agosto 17, 2010

LIÇÕES DE JOEL SILVEIRA: REPÓRTER DE VERDADE É AQUELE QUE, NA CAMA DE UM HOSPITAL, NÃO SE ESQUECE DE CONTAR O NÚMERO DE AVIÕES AVISTADOS NO CÉU

Agosto. Faz três anos que morreu aquele que ficou conhecido como “o maior repórter brasileiro”- Joel Silveira. Convivi com ele durante exatos vinte anos, na condição de aprendiz. Fizemos dois livros em parceria: “Hitler / Stalin: O Pacto Maldito” ( sobre os efeitos que teve, sobre a esquerda brasileira, o pacto de não-agressão assinado entre a Alemanha e a União Soviética) e “Nitroglicerina Pura” ( um reportagem sobre documentos confidenciais produzidos por governos estrangeiros a respeito do Brasil).

Quando Joel morreu, escrevi dois textos ( em breve, o DOSSIÊ GERAL republicará um “tratado” que alinhavei sobre ele).

1
A VIDA IMITA O POEMA NA MORTE DE JOEL SILVEIRA: O AGENTE FUNERÁRIO CHEGOU NA HORA. E A PLACA DO CARRO ERA LFR 1236

Faz pouco tempo, descobri um belo poema de Lawrence Ferlinghetti. O poeta diz, com outras palavras, que o mundo é um belo lugar, mas um dia, cedo ou tarde, ele virá : o agente funerário sorridente.

E o agente veio. Acabo de sair da casa de Joel Silveira. Não quis ver a saída do corpo. A Santa Casa de Misericórdia avisou que o agente chegaria às duas horas. Pensei comigo: “Com a pontualidade brasileira, ele vai chegar lá para as quatro da tarde”. Engano. Nem uma hora e cinquenta e nove minutos nem duas horas e um : eram duas em ponto quando o agente apertou a campainha, no apartamento de Joel Silveira, no sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana. O agente encenava, sem suspeitar, o poema de Lawrence Ferlinghetti. Era como se dissesse: tudo pode atrasar no Brasil, mas a morte, quando vem, chega exatamente na hora, sem tolerância. Nem um segundo de atraso.

Desci do sexto andar. Lá embaixo, tive o gesto inútil de observar a placa da Kombi branca da Santa Casa de Misericórdia: LFR 1236. A Kombi trazia, nas laterais, o nome da Santa Casa e o telefone: 0800 257 007.

Joel tinha inveja de um personagem de Vitor Hugo que, minutos antes de ser guilhotinado, dizia, resignado, que estava pronto para a execução,mas “gostaria de ver o resto”. Ou seja: o personagem gostaria de descrever a própria morte. Que palavras Joel usaria ?

Quanto a nós, discípulos e aprendizes, já não há o que fazer, além de anotar a placa da Kombi : LFR 1236, três letras e quatro números amargamente inúteis.

2
O que dizer de um grande repórter ?

Diga-se que, numa tarde, sem ter o que fazer num quarto de hospital, ele foi capaz de contar o número de aviões que cruzavam os céus.

A cena, testemunhada pelo abaixo-assinado:

Enrolado num lençol verde para atenuar o frio do ar-condicionado ligado na potência máxima, o ex-correspondente de guerra Joel Silveira descobriu uma maneira originalíssima de combater o tédio que se abatia sobre ele nas tardes infindáveis do quarto 1122 do Hospital dos Servidores do Estado, no centro do Rio, numa das vezes em que esteve internado : resolveu contar quantos aviões passavam no céu.

O quarto 1122 oferece uma bela vista da Ponte Rio-Niterói. Da cama de Joel, era possível enxergar o intenso tráfego de aviões que se dirigiam ao Aeroporto Santos Dumont. “Já contei quarenta e três aviões. Agora, chega” – disse,ao dar por encerrada a apuração de dados aeronáuticos para uma reportagem que, ele sabia, jamais seria escrita.

A contagem de aviões nos céus do centro do Rio foi a última tarefa jornalística daquele que era chamado por Assis Chateaubriand de “a víbora”.

O apelido lhe foi dado pelo chefão dos Diários Associados depois que Joel escreveu uma reportagem recheada de ironias sobre as damas do soçaite paulistano. O título de “maior repórter brasileiro” também acompanhou inúmeras vezes o nome de Joel Silveira – que, aos trinta e dois anos, foi enviado por Chateaubriand para os campos de guerra na Itália,na Segunda Guerra Mundial.

”Fui para a guerra com 32 anos.Voltei com 80.O que a guerra nos tira – quando não tira a a vida – não devolve nunca mais” – diria, pelo resto da vida. Viu o sargento Wolf ser fuzilado por uma patrulha alemã. O texto que Joel mandou para os Diários Associados começava na primeira pessoa : “Vi perfeitamente quando…..”.

Joel Silveira era representante de uma categoria rara : a dos repórteres que dão um toque pessoal e inconfundível ao que escrevem. Passou a vida lamentando não ter abordado Ernest Hemingway que, solitário, bebia conhaque num café da Paris do pós-guerra.”Perdi a chance de pedir uma entrevista. O pior que poderia acontecer era levar um soco de Hemingway- o que garantiria uma bela matéria”. Rubem Braga foi companheiro de Joel na aventura européia durante a guerra.

Com Nélson Rodrigues – de quem foi companheiro de redação em publicações como a Manchete a e Última Hora – Joel tinha relações distantes.

Depois de ficar em silêncio observando Joel datilografar furiosamente um artigo na redação, Nélson Rodrigues soltou uma exclamação: “Patético !”. Dias depois, Joel devolveu o gesto. Diante da mesa de Nélson Rodrigues, bradou : “Dramático !”.

O humor afiado transformou-o em personagem de incontáveis histórias dos bastidores do jornalismo. Sempre que tinha chance, encaixava em seus artigos uma observação contra dois tipos que detestava gratuitamente : os tocadores de cavaquinho e os alpinistas.

“O cúmulo do ridículo – beirando o grotesco – é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”- escreveu, num dos seus livros.

Em outro texto,perguntou : “Pode haver algo mais idiota do que um alpinista ? “.

Depois de consumir quantidades oceânicas de uísque, passou os últimos anos da vida abstêmio.”Já não tenho com quem beber. Meus amigos se foram. Nada é tão triste do que beber sozinho”. Passou os últimos anos declarando : “Sou a maior solidão do Brasil”.

Repórter a vida inteira, dizia que, se houvesse justiça na hierarquia das redações, os donos dos jornais seriam subordinados aos repórteres. Só teve uma experiência como dono de jornal. Publicou, no início dos anos cinqüenta, um jornal, Comício, que reunia um time de primeira : Clarice Lispector, Rubem Braga,Fernando Sabino,Carlos Castelo Branco.

Dizia que tinha perdido a conta de quantos livros publicara. Entre os títulos mais conhecidos, estão “A Guerra dos Pracinhas”, “Tempo de Contar” e o autobiográfico “Na Fogueira”.

Resumiu assim uma trajetória iniciada num jornalzinho de escola em Sergipe,em 1935 : “Passei a vida vendo a banda passar.É o que todo repórter deve fazer”. Conheceu pessoalmente dois cardeais que, depois, seriam indicados Papas : João XXIII e Paulo VI. Teve um encontro com Pio XII. Os encontros com os Papas não foram suficientes para transformá-lo em homem religioso . Cético, gostava de repetir o poeta Murilo Mendes : “Deus existe.Mas não funciona”.

Atento aos fatos até o último momento, disse-me, por telefone: “Estou morrendo. É o fim”.

Uma das lições que aprendi: jornalista de verdade é aquele capaz de contar aviões na cama de um hospital.

Posted by geneton at agosto 17, 2010 10:44 AM
   
   
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