NIKLAS FRANK - PARTE 1
O FILHO DESCOBRE QUE O PAI FOI UM DOS PIORES CARRASCOS NAZISTAS. RESULTADO: DECLARA GUERRA SEM TRÉGUAS CONTRA ELE (PARTE 1)
O DOSSIÊ GERAL publicou, esta semana, uma entrevista com o pai que escreveu um livro comovente sobre os dois filhos deficientes (ver post anterior).
Tive a chance de gravar uma longa entrevista, numa cidadezinha do interior da Alemanha, com um personagem que vivia uma situação radicalmente oposta : um filho que vivia em guerra contra a lembrança do pai - um carrasco nazista.
Eis o que ficou do encontro com um dos personagens mais marcantes que já encontrei:
A casa fica no meio do nada, num povoado minúsculo, chamado Eklak, a duas horas de Hamburgo. É um paraíso, para quem quer se esconder do mundo. Ou um tormento, para quem tenta mas não consegue escapar de uma obsessão: em qualquer lugar em que esteja, Niklas Frank estará sempre em guerra contra a memória do pai. A simples menção do nome de Hans Frank provoca sobressaltos em Niklas Frank.
A obsessão do filho pelo pai renderia tomos e tomos de teses psicanalíticas. Seis décadas depois do fim da segunda grande guerra, Niklas Frank, o filho, não se cansa de cumprir o papel de cruzado solitário de uma causa que o mobiliza dia após dia, semana após semana, ano após ano: tudo o que ele quer na vida é manchar, destruir, maldizer, destroçar, espezinhar a memória do pai.
Que herança insuportável será esta- que alimenta a hostilidade do filho para com o pai? Nicklas não consegue conviver com a idéia de que traz, no DNA, a herança de um carrasco. É filho de Hans Frank,o “Açougueiro da Polônia”. O pai entrou para a história pela porta da infâmia: ministro da Justiça de Adolf Hitler, terminou indicado pelo chefe para o posto de governador-geral da Polônia ocupada, cenário das maiores atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial.
O “açougueiro” era um homem culto. Gostava de ópera. Cumpria as funções de advogado do partido nazista. Ao desembarcar na Polônia, instalou-se com a família num castelo, em Cracóvia. De lá, reinava, soberano, rodeado de serviçais, enquanto milhões de prisioneiros marchavam para as câmaras de gás dos campos de concentração ou penavam em trabalhos forçados. Advogado pessoal de Hitler, tinha poderes absolutos como interventor. O território governado pelo Açougueiro abrigava campos de extermínio, como Treblinka, Sobibór e Auschwitz.
O sentimento que o filho devota ao Pai é incômodo. Provoca estranheza. Causa pena. Desperta compaixão. Mas é irremovível: Niklas Frank não perdoa, sob hipótese alguma, as atrocidades que o Pai comandou
Em seus diários, falava sem meias palavras sobre a necessidade de exterminar o que ele considerava as “forças demoníacas” :
“Pertenço, até a última fibra do meu ser, ao Fuhrer e à gloriosa missão que ele comanda. Daqui a mil anos, a Alemanha ainda proclamará o mesmo. Servir à Alemanha à servir a Deus.Se Cristo reaparecesse na terra, seria como um alemão. Somos, na verdade, a arma de Deus para a destruição dos poderes demoníacos da terra. Nós guerreamos, em nome de Deus, contra os judeus e o bolchevismo.Que Deus nos proteja!”.
Hans Frank(de preto), ao lado de Adolf Hitler: o "Açougueiro da Polônia"
Isolado do mundo neste povoado do interior da Alemanha, o filho que tem horror ao Pai sorve uma caneca de café como quem bebe água. Quando a caneca fica vazia, ele interrompe por instantes a entrevista e vai à cozinha, para coletar uma nova dose de cafeína. Os olhos estão fixos numa foto em que o Pai, destinatário da ira acumulada no peito durante décadas, aparece sorridente ao lado de Adolf Hitler. O sentimento que o filho devota ao Pai é incômodo. Provoca estranheza. Causa pena. Desperta compaixão. Mas é irremovível: Niklas Frank não perdoa, sob hipótese alguma, as atrocidades que o Pai comandou.
Num texto que causou polêmica porque desagradou parte da opinião pública alemã, Niklas Frank escreveu:
“Vem, pai, deixe-me despedaçar o orgulho de tua vida!”.
Julgado e condenado a morrer na forca no Tribunal de Nuremberg, Hans Frank foi executado no dia 16 de outubro de 1946, aos quarenta e seis anos de idade. Deixou cinco filhos. Tentou se matar duas vezes na prisão, porque sentiu que não sairia dali com vida. As duas tentativas de suicídio fracassaram.
A acusação que pesava contra Hans Frank : co-autor de crimes contra a humanidade. Suas últimas palavras: “Jesus, tenha piedade!”.
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Dos cinco filhos do Açougueiro da Polônia, Niklas foi o único que se dedicou à tarefa de denegrir por todos os meios a imagem do pai. Diz que o pai não merece piedade. Porque o mundo não pode, diz ele, se esquecer dos crimes cometidos por gente como Hans Frank.
Nascido seis meses antes do início da guerra, Niklas Frank guarda traumas que, para ele, são incuráveis. O rosto de Niklas Frank assume um ar grave quando ele descreve cenas que, na infância, lhe pareciam inofensivas mas, depois, assumiram um tom tétrico: não se esquece de quando foi levado a um campo de prisioneiros para se divertir com a visão de homens esquálidos que, sob a ordens de guardas, eram obrigados a montar em burros apenas para serem, em seguida, derrubados no chão. Anos depois, já adulto, é que entendeu o horror do que testemunhara.
Os sobressaltos se acumularam. Descobriu que o pai, um carrasco nazista, teve um caso homossexual quando jovem. A mãe colecionava amantes. Serviçais do castelo na Polônia descreveram cenas escatológicas
Niklas Frank estudou história, sociologia e literatura alemã, mas fez carreira como jornalista da revista Stern. A dedicação ao jornalismo explica a obsessão com que revirou cada detalhe da vida do pai e da mãe.
Os sobressaltos se acumularam. Descobriu que o pai, um carrasco, teve um caso homossexual quando jovem. A mãe colecionava amantes. Serviçais do castelo na Polônia descreveram cenas escatológicas: uma vez, já cansado de grosserias, um maitre urinou dentro da terrina que seria levada à mesa em que os Frank entretinham convidados. Os comensais degustaram a sopa, sem suspeitar da sujeira.
Aposentado, Niklas Frank recolheu-se ao povoado no interior da Alemanha. Vive com a mulher. A filha única já saiu de casa.
De vez em quando, entre uma e outra resposta que pronuncia com ar grave, ele brinca comigo e com o cinegrafista Paulo Pimentel, como se quisesse desanuviar a gravidade das cenas que descreve. Quando digo que vou gravar as perguntas em português, ele recomenda:
- Fale o português clássico – não aquele português cheio de gírias que você usa lá onde você mora!
Permite-se um comentário sobre a pífia atuação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2006. Diz que os brasileiros não jogaram nada.
A pregação de Frank destoa do coro dos que dizem que o nazismo é uma página virada na história alemã. O alemão Frank diz que a Alemanha não vai se desvencilhar desse fardo. A mancha, diz ele, é irremovível.
Quando confrontado com os crimes que cometeu, o pai de Niklas Frank declarou ao Tribunal de Nuremberg :
- Mil anos se passarão antes que a culpa da Alemanha desapareça.
O Reich – que duraria mil anos – se tornou um fardo de mil anos. Neste ponto, pai e filho concordam.
“Depois de toda guerra/ alguém tem de fazer a faxina/As coisas não vão se ajeitar sozinhas/ Alguém tem de tirar o entulho das ruas/para que as carroças possam passar com os corpos/Alguém tem que abrir caminho pelo lamaçal e as cinzas/as molas dos sofás/ os cacos de vidro/os trapos ensangüentados(…)/Não é fotogênico e leva anos/ Todas as câmeras já foram para outra guerra” – é o que reza o poema “O Fim e o Início”,escrito pela polonesa Wislawa Szymborska e divulgado no Brasil pela revista Piauí.
Aos olhos de Niklas Frank, o desfile das carroças nunca acabou.Não vai acabar nunca. Porque elas estão levando as centenas de milhares, os milhões de corpos dos prisioneiros que perderam a vida sob as ordens de Açougueiro da Polônia.
Niklas Frank poderia ser personagem deste poema. É alguém que, solitariamente, se dá ao trabalho de fazer a faxina moral da família Frank, para que as carroças possam passar com os corpos. Aos olhos de Niklas Frank, o desfile das carroças nunca acabou. Não vai acabar nunca. Porque elas estão levando as centenas de milhares, os milhões de corpos dos prisioneiros que perderam a vida sob as ordens de Açougueiro da Polônia.
A gravação completa do nosso encontro com o filho do Açougueiro da Polônia, numa manhã gelada de Eklak, sob um céu de chumbo que prenunciava tempestade e nevasca:
Qual foi a primeira reação que o senhor teve quando descobriu que tinha um pai que era um notório criminoso de guerra?
“Eu era criança no momento em que os jornais voltaram ser publicados de uma maneira democrática, logo depois da guerra. Vi fotos de montanhas de corpos. As legendas das fotos sempre traziam a palavra “Polônia”. Como criança, eu sempre soube que a Polônia era nossa! Em me perguntava: o que será que a Polônia tinha a ver com aquela montanha de corpos? Tive,ali, o primeiro choque. Devo dizer que este choque me acompanha por toda a minha a vida, até hoje: ali, descobri que eu era membro de uma família criminosa.
Três das minhas irmãs caminharam em outra direção: recusaram-se a reconhecer o que este tipo de foto mostrava. Diziam que aquilo era propaganda dos russos e das forças aliadas, os vitoriosos da guerra . Fui em outra direção . Doeu, com certreza. Tive o primeiro choque ao ver as fotos nos jornais. Eram corpos de crianças que tinham a minha idade!
Enquanto eu estava brincando e levando uma vida maravilhosa em Cracóvia, os nazistas estavam jogando crianças contra a parede , para matá-las, ou mandando-as para as câmaras de gás dos campos de concentração, a apenas trinta quilômetros dali. Tive um choque”.
Hans Frank foi condenado e executado no Tribunal de Nuremberg. Ao denunciá-lo novamente, o senhor não acha que deu a ele uma segunda setença de morte?
“Com certeza. Eu sentenciei de novo o meu pai à morte. Tentei encontrar algo de positivo sobre a vida do meu pai, mas não consegui. Porque ele era um mentiroso. Tinha um caráter truculento. Era um grande, um grande covarde.
Não encontrei nada que fizesse com que ele merecesse uma pena menor, como a prisão perpétua. Eu teria de condená-lo de novo à morte, por enforcamento. É uma pena, mas, para mim, esta é a maneira correta de agir. Tentei encontrar, na vida do meu pai, algo que ele pudesse ter feito contra Hitler ou para salvar vidas. Mas ele nunca fez algo assim. Tudo o que ele queria era ser amado por Hitler. Era a única coisa que importava para o meu pai. A única coisa!
O que ele sentia por Hitler era um amor profundo. Eu diria que era um relação quase homossexual. Descobri que meu pai teve uma experiência homossexual quando jovem, com dois professores. A ideologia do nazismo era totalmente contra a homosexualidade. Então, ele tinha de lutar para que ninguém descobrisse.
O meu pai era um homem tão bem educado e, ao mesmo tempo, tão estúpido”….
O senhor acha que o trauma deixado pelo regime nazista um dia vai ser superado, na Alemanha?
“Não acredito que exista trauma. Os alemães, especialmente gente comum, tentaram bastante que todo mundo se esquecesse do que tinha acontecido no III Reich : todas as coisas ruins que ocorreram durante aqueles doze estranhos anos. Mas tivemos a sorte de termos sido forçados a lembrar do que aconteceu. Todos irão se lembrar sempre daqueles doze anos sangrentos.
Só espero que ninguém se esqueça daqueles anos, tanto aqui na Alemanha como fora. Todo mundo na Alemanha quer comparar os crimes de guerra alemães com outros crimes, como, por exemplo, o bombardeio de Dresden ou o que aconteceu no Vietnam ou na Coréia ou em Hiroshima.
Todos, no mundo todo, sabem que aquele foi o único período da história universal em que um povo altamente industrializado promoveu o extermínio em massa de gente inocente, em escala industrial. Não se pode comparar com nada.
Ao fazer estas comparações, os alemães querem diminuir os seus próprios crimes. Graças a Deus, não conseguiram. Porque todos, no mundo todo, sabem que aquele foi o único período da história universal em que um povo altamente industrializado promoveu o extermínio em massa de gente inocente, em escala industrial. Não se pode comparar com nada. O Holocausto foi um comportamento alemão, um crime alemão”.
A SEGUIR: A LEMBRANÇA DA INFÂNCIA : O FILHO DO CARRASCO NAZISTA SE DIVERTE NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO, SEM TER IDÉIA DO QUE ACONTECIA LÁ
Posted by geneton at dezembro 3, 2009 05:56 PM