com destaque,em forma de epígrafe, por ordem do redator-chefe. Em terceiro lugar, os jornais não confessavam os seus erros nem publicavam correção de material publicado, a não ser em casos excepcionais”.
“Eu poderia pingar aqui o ponto final,mas a história teve uma continuação. Um alto dirigente soviético fez uma viagem ao Egito em meados da década de cinqüenta. A visita foi precedida de cuidadosos preparativos. Os textos dos brindes, discursos, declarações e intervenções foram preparados com antecedência. Um belo dia, um representante de um órgão superior telefonou para a redação do Komsomolskaia Pravda pedindo informações a respeito de um artigo sobre o Egito, publicado no dia primeiro de novembro de 1951. Para dar mais brilho a um dos discursos do dirigente, ele tinha resolvido incluir no texto justamente o “ditado” egípcio, publicado em nosso jornal…..O discurso deveria ser traduzido para árabe. Para não deturpar, no processo de tradução, o sentido do ditado, era preciso localizar o original árabe. É lógico que o original não foi encontrado – mas o ditado terminou ficando no texto do discurso. Os jornais do Cairo publicaram o discurso, juntamente com o “ditado” !”
“Passaram-se dez anos. Uma editora do Cairo resolveu publicar uma coletânea de ditados e provérbios árabes. O correspondente do nosso jornal no Egito, Anatoli Agarichev,trouxe-me o livro.Um dos ditados estava sublinhado com marcador vermelho….”.
Ao consultar a página dedicada aos provérbios egípcios, Ignatiev teve uma surpresa : lá estava a frase que ele inventara,há anos,na redação, para tornar agradável a leitura de um artigo sobre uma decisão do parlamento do Egito. Que se saiba, não há outro caso de provérbio egípcio que tenha sido fruto da imaginação de um jornalista russo. A tradição nasceu e morreu com Olef Ignatiev. Mas as duas concessões que nosso personagem fez à ficção – ao inventar o chinês missivista e o provérbio egípcio – são exceções numa longa carreira dedicada à cobertura internacional.
A SEGUIR: CHEGA À REDAÇÃO UM POEMA QUE COMPARA STALIN A UMA ÁGUIA DAS MIONTANHAS. O QUE FAZER? PUBLICAR OU NÃO ?
Posted by geneton at novembro 11, 2009 07:17 PM