PELÉ
O DESABAFO DE PELÉ NO OUVIDO DOS MARCADORES : “MAS VOCÊ PARECE MINHA MULHER ! NÃO ME DEIXA SOZINHO NUNCA!”
…E o Dossiê Geral apresenta : o Rei Pelé !
O blog publica esta semana, em dois tempos, dois depoimentos do maior jogador que já passou pelos gramados do planeta. O primeiro foi gravado em Londres, “clandestinamente”. O segundo é uma entrevista que o locutor-que-vos-fala gravou no apartamento de Pelé em Nova York.
Primeiro tempo:
Cena londrina: o “Rei” se trancou durante uma tarde inteira num pequeno estúdio de televisão em Candem Town, no norte de Londres, para fazer confissões sobre uma carreira até hoje inigualada. Quando o vídeotape começa a rodar, Pelé revela, por exemplo, qual foi a única vez em que suas pernas tremeram no gramado do Maracanã.
Adiante, confessa que, quando criança, sonhava com uma profissão que igualmente o levaria às alturas, mas não tem nada a ver com o futebol. Saudoso, dá o nome do jogador da seleção brasileira com quem se entendia, dentro de campo, apenas pelo olhar: uma cumplicidade muda que enlouquecia os adversários. Um dos gols mais bonitos marcou quando oficialmente já tinha se despedido do futebol: jogava pelo Cosmos de Nova Iorque.
O depoimento traz surpresas. Ao contrário do que todos pensam, o jogo “mais duro” da desastrada campanha brasileira na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966, não foi a derrota que eliminou o Brasil. Pelé fala com orgulho sobre o dia em que o Santos parou uma guerra na África. Diverte-se quando descreve a odisséia do juiz colombiano que foi enxotado do estádio para que Pelé, expulso de campo, voltasse a jogar.
Por fim, lamenta que jamais conseguiu saciar uma curiosidade: diz que até hoje se interessa em saber o que é que, afinal, significa o nome Pelé – a marca registrada do Brasil no exterior.
Pelé tinha chegado ao estúdio numa limousine branca de seis portas. Pouca gente sabia deste compromisso do Rei. Quem testemunha, por puro acaso, a chegada do “atleta do século” a este prédio de tijolos aparentes paga reverências: o porteiro do prédio não perde a chance de posar para uma foto ao lado do ídolo. Lá dentro, zelosas funcionárias tratam de cumprir ao pé da letra o papel universalmente destinado a assessores: o de atrapalhar até onde for possível o trabalho de repórteres.
O astro vai cumprindo pacientemente o que as assessores decidem. Só ensaia uma reclamação bem-humorada quando a responsável pela maquiagem insiste em espalhar um pó pelo rosto do “Rei” para evitar o reflexo das luzes: “Não precisa! Não precisa! Todo mundo me conhece….”.
Um grupo de crianças – comandado pela sobrinha de uma das funcionárias – leva bolsas, camisas e fotos para Pelé autografar. O “Rei” improvisa, então, uma curta aula de futebol: pergunta a cada um o que é mais importante na hora de chutar. Ouve respostas desencontradas. Trata de esclarecer : o mais importante num chute é a posição da perna de apoio:
- Se você vai chutar com a perna esquerda, a perna direita deve estar bem equilibrada. Parece fácil, mas nem todo mundo se lembra…
Os meninos ouvem a explicação, silenciosos e atentos. Vão ter o que contar quando chegarem à escola, no dia seguinte.
Gravado em seis fitas de vídeotape, em dezembro de 1995, o depoimento terminou se transformando numa espécie de autobiografia eletrônica do Rei. Pelé gravou o depoimento ora em português, ora em inglês. A gravação foi patrocinada pelo cartão de crédito que contratou Pelé como garoto-propaganda de luxo, o Mastecard.
Correspondente do jornal O Globo em Londres, escondo um gravador junto a uma das caixas de som do estúdio, sem ser notado pelos funcionários da produtora contratada para filmar a performance verbal do Rei.
Sem saber que um repórter brasileiro estava “grampeando” suas palavras, o Rei Pelé começa a falar, para público estrangeiro, sobre as façanhas do maior jogador de futebol de todos os tempos:
A OUTRA PROFISSÃO: “Quando eu tinha uns doze anos de idade, sonhava em ser piloto de avião. Ficava olhando os aviões passando por sobre os campos. Pensava comigo: “Um dia, vou ser piloto”. Hoje, tanto tempo depois, acho que tenho mais hora de vôo do que muitos pilotos…Mas meus primeiros pensamentos, quando bem jovem, eram dirigidos para o sonho de ser piloto”.
O DIA EM QUE O REI TREMEU: “Tive a felicidade de marcar 1.263 gols. Posso dizer que o gol mais importante, para mim, foi o que marquei na Copa do Mundo de 1958,na partida contra o País de Gales. Eu tinha dezessete anos de idade. O Brasil ganhou de um a zero. O gol foi meu. O Brasil, então, classificou-se para o final da Copa. O outro gol que foi importante, porque o mundo inteiro estava esperando, foi o milésimo, marcado de pênalti contra o Vasco da Gama, no Maracanã, em 1969. Todos dizem que gol de pênalti é fácil. Não é. Só é fácil quando o placar já foi definido. Numa final, ou quando todos estão olhando para você, não é fácil. Que eu me lembre, foi a primeira vez que minhas pernas tremeram no Maracanã, porque todos gritavam Pelé, Pelé, Pelé”. ( O milésimo gol foi marcado no Maracanã, às 23:11h do dia 19 de novembro de 1969, diante de 65.167 torcedores, em jogo que terminou com a vitória do Santos sobre o Vasco da Gama, por 2 a 1).
O MENINO QUE INSPIROU O MILÉSIMO: “Pouco antes de fazer o milésimo gol, eu tinha visto um menino de rua arrombando carros. Era um daqueles garotinhos de praia,em Santos. Eu disse a ele: “Não faça isso!”. O garotinho ainda brincou comigo: “Mas eu só estou roubando carros de São Paulo.Não são daqui de Santos,não….”. Reclamei: “Não pode ! Isso não é coisa de criança!”.
Uma semana depois, fiz o milésimo gol. A primeira coisa que me veio à cabeça foi pedir proteção às crianças. Comecei a jogar entre os profissionais aos dezesseis anos. Tinha – e tenho – ligação com as crianças. Chamei, então, a atenção da sociedade. Jornalistas disseram que era demagogia: o que eu estava querendo era “aparecer em cima das crianças”….
Mas a verdade é que eu já estava vendo o problema. Infelizmente, hoje, tanto tempo depois, a gente vê o problema da violência em todos os lugares, principalmente no Brasil. Tudo porque o governo e a sociedade não se preocuparam com a educação das crianças. Daquela época para cá, já se passaram trinta anos. Teríamos tido uma geração diferente,se fosse feita alguma coisa”.
O GOL AMERICANO: “Vi meus gols em vídeotape. Porque a verdade é que, na hora do jogo, a gente não vê. O gol de bicicleta que fiz pelo Cosmos de Nova Iorque foi um dos mais bonitos que vi, entre os que fiz. Igualmente, o gol que ganhou uma placa no Maracanã, contra o Fluminense.O gol de bicicleta foi um dos melhores. Em toda a minha carreira, fiz três gols assim: este pelo Cosmos, um no Brasil e outro na Europa”.
O MELHOR PARCEIRO EM CAMPO: “Joguei na Copa do Mundo de 1958 com um jogador que, para mim, era excelente, porque combinávamos muito bem: Garrincha. Era excelente jogar com Garrincha, porque ele ia à linha de fundo. Didi, no meio-de-campo, também foi um grande parceiro. Depois, tive em Coutinho, centro-avante do Santos, um excelente parceiro. Coutinho é que criou a tabelinha com Pelé. Por fim, na última Copa do Mundo que joguei, no México, tive um grande parceiro em Tostão. Era um jogador muito inteligente, sabia tocar a bola, sabia voltar: pelo olhar, ele já sabia para onde a bola ia. São estes os jogadores com quem mais me adaptei. Mas, em vinte e cinco anos de carreira, joguei com outros muito bons”.
A VITÓRIA MAIS DURA, EM 1966: “A partida contra a Bulgária,na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, terminou com vitória do Brasil por dois a zero,mas, para mim, este jogo foi mais duro do que contra Portugal – que nos venceu por 3 a 1. O que aconteceu comigo contra Portugal foi uma fatalidade ( N : Pelé teve de deixar o campo amparado,porque não conseguia andar. Desde o início do jogo, Pelé foi perseguido em campo pelo zagueiro Vicente ). É evidente em todo caso, que aquela falta foi cometida por trás. Hoje, aquele jogador português seria expulso, sem dúvida. Mas houve também problemas no jogo da Inglaterra contra a Argentina – partida dura e difícil – e na decisão entre Inglaterra e Alemanha. A copa de 1966 foi dura e violenta”.
O DESABAFO AOS MARCADORES: “VOCÊ PARECE MINHA MULHER!” : “Os treinadores adversários sempre diziam a um dos jogadores: “Você vai marcar Pelé”. Então, este jogador ficava o tempo todo colado comigo. De vez em quando, eu tinha de dizer a eles: “Mas você parece minha mulher! Não me deixa sozinho nunca!”. Eu tinha dificuldade para jogar assim. Pedia a eles:”Vá jogar um pouco! E aí então você me marca!”. Tínhamos esse tipo de discussão dentro de campo. Era problemático. De qualquer forma, em vinte e cinco anos de carreira, só tive duas contusões sérias. É um saldo positivo. Uma foi contra Portugal,na Copa de 1966. Fui atingido por trás. Da outra vez que tive um problema sério, me machuquei sozinho, ao chutar uma bola. Tive uma distensão grave. Agradeço a Deus por ter tido somente estes dois problemas sérios, em tanto tempo de carreira”.
O PREÇO DA FAMA: “Ser tão conhecido me traz uma grande responsabilidade. Você perde um pouco de privacidade, sem dúvida. De vez em quando, nas viagens, preciso usar um chapéu e um bigode postiço. Por outro lado, é bom saber que as pessoas gostam de mim. Sou uma das poucas figuras, no mundo, que podem dizer: “Tenho as portas abertas no mundo inteiro….”. Onde quer que eu vá – na África, na Ásia, na América do Sul – tenho uma grande responsabilidade. Não posso cometer enganos”.
A CRÍTICA AOS TREINADORES: “O treinador, primeiro, tem de fazer o papel de psicólogo; precisa atuar como um amigo do garoto em início de carreira. É como se ele fosse um irmão mais velho, mais do que um treinador de futebol. Independentemente de qualquer coisa, o treinador precisa ser um bom observador. O que vejo hoje, em quase todos os treinadores de divisões inferiores, infantis ou juvenis, é que eles querem impor uma maneira de ser, querem impor estratégias, querem que o jogador jogue feito uma máquina. As crianças não têm liberdade. Isso é ruim! Treinador de infantil e juvenil tem de dar liberdade ao jogador para que ele possa criar. Somente depois é que o treinador deve tirar os defeitos”.
1970: “EU NÃO SABIA SE RIA OU SE CHORAVA”: “Quando fui para o México, em 1970, já pensava em me despedir do futebol depois daquela Copa. Poder me despedir por cima, como campeão, foi maravilhoso. Eu não sabia se ria, se chorava, se pulava. A verdade é que todos os jogadores ali, como Gérson, Carlos Alberto, Félix, Brito e até Jairzinho pensavam em disputar no México a última Copa de suas carreiras. Das quatro Copas do Mundo que disputei, a de 1970 foi a melhor para mim. Não tive contusão, joguei todas as partidas. A seleção brasileira de 1970 foi a melhor de todos os tempos”.
HOJE, JOGADORES QUEREM DINHEIRO: “Quando comecei a jogar, entre 15 e 16 anos de idade, recebia algum dinheiro do Santos – que usava para ajudar minha família. Um ano depois, fui chamado para a Seleção Brasileira. Aos 17 anos, já estava na Copa do Mundo, na Suécia. Clubes estrangeiros começaram a me chamar, principalmente italianos e espanhóis. Alguns jogadores brasileiros se transferiram, como Didi ou Garrincha. Mas eu nunca quis deixar o Santos. Depois, ao longo de minha carreira, recebi outras propostas. Mas nunca quis jogar apenas pelo dinheiro. Fui jogar no Cosmos depois de abandonar o futebol porque queria promover o esporte nos Estados Unidos. Hoje, é diferente. Jogadores já não se ligam tanto aos clubes. Atuam um ano num lugar; no ano seguinte, em outro. Querem o dinheiro. É uma abordagem diferente.
Eu, pessoalmente, nunca quis sair do Brasil. O dinheiro que eu ganharia fora do país seria umas três vezes maior. Mas eu estava bem no Brasil, porque nunca joguei por dinheiro”.
UMA CURIOSIDADE QUE RESISTE: “Tento até hoje descobrir – na África, por exemplo – algo que me ajude a entender o que significa a palavra Pelé. Comecei a jogar futebol na rua quando tinha uns seis, sete anos. Meu pai era jogador. Um dos meninos que jogavam na rua com a gente, em Bauru, passou a me chamar de “Pelé”. Eu não entendia, porque o meu nome era Édson. Tinha orgulho do meu nome, porque Thomas Édison era um grande homem. Tinha inventado a lâmpada…Quando este menino começou a me chamar de “Pelé”, briguei com ele: “Meu nome é Édson! Por que é que você me chama de Pelé? “. Ninguém sabia o que Pelé significava. Fui,então, para a escola. O mesmo grupo de garotos passou a brincar comigo na sala de aula. Briguei com um deles. Peguei dois dias de suspensão. O meu pai foi chamado à escola. O professor disse que eu tinha brigado por causa do nome – “Pelé”. A escola inteira, então, começou a me chamar de Pelé, para gozar comigo. Eu detestava o nome “Pelé” no início. Hoje, gosto”.
O REI PÁRA UMA GUERRA: “Guardo até hoje com alegria o fato de ter estado na delegação do Santos durante uma viagem à África, em que pudemos dizer que paramos uma guerra por uma semana. Primeiro, jogamos numa ilha. Fizemos uma grande partida. Fiz uns três gols. Quando íamos sair para jogar em outra ilha, disseram que havia uma guerra lá.”Mas, se vocês forem, a guerra pára”. Isso foi uma coisa maravilhosa em nossa vida. O Santos,com Pelé, parou uma guerra na África – pelo menos, enquanto a gente estava lá. O ideal seria que tivéssemos parado a guerra para sempre”
O JUIZ É EXPULSO, PARA QUE PELÉ VOLTE A JOGAR: “Viajamos para jogar na Colômbia, numa época em que o Santos sempre ganhava. Tínhamos sido campeões do mundo interclubes por duas vezes. O estádio estava lotado. Houve, então, uma briga no meio-de-campo. Eu, Eu,Coutinho e Doval estávamos juntos. Os dois eram negros, parecidos comigo. Tinham o mesmo porte físico, tudo igual. Armaram a confusão. O juiz não viu direito quem foi. Eu estava tentando resolver a briga quando o juiz decidiu expulsar um jogador de cada lado. E me expulsou! Eu disse: “Mas eu não estava brigando!”. O juiz respondeu: “Não quero saber!”. Então, saí de campo. De repente, já no vestiário, ouvi um barulho, uma confusão do lado de fora. A polícia chegou. Vieram me chamar: “Volta!”. Eu disse que não poderia voltar, porque tinha sido expulso. E eles: “Volte, porque o juiz é que vai sair. Quem vai apitar o jogo é o bandeirinha. Você vai jogar!”. Voltei. O juiz é que foi expulso….”. ( O jogo contra o Millionarios, no estádio El Campin, terminou com a vitória do Santos por 5 a 1).
OS MAIORES : “É difícil dizer, porque joguei contra grandes jogadores. Mas poderia citar George Best – que seria um grande jogador, se não fossem os pequenos problemas de cabeça que teve. Atuei contra Bob Charlton, excelente jogador. Igualmente, Cruiff, Eusébio,Beckenbauer, Bob Moore. Di Stefano e Puskas foram excelentes. Tivemos uma boa fase de Maradona.. Nestes últimos tempos, foi o jogador que apareceu melhor. Um pouco antes, tivemos Zico. Alguns dos melhores foram estes”.
OS GRANDES MARCADORES: “Nunca foi fácil jogar, principalmente na minha situação, eu que era sempre marcado homem a homem. Tive marcadores que admirava, como Passarela, Nilton Santos,Beckenbauer e Bob Moore. O italiano Fachetti também foi um bom marcador”.
A VIDA EM VÁRIAS FRENTES: “Tenho a base ( financeira) que obtive no futebol. Toda vez que há eleição no Brasil, alguém me oferece: quer ser candidato a presidente? Digo que não. Não quero fazer política diretamente.Quero ajudar, mas não como presidente. De vez em quando, me oferecem a possibilidade de ser candidato a presidente da Fifa. Não sinto que deva”.
O DESCANSO DO REI: “Gosto de passar meu tempo livre com meu violão – fazendo música. Tenho algumas gravadas. Gosto também de fazer música para crianças. Outra coisa que gosto de fazer, quando tenho tempo de relaxar, é pescar. Vou pescar no barco de um amigo. Ou então me recolho a meu sítio, no interior de São Paulo, onde existe uma lagoa. Lá, passo uma semana, dez dias, depois de um ano inteiro de trabalho. Volto relaxado”.
O DESTINO: “Meu pai era jogador. Quando eu via meu pai jogando, pensava: “Um dia, vou ser igual a ele”. Mas nem sempre ele ganhava. Quando meu pai perdia, chegava em casa inseguro. Pensei: tenho de me preparar para não perder nunca- e ganhar sempre. Nasci para jogar futebol. Deus me deu esse destino”
Posted by geneton at junho 29, 2010 11:07 AM