O DIA EM QUE O REPÓRTER FOI CONVIDADO PELA ACADEMIA PARA RECEBER UMA MEDALHA ( OU: QUINZE ANOTAÇÕES DE UM FORASTEIRO NO PETIT TRIANON )
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Repórter existe para fazer perguntas impertinentes, quando possível. Procurei o então presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Athayde, no início dos anos noventa, para saber: por que a Academia não elegeu o ex-presidente Juscelino Kubitschek ?
Aos que nasceram ontem: cassado pelo regime militar, JK amargava uma espécie de exílio interno no Brasil. Era o mais popular dos ex-presidentes. Mas não podia se candidatar a nada. Não havia eleição direta para prefeito de capital, governador de Estado e Presidente da República. Os generais se revezavam no Poder. A eleição de JK para uma vaga na Academia Brasileira de Letras se transformaria, obviamente, num acontecimento político. O discurso de posse seria um “acontecimento”. Quando as urnas da Academia foram abertas, no entanto, JK recebeu a pior notícia: tinha sido derrotado pelo escritor goiano Bernardo Élis.
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Não voltei de mãos vazias de minha expedição à Academia. O presidente Austregésilo, surpreendentemente, me disse que pode ter havido um “equívoco” na eleição que derrotou JK. Resulttado da primeira votação tinha sido JK 19 x Bernardo Élis 19. Segunda votação: JK 19 x Bernardo Élis 18. Terceira votação: JK 18 x Bernardo Élis 20. Que equívoco terá sido este ? Um acadêmico pode ter se confundido na hora de votar. “O ex-presidente poderia ter sido eleito”, disse-me o então presidente da Academia, “se à última hora não tivesse havido um equívoco de um dos nossos companheiros – que deixou de votar nele. Se não fosse o equívoco desse voto, Juscelino provavelmente teria sido eleito. Um acadêmico mudou de voto naquele momento”.
Quem terá “traído” o ex-presidente ? Jamais se saberá. A eleição é secreta. Os votos viram cinza depois de embebidos em álcool e incinerados numa urna que fica guardada num sala da Academia. Minha garimpagem rendeu esta revelação: a história completa da derrota de JK traz, ainda, capítulos obscuros.
O Caso JK é uma pequena mostra de que Academia obviamente não é infensa ao rol de sentimentos que move a comédia humana : grandezas, miudezas, glórias, fracassos, belezas, vaidades, traições, luzes, sombras, esplendores, escuridão. Aqui há também cintilâncias e apagões. C´est la vie.
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Duas décadas depois, desembarco novamente na Academia Brasileira de Letras – dessa vez, não para vasculhar os bastidores da eleição frustrada do ex-presidente, mas para receber uma medalha! Sem falsa modéstia – um sentimento que, aliás, frequentemente produz cenas patéticas – , devo confessar que tomei um susto quando recebi o comunicado da Academia. Jamais imaginei que um dia receberia um prêmio da ABL. Mas iria receber : por proposta do acadêmico Ledo Ivo, fui agraciado com a Medalha João Ribeiro, prêmio que seria entregue no dia em que a Academia comemorava cento e quinze anos de fundação. Lá vou eu.
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Meu demônio iconoclasta me sopra ao pé do meu ouvido esquerdo: “Quem diria! Você no templo acadêmico !”. Meu demônio moderado contra-argumenta, ao pé do ouvido direito : “Mas qual é o problema ? Academia é lugar em que se cultiva saber e se zela pela língua. Eis aí duas tarefas que o Jornalismo pode (e deve) exercer!. O mínimo que você pode fazer é agradecer o reconhecimento! Vá em frente, forasteiro!”.
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O que um repórter pode fazer, além de apurar os ouvidos e observar o movimento em volta? É o que faço. Enquanto não começa a solenidade de entrega de prêmios literários ( e da medalha ), viro partícipe ou ouvinte daqueles pequenos e inofensivos diálogos que costumam preencher os minutos de espera. Um acadêmico me faz um comentário simpático: “Quando os generais de pijama pensavam que ninguém ia incomodá-los, você chegou lá com suas perguntas….”. Fala das entrevistas que fiz para a Globonews com generais do regime militar. Numa roda, o filósofo Sérgio Paulo Rouanet se declara sinceramente espantado com o canto de guerra de soldados entoado durante treinamento militar. Um dos “versos” diz: “Arranca a cabeça/e joga no mar”. Não há nada menos acadêmico do que o canto bélico, mas os versos são recitados, com sincero espanto, sob o teto da Academia.
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Digo a outro acadêmico que uma vez fiz uma longa reportagem, na Academia, sobre os bastidores da derrota de JK. O acadêmico lembra que seria impossível recontar os votos, por exemplo, para constatar se houve ou não o tal “equívoco”. Tudo vira cinza, na urna. “Não fica rastro nem das traições”, constata.
Eis aí um toque irônico nos rituais acadêmicos : a porta de entrada para a “imortalidade” passa necessariamente pela fugacidade de votos que, em questão de minutos, são reduzidos a cinza, em nome do sigilo eterno. Murilo Melo Filho, jornalista, acadêmico, lembra que testemunhou uma cena inesquecível: estava na casa de Juscelino, na noite da eleição, à espera da notícia da vitória. Toca o telefone. Josué Montello, acadêmico e cabo eleitoral de JK, avisa ao ex-presidente que “dessa vez, não deu”. Ao receber a notícia da derrota, JK esconde a prostração. Começa a dançar com uma filha. Pareceu não acusar o golpe. “Mas, depois, ele sentiu…”, diz a testemunha ocular da dança.
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Cinco da tarde. Os convidados se dirigem para o salão nobre do Petit Trianon. A presidente Ana Maria Machado abre os trabalhos lendo o texto de um discurso pronunciado pelo fundador e patrono da Academia – o grande Machado de Assis. O salão confere um ar solene a tudo o que se diz ali. Fala-se em voz baixa. Um decorador implicante poderia notar que a Academia exagerou na policromia da sala : as cadeiras são azuis; as paredes, verdes ; as cortinas, amarelas. Deve haver algum sentido oculto na escolha das cores. Deve,sim. Mas me escapa.
Do alto de uma das paredes, um busto do patrono da Academia contempla, soberano, o trânsito de mortais e imortais, cá embaixo. Esculpida provavelmente em bronze, a imagem de Machado de Assis ganhou a companhia de outros dois bustos de acadêmicos: o de Austregésilo de Athayde e o de Afrânio Peixoto. Noto que, no busto, Austregésilo de Athayde parece bem mais jovem do que era. O bronze remoça.
Meu demônio iconoclasta volta a suspirar, perto do meu ouvido : “Ah, a ilusória imortalidade conferida por votos que se transformam em cinza e rostos que se transmutam em bronze…!”. Se é verdade que as últimas palavras de Goethe foram “luz,luz, luz!”, ei-las, literalmente: seis lustres pendem do teto, outros seis enfeitam as paredes. Há uma profusão de luzes – se bem, em ou outro lustre, lâmpadas queimadas implorem pela atenção de um zelador.
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Os principal prêmio, o Machado de Assis, vai para o mais recluso dos escritores brasileiros, o minimalista Dalton Trevisan. O homem não aparece, o que já era previsível. Mas manda um texto em que atribui a ausência aos impedimentos e inconveniências provocadas pela idade algo avançada. “Ai de mim”, suspira, por escrito. A plateia faz de conta que acredita na desculpa. Mas sabe que é mais fácil um daqueles bustos bronzeados começar a dançar do que Dalton Trevisan se materializar de repente, ali, num fim de tarde de quinta-feira, sob os lustres do Petit Trianon.
Faço uma breve consulta à história deste prédio, o Petit Trianon, um presente do governo francês à Academia Brasileira. O site da ABL informa que,”no Salão Francês, o Acadêmico eleito cumpre a tradição de permanecer sozinho, em momentos de reflexão, antes da cerimônia de posse”.
Eis aí uma boa pauta para repórteres eventualmente interessados em rituais acadêmicos : em quê cada acadêmico terá pensado neste breve momento de solidão ? Se o “vampiro” Dalton Trevisan tivesse levantado voo em Curitiba para pousar no Petit Trianon, quem sabe, poderia inaugurar uma nova tradição: pedir um momento de reflexão solitária antes de receber o prêmio Machado de Assis, láurea máxima da Academia.
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Há qualquer coisa de louvável na atitude de escritores, que, a exemplo de Dalton Trevisan, passam a vida se protegendo renitentemente das investidas do mundo exterior – aí incluídos os acenos acadêmicos. É como se dissesse: deixem-me só, as musas da literatura já me consomem todo o meu tempo, toda minha energia – que não quero gastar a bordo de aviões ou em quartos de hotel. Os espectadores da premiação da Academia entendem as razões daltonianas. Palmas para ele.
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Os outros agraciados recebem seus diplomas: Alberto Mussa ( pelo livro O senhor do Lado Esquerdo) , Ricardo Leão ( por Os Atenienses: a Invenção do Cânone Nacional) , Manoel de Barros ( por Escritos em Verbal de Ave – também não pôde viajar ao Rio, mas mandou a filha) , Rubens Figueiredo ( pela tradução de Guerra e Paz ), Caio César Boschi ( por Exercícios de Pesquisa Histórica) , Marisa Lajolo ( por O Poeta do Exílio) , Marcelo Rubens Paiva (pelo roteiro do filme Malu de Bicicleta ).
Que se diga: Marcelo Rubens Paiva mereceria um prêmio pelo belo cronista que é, além de roteirista eventual. Fico imaginando: quanta dedicação, quantas centenas de horas de trabalho não terá consumido a empreitada de traduzir um clássico como Guerra e Paz ? Um prêmio é pouco, mas há de ser um reconhecimento.
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Os premiados não discursam. Os acadêmicos é que se revezam na tribuna, na leitura de pareceres que justificam as premiações. Nélson Pereira dos Santos, o cineasta acadêmico, deve ter esquecido os óculos em casa : lê com alguma dificuldade um parecer. O ex-ministro Eduardo Portella move-se vagaroso, amparado por uma bengala. Informa que levou uma queda ao cumprir o improvável papel de peladeiro de futebol.
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A Medalha João Ribeiro é entregue ao locutor-que-vos-fala no fim da solenidade. O autor da proposta, Ledo Ivo, sussurra, bem humorado, ao me entregar a medalha e um diploma: “Pensei que você estivesse em Nova York”….Não, não.
Sempre que ouço falar em Ledo Ivo, lembro-me da beleza dos versos que ele um dia escreveu em “A Queimada”:
“Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita”.
A proposta que o poeta Ledo Ivo apresentara à Academia comete exageros – a meu favor. Refere-se com adjetivos generosos a um livro-reportagem que publiquei – o Dossiê Drummond. Atribui-me uma posição que, definitivamente, não ocupo – nem teria a mais remota pretensão de ocupar – no que ele chama de “jornalismo eletrônico”. A bem da verdade, fui levado ao “jornalismo eletrônico” pelas conspirações do acaso e pela lei da inércia. Meu planeta é o “jornalismo impresso” – sempre foi, desde quando, com treze anos de idade, vi meu nome impresso pela primeira vez no suplemento infantil do Diário de Pernambuco. ( hoje, eu diria “jornalismo escrito”, em vez de “jornalismo impresso”, já que o mundo de papel parece caminhar para as telas dos computadores e afins).
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Em suma: sou um animal estranho ao veículo onde terminei trabalhando já por tanto tempo – a TV. Quando passo em revista minha acidentada folha corrida na TV, confirmo esta impressão. Mas foi, basicamente, o trabalho em TV que motivou o acadêmico a propor a concessão do prêmio… Quem sou eu para denunciar o equívoco? A vida é assim : uma sucessão de inadequações, desencontros, vocações desperdiçadas. Agradeço sinceramente ao poeta. Bato em retirada com meus dois acompanhantes – Elizabeth e Daniel. Termina minha breve incursão ao Petit Trianon.
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Lá fora, exposta ao sereno, indiferente ao rosário de desencontros e inadequações que move o pobre mundo dos mortais, a estátua de Machado de Assis reina sobre o pátio escurecido da Academia.
Meu demônio moderado me dá um último conselho: “Hora de zarpar. Hora de zarpar”.
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Enquanto cruzo o pátio em direção à rua, imagino o que poderia escrever sobre a expedição à Academia. Faço anotações, para não esquecer dos detalhes. Neste momento, ouço o ruído inconfundível das patas de uma fera roçando a porta dos fundos: é o Cão da Subliteratura querendo entrar. Já o conheço de outros carnavais, é claro. O bicho sempre dá sinal de vida toda vez que tento cometer frases de efeito. Dessa vez, não crio caso: “Pode entrar. Não faça cerimônia. Já tenho a primeira frase do texto: “repórter existe para fazer perguntas impertinentes”. Você me ajuda a escrever o resto do texto?”.
O cão imaginário balança a cabeça. A resposta é sim.
Posted by geneton at julho 20, 2012 12:12 PM