GILBERTO FREYRE
DO CADERNO DE ANOTAÇÕES : O RELATO DE UM PUNHADO DE ENCONTROS COM GILBERTO FREYRE, O BRASILEIRO QUE TINHA CORAGEM DE SE DECLARAR PUBLICAMENTE UM “GÊNIO”. E ERA.
Gilberto Freyre merece um monumento, pago pelos repórteres pernambucanos. A homenagem só não se concretiza por duas razões. Primeira : o homem já é incensado como o maior sociólogo já surgido na Terra de Vera Cruz. Não precisa de novos títulos. Segunda : onde é que repórteres mal pagos iriam desencavar dinheiro para financiar a construção do monumento ? Em todo caso, o monumento se justificaria, porque Freyre era um desses (raros) personagens em que os repórteres podiam apostar todas as fichas,sem medo de errar. Pule de dez : quem o procurava para uma entrevista voltava para a redação com uma declaração interessante -registrada no bloco de anotações ou preservada para a posteridade na fita cassete. Era tecnicamente impossível sair de mãos vazias de uma incursão pelo reino do Mestre de Apipucos.
Lá estava ele – repousado numa poltrona do Solar de Apipucos ou enfurnado no salão de tapete azul da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, pronto a ditar belas frases para os repórteres. Quando ditava uma declaração,metia na frase aqueles advérbios de modo surpreendentes;aqueles adjetivos que pareciam ter sido criados por ele. Gostava de discorrer sobre o “tempo tríbio” – um princípio tipicamente gilbertiano.O tempo não é só o presente.É uma interseção de passado,presente e futuro.
O MESTRE FALAVA
COMO ESCREVIA
O Solitário de Apipucos era um caso raríssimo de gente que fala como escreve. Quando transcreviam as declarações, os repórteres tinham a sensação de que ali estava um artigo do Mestre, escrito com todas as belas firulas de estilo que ele cultivava como poucos. Freyre era um dedicado jardineiro da Última Flor do Lácio. Como se não bastasse, fazia a alegria de editores com declarações que, hoje, seriam catalogadas no rol das crenças politicamente incorretas. Qualquer iniciado nos mistérios do jornalismo sabe que declaração politicamente incorreta sempre rende boa matéria. Um exemplo ? Gilberto Freyre dizia que a presença de analfabetos era saudável para a cultura brasileira. Porque só os analfabetos eram capazes de dar à cultura de um país um saudável toque primitivo. Enquanto o resto da humanidade dizia que o analfabetismo era um mal a ser erradicado, Freyre respondia que não,calma,não é bem assim. O analfabetismo eventualmente poderia ser saudável. Os militantes da Crença Politicamente Correta espumavam de raiva diante de tiradas como essa. Freyre parecia dizer,em resumo,que nada é tão simples quanto faziam parecer os esquemas mentais “politicamente corretos”.
Eu, mero Coletor de Declarações Alheias, fui personagem de um incidente jornalístico com o Mestre de Apipucos. Procurei-o na sala da presidência da Fundação Joaquim Nabuco para uma entrevista, na semana em que ele comemorava setenta e sete anos de vida, em 1977. O Mestre andava ressabiado com a imprensa. Tinha pegado uma briga com a revista “Veja”, por conta de inexatidões no texto de uma entrevista. Mas disse “sim” ao meu pedido. Estudante de Jornalismo, eu era repórter da sucursal de “O Estado de São Paulo”. Fazia eventualmente entrevistas para o finado “Jornal da Cidade”.
O GÊNIO INTERROMPE A
ENTREVISTA.QUERIA
CONSULTAR O DICIONÁRIO
Freyre me surpreendeu três vezes durante a entrevista. Primeiro, perguntou, textualmente : “Quais são os seus estudos ? “. Do alto dos meus vinte anos de idade, devo ter desapontado o Mestre ao informar que, àquela altura, meus estudos se concentravam no terceiro ano de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Em seguida, ao falar sobre o presidente americano Jimmy Carter,ele interrompeu a entrevista para pedir à secretária que trouxesse um exemplar do Dicionário do Aurélio. Depois de checar todos os significados da palavra “estonteado” , viu que este era o adjetivo ideal para definir as atribulações do presidente diante da política internacional.Olímpico,indagou ao repórter : “Viu como uso o dicionário ? “.
Vi,sim. A lição ficou. Devo ter matutado, intimamente: se o Mestre de Apipucos consultava o Dicionário assim sem a menor cerimônia, diante de visitas, o mínimo que eu deveria fazer dali para frente seria pedir socorro ao Pai dos Burros sempre que tivesse a menor dúvida sobre o significado de uma palavra no meio de uma frase. Thank you,Master.
A terceira surpresa viria adiante. Fiz uma lista de personalidades que o Mestre deveria definir em uma frase. Perguntei como ele definiria o arcebispo de São Paulo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns – uma figura que, na época, frequentava quase que diariamente as páginas dos jornais,na condição de um dos porta-vozes da oposição ao regime militar.Freyre me devolveu a pergunta : “Quem é mesmo ? “.
Somente um marciano recém-pousado às margens do Capibaribe não saberia dizer quem era o arcebispo de São Paulo. Freyre fez de conta que não sabia. Preferiu recorrer à ironia, com o ar mais inocente do mundo.Quem o visse fazer a pergunta pensaria que ele não sabia de verdade quem era Dom Paulo.
DESASTRE.O REPÓRTER OUVE MAL
A PALAVRA DE FREYRE
O desastre viria depois. Perguntei : “Qual o sabor destes 77 anos ? “.
O homem respondeu : “Eu quase não faço diferença entre 77 anos,67,57. Pela simples razão de que tenho uma tal saúde que preciso, a cada momento, dizer a mim mesmo: lembre-se de que é velho,porque não me sinto velho”.
A causa do incidente em que me vi involuntariamente envolvido foi a última frase. Freyre jura que disse que não se sentia “velho”. Ao transcrever a fita, entendi que ele tinha dito que não se sentia “bem”. Assim a entrevista foi publicada : com a palavra “bem” no lugar de “velho”.Vaidosíssimo,Freyre tremeu nas bases ao ler que teria declarado não estar se sentindo “bem”.
A ira do Mestre de Apipucos desabou sobre os ombros deste Coletor de Declarações Alheias. Abro o “Diário de Pernambuco” do domingo seguinte à publicação da entrevista – primeiro de maio de 1977. Eis o que o Mestre escreve, logo no primeiro parágrafo : “Concedi há pouco a jovem jornalista que me pareceu -e é – inteligente e de algumas letras, a entrevista que com muito empenho me solicitou.Entrevista gravada.Mas a gravação não é garantia absoluta de que o entrevistador apresente as palavras do entrevistado na sua exata e desejável pureza.Acontece a resposta do entrevistado à primeira pergunta desse simpático entrevistador não se apresentar de todo exato.(…)O que mostra que o tradutor de gravações,como outros tradutores,pode ser um traidor.Inexatidão que me faz pensar na força de preconceitos sobre os próprios jovens inteligentes.Um desses preconceitos o de a velhice ser fatalmente uma fase da vida de achaques e de dissabores”.
Freyre dedicou todo o artigo ao tema. Citou o exemplo de Picasso(“criativo e saudável” depois dos noventa), Pablo Casals, Bertrand Russel. Partiu da suposição – equivocada – de que eu, jovem, alimentava preconceitos contra velhos. Terminou dizendo que tinha ânimo de sobra para “viver,escrever, pintar, ler,beber um pouco de vinho,saborear uns tantos quitutes, ir a teatros”.
Tudo o que aconteceu,na verdade, foi a troca de uma palavra na transcrição da entrevista.Voltei a ouvir a fita. De novo,entendi que ele tinha dito que não se sentia “bem”. Mas preferi acreditar no que ele dizia no artigo. Gilberto Freyre deve ter dito mesmo que não se sentia “velho”.Pensei com meus botões : um desastre acaba de se consumar.Eu, repórter,acabara de perder para sempre um excelente entrevistado. Tive a tentação de concordar de uma vez por todas com o que dizia Carlos Drummond de Andrade : não adianta,a vida é um “sistema de erros”,um “vácuo atormentado”,um “teatro de injustiças e ferocidades”.
O INTELECTUAL MAIS VAIDOSO DO BRASIL
DIZ QUE É O “ÚNICO GÊNIO VIVO”
Resisti à tentação de escrever um artigo em resposta ao Mestre. O meu senso de ridículo me salvou. Quem era eu,o Famoso Anônimo, para peitar o Mestre de Apipucos ? Quem era eu,mero Coletor de Declarações Alheias, para desdizer o Autor de Frases Geniais ? Tomei uma providência longe dos olhos dos leitores.Fiz uma carta pessoal ao Mestre.Disse a ele que considerava estúpido qualquer preconceito contra velhos.Era fã de carteirinha de Bertrand Russel.Deixei a carta na antessala da presidência da Fundação Joaquim Nabuco. Zarpei. Bye, bye.
Passei a temer, intimamente, o dia em que fosse escalado para uma nova entrevista com o mestre Gilberto Freyre. O dia chegaria,cedo ou tarde. Chegou antes do que eu esperava ; a chefia de reportagem de O Estado de S.Paulo pedia que a sucursal do Recife ouvisse Freyre sobre a censura.Eu não podia fugir da tarefa. Lá fui eu, o cordeiro, para o matadouro. Freyre estava participando de uma reunião do Conselho Estadual de Cultura, num casarão antigo,ali, em frente ao Colégio Nóbrega. Fiquei na antessala, à espera de que o concílio dos intelectuais se encerrasse. Era o momento de abordar o Mestre de Apipucos.
Ei-lo : vestia um terno escuro. Andava ligeiramente vergado. Intimamente,esperei que ele se desvencilhasse com um muxoxo do repórter que lhe dera tanta dor de cabeça. Ou me desse uma bronca pública diante de seus pares. Que nada. A reação do Mestre foi surpreendente. Deu-me um abraço apertado. Disse-me ao pé do ouvido : “Estou fazendo a melhor impressão de você !”. O acordo de paz foi firmado ali. Como vampiro em busca de sangue, voltei a importunar o Mestre de Apipucos repetidas vezes.Queria declarações bombásticas. É o que todo repórter quer,quando procura uma celebridade. Não existem santos nesse metier. Guardo, em meus arquivos implacáveis, as gravações das entrevistas. Numa, ele confessou : tinha uma avó que morreu certa de que ele, o neto, era “débil mental”.Freyre chegou aos oito anos “sem saber ler ou escrever”.
Como “penetra” (ou, para usar um eufemismo, repórter), participei da festa dos oitenta e três anos de Gilberto Freyre, no Solar de Apipucos, no dia 15 de março de 1983. Recém-empossado,o governador Roberto Magalhães foi render homenagens ao mais ilustre dos pernambucanos.Freyre segurava uma taça de licor (devia ser de pitanga).
Resolvi tirar uma velha dúvida.Por que será que ele era tão vaidoso ? Todo mundo em Pernambuco comentava que não existia ninguém tão vaidoso quanto o Mestre de Apipucos,mas ninguém o abordava para perguntar,sem meias palavras,qual o motivo de tanta vaidade.
Freyre me respondeu,também sem meias palavras : “Eu me considero um gênio”. O repórter soltou fogos, intimamente, para comemorar a colheita de tal declaração. Adiante, embalado pelo ambiente de festa, Freyre diria que não existia nenhum gênio brasileiro vivo comparável a ele. Diante da insistência, citou dois mortos : Aleijadinho e Villa-Lobos.
Deve ter sido nossa última entrevista. A declaração de Freyre volta e meia é repetida. Ficou. Se houvesse justiça no mundo, nós, repórteres, deveríamos financiar a construção de um monumento ao Mestre de Apipucos. Poucos entrevistados terão produzido tantas declarações originais com tanta frequência.
O monumento teria o estilo das esculturas de Aleijadinho. Se fosse inaugurado ao som de uma Bachiana de Villa-Lobos, a festa estaria completa.Os três gênios – escolhidos a dedo pelo próprio Freyre – finalmente ficariam juntos por um momento.
Mas, ah, jamais haverá tal homenagem, porque a vida sempre foi e será um “sistema de erros” , um “vácuo atormentado”, “um teatro de injustiças e ferocidades” eventualmente povoado por personagens inesquecíveis.
Posted by geneton at agosto 6, 2010 10:48 AM