maio 19, 2013

A POESIA NUNCA FOI TÃO INÚTIL – NEM TÃO NECESSÁRIA. QUE OS VERSOS FALEM DOS ESQUECIDOS MENINOS DA SECA, COM “OLHOS RESSEQUIDOS/ APOÉTICOS / DIFÍCEIS DE PEGAR RIMA”

Pode existir algo tão inútil quanto a poesia ?

“Não !”, sussurra o interlocutor imaginário, enquanto percorre um sebo em busca de versos escondidos sob a poeira. “Não pode existir nada tão inútil – nem tão indispensável”.

Bingo.

Quem faz poesia hoje ? Quem publica ? Pouca, pouquíssima gente. Numa era tão medíocre quanto a nossa, a poesia nunca foi tão inútil nem, em consequência, tão indispensável. Assim caminha a humanidade.

O Dossiê Geral faz uma pausa para celebrar dois poemas.

O locutor-que-vos-fala, consumidor eventual de versos, sócio do clube dos seguidores de Vladimir Maiakóvski, Walt Whitman, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Ferreira Gullar & cia ilimitada, teve uma surpresa tardia esta semana.

Recebi, em Brasília, um exemplar de um livro publicado já há quatro anos. O título: “Perfume de Resedá”. O autor: Paulo José Cunha. A Editora: Oficina da Palavra ( Piauí ). “Perfume de Resedá” é um poema de 111 páginas que se lê “de um fôlego só”, como se dizia antigamente.

O autor, jornalista, passou vinte e cinco anos – um quarto de século ! – sem publicar versos. O silêncio deve ter feito bem ao poeta. Porque Paulo José Cunha conseguiu produzir, em “Perfume de Resedá”, um belo poema, totalmente inspirado em lembranças de uma infância e uma juventude vividas em paisagens piauienses que, certamente, já foram riscadas do chamado “mundo real”, mas sobrevivem naquele território pétreo e inviolável que todos carregam dentro de si: a memória.

Lá vem ela, a fera onipresente : a memória. Em “Perfume de Resedá”, a memória se transforma em belos versos. É o que basta. Para que mais ?

Trechos pinçados do mergulho nas páginas do livro:

“…e naquela noite

as redes recolheram do fundo do rio

cardumes de versos e cantigas”

——-

“daqui a pouco o sol

não estará mais aqui

nem a linha de cerol

e os papagaios

que sumiam do céu

(como aquele sura azul de gladstone

que até hoje vaga entre crateras lunares )”

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“mesmo a mais severina das fomes

termina um dia

embebida na memória

e se presta quando nada

ao ofício inútil dos poetas “

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“ficou-me

na concha da mão

apartada a escória

estes grãos de ouro

que guardo de cor

para recitar

em noites de insônia”

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“mães e meninos

entanguidos pela caatinga

olhos ressequidos

apoéticos

difíceis de pegar rima”

—————————

Por algum motivo, o locutor-que-vos-fala se lembrou de outro belo poema nascido do fogo da memória do poeta Jaci Bezerra, alagoano há décadas radicado no Recife. Chama-se “Inventário do Fundo do Poço”. É parte do livro “Comarca da Memória”.

Um trecho de “Inventário do Fundo do Poço” fecha esta pequena expedição ao território dos versos e das memórias:

“O rosto do meu pai, amarga ausência que jamais alcanço,

à noite me acalanta na antiga cadeira de balanço.

(…) Minha infância, doente, se extraviava em corredores escuros,

e eu sonhava, insone, com as belezas do mar que ardia atrás dos muros.

O adulto que sou continua a cultivar no coração a insônia

dos quintais dessa infância, incendiada de verões e begônias.

(…) Na geografia do meu coração guardo um país que pouca gente nota

e um mapa de sonhos tatuado a giz nas asas das gaivotas.

(…) Tudo me dói como o mar, luminosíssima e constante presença,

farfalhando no meu coração com o rumor luminoso das avencas.

(…) Depois, no silêncio do quarto, para esquecer antigas cicatrizes,

sonhava com viagens e me perdia no azul de outros países.

(…) Recordo, hoje, que, nessa e em mais distante época, minha mãe queria

que o seu menino crescesse para ser alguém um dia.

Minha mãe não sabia, nem eu, que outro e bem melhor destino

teria sido eu ter ficado para sempre menino.

Tudo isso penso à noite, quando me dói a luminosa mágoa

e o coração, igual a um peixe, soluça dentro d`água”.

Posted by geneton at maio 19, 2013 11:30 PM
   
   
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