PELÉ
AS CONFISSÕES DO REI PELÉ EM NOVA YORK : O DIA EM QUE O REI SE COMPAROU A BEETHOVEN E MIGUELÂNGELO ( E NÃO É QUE ELE PODE TER RAZÃO ?)
Pelé estava nu quando finalmente consegui vê-lo.
A testemunha ocular da nudez real – o locutor que vos fala – dará daqui a pouco os devidos esclarecimentos sobre a cena.
Trinta e cinco anos depois de ter visto o Rei nu, invado o apartamento novaiorquino de Pelé, na rua 54, em busca de declarações para o Fantástico. A investida foi devidamente recompensada.
Jornalistas entediados espalharam a versão de que Pelé derrapa quando fala. É mentira. Provocado, nosso monarca é perfeitamente capaz de premiar a curiosidade dos repórteres com confissões surpreendentes, cenas de bastidores, eventuais inconfidências.
Aqui, Édson Arantes do Nascimento, a versão terráquea da entidade Pelé, apontará, por exemplo, quais eram os dois únicos defeitos do Rei do Futebol.
Descreverá pressões sofridas para disputar a Copa do Mundo de 1974 pela seleção brasileira. Falará de uma cena inusitada ocorrida nos vestiários do Brasil,no intervalo da final da Copa do Mundo de 1970, no México.
Sociólogos de botequim juram que em algum ponto do inconsciente coletivo brasileiro reluz uma difusa nostalgia da realeza. Quando querem reconhecer os talentos e virtudes de alguém, os habitantes da República Federativa do Brasil tratam de conceder-lhe um título monárquico. Roberto Carlos virou “Rei da Jovem Guarda”. Uma expedição por qualquer cidade brasileira revelará um rol de majestades de todo tipo: Rei da Bateria, Rei do Churrasco,Rei do Mate, Rei dos Pneus. Mas ninguém encarnou tanto a palavra Rei quanto Édson Arantes.
Sessenta e nove anos depois da proclamação da República, o Brasil ganhou, na Copa do Mundo de 1958, um Rei que até hoje não perdeu a majestade (fiz um teste: desafiei Pelé a ir conosco até a Quinta Avenida, para ver por quanto tempo ele poderia andar na rua sem ser reconhecido. Três décadas depois de ter abandonado os gramados, Pelé precisou de apenas dezesseis segundos para ser reconhecido por um africano. Em questão de minutos, o tumulto estava formado: pedidos de autógrafo, espoucar de flashs, assédio de admiradores. Pelé teve de voltar para a van. Tinha passado incólume pelo teste do reconhecimento público – em Nova York). Que outra celebridade seria capaz de criar um alvoroço numa das principais avenidas da cidade que é tida como a capital do planeta?
Agora publicado pela primeira vez na íntegra, sem qualquer corte, o depoimento do Atleta do Século ao Fantástico é um documento sobre uma das pouquíssimas personalidades que, durante um diálogo com um repórter, podem se dar ao desplante de se comparar, a sério, com gênios como Beethoven ou Miguelângelo. Pelé pode. Porque sabe que, no futebol, pode ter sido o que Beethoven foi na música – ou Miguelângelo na pintura.
Que outra celebridade pode se referir a si própria na terceira pessoa, como se Pelé fosse um mito há tempos desvinculado das miudezas do mundo real? Pelé pode.
O encontro foi marcado para o apartamento que Pelé mantém desde os anos setenta em Nova York. O “Rei” chega com o rosto semi-encoberto por um boné. É o truque que usa para tentar esconder uma das fisionomias mais reconhecíveis do mundo. O punho, machucado num jogo de tênis, estava enfaixado. Pelé pede licença para ir “lá dentro”. Volta de camisa trocada. Enquanto o cinegrafista prepara a câmera, ele lembra que, quando morava em Nova York, costumava jogar tênis com o jornalista Lucas Mendes. Confessa uma pequena frustração: não consegue ganhar nunca de Rivelino no tênis.
Diz que passou a se policiar para não ficar repetindo a pergunta “entende?” ao final de cada frase:
- “Percebi que sempre falava “entende”, em todas as entrevistas. Depois das gozações, comecei a me policiar. Perdi o hábito. Depois que me chamaram a atenção para esta mania, psicologicamente já eliminei a palavra “entende”. Mas de vez em quando escapa algum”.
A bem da verdade, diga-se que Pelé conseguiu atravessar a entrevista sem emitir um “entende ?” sequer.
O “Rei” se confessa, numa gravação preservada no Centro de Documentação da Rede Globo:
“Não me lembro de ter passado um dia sequer sem ter dado autógrafo”.
Você já passou um dia sem dar autógrafo?
Pelé: “Digo com toda honestidade: só quando não saio de casa. Em casa, ainda tenho de assinar cheques para fazer pagamentos.
Depois desta fase de Pelé – ou seja, desde a Copa de 1958 - não me lembro de ter passado um dia sequer sem ter dado autógrafo. Não me lembro!”.
Qual foi o pedido mais absurdo que você já recebeu?
Pelé: “Já recebi tantos pedidos e tantas propostas... A gente recebe, no escritório, cartas com todo tipo de pedidos - desde ajuda financeira até apartamento, casa e carro... Mas o pedido mais complicado que recebi foi feito, na África, por um pai, que me trouxe a filha e pediu para que eu casasse com ela. Era uma garota de 15 anos!”
Que resposta você deu?
Pelé: “Eu disse que não estava preparado ainda para casar....”.
“Pelé é o mito que não vai morrer. Vai ficar para sempre”
Você sempre fala de Pelé como se Pelé fosse outra pessoa. Isso não é delírio de grandeza de um “Rei”?
Pelé: “Talvez seja delírio de grandeza de um ”Rei”, mas, por outro lado, é até uma modéstia do Edson. Porque um novo Pelé, que todo mundo procura desde 1958, não vai aparecer. Dona Celeste e Dondinho, meus pais, fecharam a fábrica. O novo Pelé não vai aparecer, então.
Edson Arantes do Nascimento é o que sofre, é a pessoa. Já Pelé é o mito que não vai morrer. Vai ficar para sempre.
Édson morre : é uma pessoa normal, alguém que chora, tem sentimentos e sofre pelas coisas erradas. É esta a diferença que sempre tento fazer”.
Ninguém gosta de pensar em morte, mas, já que ela é inevitável, qual seria o epitáfio de Pelé?
Pelé: “Não tenho medo de morrer nem de falar sobre a morte. Mas acho que o epitáfio do Pelé seria “o eterno”.
“Eu às vezes falava: “Eu poderia ser um Nelson Mandela, um Juscelino Kubitscheck, um artista...”
Sinceramente: você tem inveja de quem?
Pelé: “Inveja não tenho de ninguém. Em todo este tempo em que viajei com o futebol, conheci grandes personalidades: reis, rainhas, políticos, atletas, artistas. Eu às vezes falava: “Eu poderia ser um Nelson Mandela, um Juscelino Kubitscheck, um artista...”. Fui abençoado pelo Papa várias vezes. Mas inveja nunca tive.
Quando eu era garoto, o jogador que tentei imitar, porque era minha inspiração na época de minha chegada ao Santos, foi Zizinho. Quando comecei, aos dezesseis, dezessete anos, Zizinho estava terminando a scarreira. Eu achava: “Um dia vou ser igual a Zizinho.....”
Você disse que gostaria de ter sido JK. Por quê?
Pelé: “Porque, dentro do pouco que a gente conhecia de política, Juscelino chegou com uma proposta avançada e decente para nosso país. A grande mudança do Brasil aconteceu com Brasília e com JK. Eu o admiro muito”..
Você se disfarça?
Pelé: “Já usei bigode. Uma vez, fui à China. Pus uma peruca afro, além do bigode, para ir a um restaurante. Havia lá um pessoal que falava português. De repente, vi o pessoal da cozinha chegando. Eu disse: “Alguma coisa deu errado....”. Um dos garçons terminou perguntando: “É Pelé? “. O professor Júlio Mazzei – que estava na mesa conosco – perguntou: “Como é que souberam? “. O garçom: “Ah, ele começou a rir. A gente reconheceu”.
“Pelé podia ser menos forte num tipo de jogada, mas defeito acho que ele não tinha”
Todo mundo já falou das qualidades do Pelé em campo, mas poucos foram capazes de apontar os defeitos. Para Pelé, qual era o grande defeito de Pelé dentro do campo?
Pelé: “Pergunta difícil ! Você perguntou para Pelé. Se tivesse perguntado para Édson....
Pelé corrigiu um defeito que tinha durante a carreira. Eu me lembro: o meu pai me dizia que jogador que é centroavante ou atacante tem que saber cabecear e chutar de esquerda e direita. Porque a bola – afinal- pode cair de qualquer um dos dois lados. Eu tinha uma dificuldade de esquerda. Mas fiquei treinando e batendo com a perna esquerda. Hoje há até quem ache que sou canhoto! Mas sempre fui destro.
E cabecear? Fico triste de ver jogadores profissionais que ganham uma grana danada mas não sabem cabecear, o que é um absurdo!.
O garoto não saber cabecear era um absurdo nos tempos do meu pai. Porque cabecear é um principio do futebol. Hoje existem profissionais, centroavantes, que não sabem cabecear.
Depois dessa correção, eu, como Edson, não sei se vejo muito defeito no Pelé como jogador.
Pelé podia ser menos forte num tipo de jogada, mas defeito acho que ele não tinha”.
Os dois pequenos defeitos de Pelé no início da carreira eram, então, não saber cabecear e não saber chutar com a esquerda?
Pelé: “Exatamente! Aprendi com meu pai. Aprendi a chutar com a esquerda depois que vim para o Santos. Ficava batendo bola depois dos treinos. Ficava batendo bola contra a parede. Pedia para os jogadores cruzarem a bola para que eu pudesse bater de esquerda. Fui, então, superando esta dificuldade”.
Quanto valeria hoje o passe de Pelé, se Pelé estivesse jogando?
Pelé: “Que pergunta! Hoje, tudo tem um valor, uma comparação. Se fôssemos fazer uma comparação com o que se paga hoje, se fizéssemos uma relação de custo e benefício, Pelé não teria preço. Porque não daria para pagar o tempo que Pelé jogou na Seleção Brasileira e no Santos - quase vinte e cinco anos de carreira, sem parar. Talvez desse para pagar a divída do Brasil....”.
“Pelé deveria valer uns 100 milhões de dólares por ano”
Que valor se aproximaria do talento de Pelé, em preço de passe?
Pelé: “ Se fosse feita uma comparação com os atletas de hoje, Pelé seria acima de qualquer um. O jogador mais caro foi - o quê? - 35, 40 milhões de dólares. Pelo que falei, Pelé deveria valer uns 100 milhões de dólares por ano”.
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É verdade que o governo militar quis forçar você a jogar a Copa de 74 pelo Brasil?
Pelé: “´Forçar´ é uma palavra forte, mas eles tentaram me persuadir a voltar a jogar, porque havia um interesse grande em que o Brasil fosse bem na Copa do Mundo de 1974,na Alemanha. Nós estávamos numa fase política muito difícil, no Brasil.
Eu me lembro de que tinha dado uma entrevista para Ziraldo, em que eu dizia que tinha ficado sabendo das barbaridades e das torturas que tinham sido feitas naquele tempo - de 1971 a 1973. Indignado com aquilo, uma das decisões que tomei foi a de não apoiar e não esconder o que estava acontecendo. Porque, cada vez que o Brasil ganha uma Copa do Mundo, esconde tudo: a fome, o desemprego, a saúde, a falta de moradia. O povo se envolve na alegria, naquela coisa de “Brasil” - e esquece de tudo.
Eu não queria aquilo porque eu já tinha conhecimento de muita coisa: já tinha conversado com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque. Já tinha me encontrado com eles; sabia de coisas que estavam acontecendo. Tomei realmente esta decisão. Como eu ainda estava em grande forma – afinal, o Santos foi campeão em 1973 e fui artilheiro do campeonato - , houve uma procura da filha do general Ernesto Geisel, e políticos como Pratini de Moraes e Jarbas Passarinho. Falei com vários políticos na época: todos achavam que eu tinha de jogar. Mas minha decisão foi a de não jogar”.
Você estava em perfeita forma em 1974: poderia ter jogado a Copa do Mundo na Alemanha sem qualquer problema. Você não se arrepende de não ter jogado?
Pelé: “Não. A decisão de me despedir como campeão do mundo foi a mais certa que tomei. Tenho convicção de que, se hoje os garotos de nove, dez anos de idade ficam gritando o nome de Pelé, é porque eles têm Pelé como um campeão. Por isso, não tenho nenhum arrependimento de não ter jogado a Copa de 74”.
É surpreendente ver Pelé dizer que, com a vitória do Brasil numa Copa do Mundo, o povo se esquece de tudo. Você sempre teve esta visão crítica?
Pelé: “Sempre. Sou uma pessoa que o Brasil todo conhece desde 1958. As minhas batalhas pela educação. Tenho procurado passar para o povo minha indignação por não termos um país que dê o mínino de condições para o povo - educação, moradia e saúde. Todo mundo sabe de minhas brigas, desde o milésimo gol que venho falando. Nem sei o que falar. Quando começo a falar, fico emocionado. É uma tristeza saber que o Brasil ainda hoje vive o que vive. Fomos o antepenúltimo país em educação. Isso é triste para quem, como eu, vive viajando - e vê que, em países que não têm a mínima condição, o povo vive melhor que brasileiro”.
“Se estivesse um Pelé, um Tostão ou um Jairzinho em campo, a postura da Holanda em 74 seria defensiva. Não iria para o ataque daquele jeito”
Se Pelé estivesse em campo, o Brasil teria perdido da Holanda em 74?
Pelé: “Talvez não!
Mas futebol é detalhe: em questão de segundos um lance pode decidir uma Copa do Mundo. O Brasil foi surpreendido na Copa de 1974 porque a Holanda veio com uma proposta de jogo que ninguém conhecia. Nem digo que o Brasil tenha jogado mal. O que aconteceu é que a surpresa provocada pelo tipo de jogo da Holanda tornou tudo difícil para o Brasil.
Não sei se, se eu tivesse jogado, a Holanda jogaria diferente - diante da preocupação de estar diante de um Pelé em campo - ou um Tostão. Porque se estivesse um Pelé, um Tostão ou um Jairzinho em campo, a postura da Holanda seria defensiva. Não iria para o ataque daquele jeito. Mas é dificil dizer se o Brasil, afinal, ganharia ou não”. ( N: O Brasil foi eliminado da Copa de 1974 ao perder para a Holanda por 2 a 0, no dia 3 de julho de 1974, em Dortmund).
Intimamente, em algum momento você se sentiu co-responsável pela derrota do Brasil em 74?
Pelé: “Fiquei triste, sofri. Mas é claro que ,durante a Copa, sempre dava aquela “cócega”, aquela vontade: “Puxa, eu poderia estar aí”. Eu, que amo o futebol, vivi realmente esta situação. Houve momentos em que eu disse : “Eu poderia ter jogado, eu poderia estar em campo....”.
Qual foi o argumento que a filha do Presidente Geisel usou pra tentar convencer você a disputar a copa de 74?
Pelé: “ Como faz muitos anos, não me lembro de detalhes. Porque muita gente me ligou. O deputado Athiê Jorge Cury, presidente do Santos na época, me passou o recado de que eu ira ser chamado pela Amália Lucy Geisel , que,na época, uma espécie de secretária do pai. Por telefone, ela me disse que eu deveria pensar bem, porque seria bom para o Brasil. A conversa foi amigável, num tom que chamava a atenção para o benefício que o Brasil poderia ter para o Brasil se eu aceitasse voltar”.
Que argumento você usou para não aceitar?
Pelé: “Eu disse exatamente o que vinha dizendo para todo mundo: eu já tinha me despedido em 1972, numa grande festa. Quando ocorreu a festa de despedida, no Maracanã, se o Presidente da CBF na época e se o próprio povo insistisse para eu ficar, talvez eu tivesse mais sensibilidade para ficar. Mas, como todo mundo aceitou a festa, todos acharam, ali, que era um momento bom para a despedida. Não havia, então, razão para eu ficar”.
“Maradona, primeiro, precisa ser o melhor da Argentina”
De todos os nomes que foram citados ao longo dos anos, quem realmente chegou perto de ser o sucessor de Pelé?
Pelé :“Desde que comecei a jogar, nomes vão aparecendo. Apareceram grandes e excelentes jogadores. Eu vi. Por exemplo: Di Stéfano, Beckenbauer, Bob Charlton, Zico, um excelente jogador.
Tivemos excelentes jogadores brasileiros,como Ronaldinho, Rivaldo. Há Maradona, Eusébio, Paolo Rossi, Sívoli. Poderia ficar aqui citando vários nomes.
Maradona foi a última polêmica de Pelé. Gostei muito de jogadores argentinos. Eu gostei do Sivoli , que jogou na Itália uma vez. Gosto de Di Stéfano, a grande figura do Real Madri. Maradona, primeiro, precisa ser o melhor da Argentina. Porque lá ainda há dúvida sobre se é ele ou o Di Stéfano. Precisaria aprender a chutar de direita e a cabecear, porque ele não cabeceava bem nem chutava bem de direita. Assim, eu poderia compará-lo com Pelé. Mas foi um excelente jogador. Tivemos também no Brasil Dirceu Lopes, Tostão, Garrincha - um jogador diferente- , e Didi.....”
De todos os brasileiros que você citou, quem chegou mais perto de Pelé como jogador?
Pelé: “Pela característica de jogo, o que chegou mais perto foi Zico. É aquela história que sempre falo: não adianta você querer procurar um novo Beethoven, um novo Hamlet .(aqui Édson se confunde ao falar de Pelé: certamente, ele queria citar William Shakespeare. Terminou citando Hamlet). Não adianta você querer procurar um novo Frank Sinatra ou Michelângelo, que pintava de cabeça pra baixo. Porque Deus faz mas, depois, quebra a fôrma. Podem até surgir outros melhores e diferentes, em outras épocas. Mas igual ao Pelé vai ser difícil”.
“Nós sentimos, no intervalo da final contra a Itália, um cheiro de cigarro”
Qual é o segredo dos bastidores da Copa do Mundo que você nunca contou pra ninguém?
Pelé: “Quando você é um jogador com mais experiência, fica sabendo de coisas. Há um segredo que já é nem segredo, porque até Gerson já comentou. Aconteceu na Copa de 70. Eu tinha dado entrevista dizendo que a Copa de 1970 seria a minha última. Carlos Alberto, Brito, o próprio Gerson, todos nós queríamos ganhar aquela Copa do Mundo. A gente fazia oração, fazia de tudo, porque aquela Copa iria encerrar nossa carreira.
Nós sentimos, no intervalo da final contra a Itália, um cheiro de cigarro. Fomos no banheiro - eu e Carlos Alberto. Gérson tinha acendido um cigarro lá, o “desgraçado”! . Acendeu um cigarrinho. Disse: “Ah, eu estou muito nervoso. É para desabafar”. Depois, ouvi dizer que Félix também. Não sei se já foi levado a público. Era um negócio absurdo!. Mas, realmente, aconteceu. Gérson sabe. É um segredo que eu não tinha falado para ninguém, mas, graças a Deus, ganhamos a Copa”.
Você reclamou de Gérson?
Pelé: Ali, na hora, quase saímos de porrada em cima de Gérson: “Oh, papagaio desgraçado, a gente aqui querendo ganhar a Copa do Mundo....”. E ele: “Mas estou nervoso....”. Gérson fumava mesmo antes. Nunca escondeu de ninguém”.
Gérson terminou fazendo o gol. Deu também o passe para eu fazer aquele outro gol em que matei a bola no peito. A gente não sabia o que aconteceria no segundo tempo. Se soubesse, mandava Gerson fumar em todos os intervalos”.
Você, afinal, é pão-duro?
Pelé: “Isso é uma coisa injusta! . Tudo começou com uma brincadeira com Gérson e Zagallo. Os dois é que são pão-duro, mão de vaca: não abrem a mão nem para o cafezinho. É aquela história de nunca ter dinheiro trocado para o café. Então, estes sim, eram pãos-duros,na seleção brasileira.
Sempre reservado: não gasto dinheiro à toa, o que é diferente. Contaminaram até o meu filho, o Edinho, com esta história. Quando conversam com ele, ele diz: “O meu pai é muito pão-duro....”. Mas meu filho tem tudo! Não acredito que eu seja pão-duro. Pelo contrário”.
Em algum momento você já se sentiu discriminado por ser negro?
Pelé: “Graças a Deus, não. Nem em Bauru: o meu pai jogava pelo Bauru Atlético Clube, o clube da elite. Em Bauru, meu irmão chegou a comentar alguma coisa. Mas, durante minha carreira, nunca.
Tive uma certa preocupação quando estava para vir para o Cosmos. Naquela época ,Muhammad Ali etava muito bem, ele que tinha sofrido, antes, aquela discriminação. Vir para os Estados Unidos com o futebol era uma coisa nova. Quando chegou a hora de decidir sobre vir ou não vir, pensei: “...Mas será que vou ter problema de racismo ? Vão me usar para alguma coisa?” Graças a Deus, minha vinda foi um grande sucesso - uma vitória do Brasil, porque hoje em dia o futebol é um dos grandes passatempos do jovem nos Estados Unidos. Pelé – acho- é o grande ídolo americano. O know-how que o Brasil vendeu para os Estados Unidos foi o futebol com Pelé. Nem nos Estados Unidos tive problema de racismo, graças a Deus”.
“Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada....”
Você já se apaixonou por mulheres famosas?A paixão foi correspondida?
Pelé: “Nunca me apaixonei por mulheres famosas. As mulheres com quem me casei – primeiro, Rose; depois, Assíria - não eram famosas. Assíria é cantora evangélica conhecida, mas não é famosa. Quando eu jogava, existia muita onda. Se eu saía para jantar com uma artista, com uma cantora, todo mundo dizia que eu estava apaixonado.
Houve aquele caso de Xuxa. Disseram também que fui apaixonado pela Luíza Brunet. Conheci Luíza, por coincidência, junto com Xuxa. Naquela época, a gente fez um trabalho junto na revista Manchete, para escolher a modelo do ano. Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada.... Devia ter 16, 17 anos. Não houve nada de paixão”.
A atenção que Luíza Brunet chamou em Pelé não chegou a se transformar em paixão?.
Pelé :”Não chegou porque,logo em seguida, tive todo o namoro com a Xuxa. Fala-se muito no Brasil: disseram também que fui apaixonado por Vera Fischer- minha amiga. Nunca tivemos nada. Falaram de Gal Costa. Disseram que fui apaixonado por uma menina que foi Miss Brasil, Flávia Cavalcanti. Sou apaixonado pela Assíria”.
Você já se encontrou com reis, papas, estrelas de cinema, celebridades de todo tipo. Qual é a celebridade que você gostaria de conhecer, mas ainda não teve oportunidade?
Pelé: “Você falou uma coisa certa: nesta terra, conheci quase todas as grandes celebridades. Dos brasileiros, conheci Ayrton Senna, Emérson Fittipaldi, Éder Jofre. Por falar em Éder Jofre: uma das grandes figuras que não conheci ainda é Popó, o lutador. Aproveito para parabenizar o Popó pela garra e pela técnica. Popó é a figura do momento que não tive oportunidade de conhecer ainda”. ( A TV Globo promoveu um encontro entre os dois poucas semanas depois desta declaração)
“Já joguei contra tantos pernas-de-pau que fica até difícil me lembrar de algum nome”
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Xuxa disse numa entrevista que os seus pés não eram bonitos. O que você não acha bonito na Xuxa?
Pelé: “Respeito –muito - Xuxa. É um exemplo pela batalha e pelo sucesso. Fico feliz de ter participado deste início. Não acho que Xuxa tenha nada feio”.
Qual foi o maior perna-de-pau que você já enfrentou?
Pelé: “Em trinta anos de carreira, já joguei contra tantos pernas-de-pau que fica até difícil me lembrar de algum nome”.
Você sempre teve fama de conquistador. Pelé já falhou na cama?
Pelé: “A fama de conquistador não é verdade. Sempre respeitei todo mundo. Graças a Deus, até hoje, onde chego as portas estão sempre abertas., o que não quer dizer que eu seja conquistador. O importante é respeitar as pessoas que me admiram, tratar bem as pessoas que me procuram. É o que faço com crianças, gente de idade, jovens , mulheres - bonitas, feias. Não acredito que esta atitude seja nenhum galanteio: é obrigação de qualquer pessoa tratar a outra bem, respeitar os outros. Por essa razão, sou respeitado em todo o mundo”.
Você acabou fugindo da pergunta...
Pelé: “Não estou fugindo. O que estou dizendo é uma coisa real. Além de tudo, não me considero nenhum galã. É respeitar quem me procura, tratar bem os outros e saber que vou morrer - como as outras pessoas : o respeito talvez faça com que as pessoas se aproximem de mim, sejam elas como forem”.
Você aguentaria hoje, passado dos sessenta anos, jogar por quanto tempo uma partida?
Pelé: “Não tenho dúvida de que o futebol de hoje é de muito mais pressão, muito mais corrido do que era antes. O condicionamento físico vem de acordo com a competição. Com cinqüenta anos de idade, joguei na Itália, com a Seleção Brasileira principal. Com sessenta anos, fiz a inauguração do Centro de Treinamento do Santos, com a garotada. Mas, no futebol atual, com este preparo físico que tenho hoje, não dava para fazer nem o aquecimento...”
Quais são os cuidados que você toma fisicamente?.
Pelé: “Sempre tive facilidade para manter o meu peso. Nunca deixei de fazer exercício. Sempre que posso, faço exercício em casa ou na praia. Cuido da minha alimentação. Quanto ao futebol, agora falando sério, é evidente que, se eu jogasse agora, estaria preparado. Por exemplo: com sessenta e dois anos da idade, se eu tivesse de fazer uma partida amistosa como fiz quando completei cinquenta anos, eu iria me preparar por dois, três meses. Jogaria. Com certeza: se conseguisse este tempo para parar e treinar, eu jogaria meio tempo. Mas não seria aquele Pelé que fazia gol de bicicleta. Não se pode exigir tanto: é o Pelé normal”.
Em nome de que causa Pelé entraria em campo hoje pra jogar meio tempo que fosse?
Pelé: “ Talvez para acabar definitivamente com uma guerra. Porque parar uma guerra o Santos já parou, nos anos sessenta. Depois, a guerra continuou. Ou para concretizar o desejo de Lula de acabar com a fome no Brasil. Penso que seria excelente fazer um jogo com a assinatura de “acabou a fome no Brasil” “.
Que reação você teria se visse hoje o Maracanã superlotado gritando o nome de Pelé e pedindo que ele entrasse em campo?.
Pelé: “Teria a mesma reação que tive na despedida, diante do Maracanã lotado, dentro daquela emoção: iria me despedir porque aprendi com seu Dondinho que parar no melhor da carreira é a coisa mais inteligente”. (N:Pelé se despediu da seleção brasileira em jogo no Maracanã, no dia 18 de julho de 1971, contra a seleção da Iugoslávia. O jogo terminou empatado: 2 a 2. Pelé deixou o gramado – chorando – sob o coro da torcida que pedia “fica, fica, fica” ).
“Fernando Henrique Cardoso disse que Pelé foi o Brasil que deu certo”
Qual foi a grande mudança na vida de Pelé nestes últimos trinta anos?
Pelé: “ Tive mudanças, graças a Deus, para melhor. A vinda aqui para os Estados Unidos, a parte de educação e cultura. Amadureci como ser humano. Aprendi muito. Posso até dizer, por exemplo, que peguei o “Fantástico” no colo. O Fantástico era uma criança quando conheci o programa ( a primeira edição do Fantástico foi ao ar em agosto de 1973). Eu melhorei muito, aprendi muitas coisas : não parei.
Há coisas que falo com o orgulho. Fernando Henrique Cardoso disse que Pelé foi o Brasil que deu certo. Tenho muito ainda o que aprender”.
Por quanto tempo você pode andar nas ruas de Nova York sem ser reconhecido?
Pelé: “ Depende do lugar. Sem disfarce, é difícil. Em qualquer lugar, sempre vem um ou outro. Quando vou sair - por exemplo, para a Igreja Saint Patrick, para rezar - ponho óculos ou bonezinho. Dizem que vou disfarçado de Milton Nascimento. Mas quando saio de cara limpa, basta descer do carro: vai ter sempre alguém chamando”.
“A marca “Pelé” é uma das mais valiosas no mundo”
Você sempre soube administrar muito bem a carreira. Você tem idéia do tamanho da fortuna de Pelé, em dólar?
Pelé: “Nunca me preocupei muito em parar para contar. Quem pára para contar perde dinheiro - a coisa material. E a coisa material nunca foi muito importante em minha vida. Já a marca “Pelé” é uma das mais valiosas no mundo, sem dúvida nenhuma”.
Você tem idéia do valor desta marca?
Pelé: “Não tenho idéia do valor. Mas a marca “Pelé” hoje é de um valor inestimável”.
Você conhece um ator de cinema pior que Pelé?
Pelé: “Conheço muitos. O que não é justo é o pessoal fazer, na época em que eu filmava, comparações entre Pelé ator e Pelé jogador de futebol. É injustica. Pelé nasceu para jogar futebol. Ator ele estava aprendendo a ser. Mas poucos atores, com todo o nome que têm, foram dirigidos por John Huston, trabalharam e foram dirigidos também por Silvester Stallone, Michael Caine, Ipojuca Pontes. Trabalharam com Paulo Goulart, Stênio Garcia, Regina Duarte. É bom, não é? “.
Qual foi, afinal, o gol mais bonito que você já fez ?
Pelé: “O gol mais bonito foi contra o Juventus, na Rua Javari.(N: o jogo Santos 2 x 1 Juventus, pelo campeonato paulista, foi disputado no dia dois de agosto de 1959). Todo mundo fala. A descrição feita pelos jogadores que estiveram no dia do jogo, tanto do Juventus quanto do Santos, é maravilhosa. Infelizmente a equipe de Aníbal Massaíni não conseguiu achar imagens deste gol , depois de quatro anos de pesquisas sobre jogadas e momentos importantes da vida de Pelé para o filme “Pelé Eterno”. Há também o “gol de placa” , lindo ( marcado contra o Fluminense, no Maracanã, pelo Torneio Rio-São Paulo de 1961. Pelé driblou sete jogadores do Fluminense antes de marcar o gol).
“Quando fiz este gol, fui para a torcida, desabafei, falei palavrão. Dei, então, um soco no ar”
Quanto ao gol da Rua Javari, eu me lembro de que três jogadores do Juventus foram “chapelados”. Quando Mão de Onça, o goleiro, veio na bola, também levou um chapéu. Fiz o gol de cabeça.
Todo mundo diz que criei o soco no ar na comemoração do gol. Não foi nada disso. O que aconteceu foi que, neste jogo em que fiz o gol, a torcida estava me perturbando. O Santos não estava jogando bem. Eu também não. Já o Juventus estava numa tarde boa. A torcida, então, ficou vaiando, vaiando, vaiando. Quando fiz este gol, fui para a torcida, desabafei, falei palavrão. Dei, então, um soco no ar. Porque tinha feito o gol mais bonito da minha vida”.
Quer dizer então que a origem do soco no ar na comemoração do gol foi um desabafo por este gol?
Pelé: “Exatamente! É esta a origem do soco no ar. Há quem diga que Pelé é tão pão-duro que até para comemorar o gol ele fica com a mão fechada.... Mas não é assim. O soco no ar, na verdade,foi para comemorar um gol que foi uma coisa maravilhosa. Se pudéssemos reconstituir este gol para os mais jovens, para que a nova geração não tenha nenhuma dúvida, seria maravilhoso”.
“Uma loucura: fiquei apavorado porque minha filha, que mora aqui, vivia perto do World Trade Center”
Aqui da varanda você tem esta bela vista de Nova York. Quanto tempo você passa aqui por ano?
Pelé: “Passo três meses por ano. Quando eu jogava com o Cosmos, tinha contrato com a Warner: ficava seis meses, a duração de uma temporada de esporte. A vista aqui é maravilhosa. Do topo do prédio, você vê o East River. Tive muita sorte de conseguir este lugar aqui no tempo que estava jogando no Cosmos. Agora, estou aqui para sempre”.
Onde você estava no dia do atentado de 11 de setembro de 2001?
Pelé: “Viajei na noite anterior. quando cheguei ao Brasil, pela manhã, soube do atentado pela televisão. Meu irmão, “Zoca”, tinha ficado aqui em Nova Iorque. Meu assessor também. Uma loucura: fiquei apavorado porque minha filha, que mora aqui, vivia perto do World Trade Center. Fiquei procurando saber e querendo me comunicar, mas, graças a Deus, com a família não aconteceu nada”.
Do que é que você mais gosta aqui em Nova York?
Pelé: “Tenho liberdade em Nova York. Vou ao supermercado, vou ao Central Park. Em algum lugar dá para ficar, especialmente se é dia de semana. Porque se é domingo ou feriado os lugares ficam cheios. O pessoal me descobre logo. A liberdade, esta coisa mais respeitosa do americano, é o que mais me cativa em Nova York”.
Com que frequência você vai à catedral rezar?
Pelé: “Sempre que estou em Nova Iork. Quando fiz o contrato com o Cosmos, eu cheguei aqui nos Estados Unidos; pedi a ela que me ajudasse, iluminasse meu caminho. Deu tudo certo, porque foi uma grande vitória. Agora, já me acostumei. Vou à Saint Patrick, para agradecer”.
Qual é o santo de devoção de Pelé?
Pelé: “Meu santo é Nossa Senhora Aparecida. Minha mãe sempre diz uma coisa engraçada: quando crinça, em Bauru, eu era tão levado que ela me entregou a São Benedito. Minha mãe pediu: “São Benedito, tome conta deste garoto!”.
São Benedito tomou conta bem”.
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O DIA EM QUE GRAMPEEI O REI PELÉ EM LONDRES
Cena londrina: o “Rei” se trancou durante uma tarde inteira num pequeno estúdio de televisão em Candem Town, no norte de Londres, para fazer confissões sobre uma carreira até hoje inigualada. Quando o vídeotape começa a rodar, Pelé revela, por exemplo, qual foi a única vez em que suas pernas tremeram no gramado do Maracanã.
Adiante, confessa que, quando criança, sonhava com uma profissão que igualmente o levaria às alturas, mas não tem nada a ver com o futebol. Saudoso, dá o nome do jogador da seleção brasileira com quem se entendia, dentro de campo, apenas pelo olhar: uma cumplicidade muda que enlouquecia os adversários. Um dos gols mais bonitos marcou quando oficialmente já tinha se despedido do futebol: jogava pelo Cosmos de Nova Iorque.
O depoimento traz surpresas. Ao contrário do que todos pensam, o jogo “mais duro” da desastrada campanha brasileira na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966, não foi a derrota que eliminou o Brasil. Pelé fala com orgulho sobre o dia em que o Santos parou uma guerra na África. Diverte-se quando descreve a odisséia do juiz colombiano que foi enxotado do estádio para que Pelé, expulso de campo, voltasse a jogar.
Por fim, lamenta que jamais conseguiu saciar uma curiosidade: diz que até hoje se interessa em saber o que é que, afinal, significa o nome Pelé – a marca registrada do Brasil no exterior.
Pelé tinha chegado ao estúdio numa limousine branca de seis portas. Pouca gente sabia deste compromisso do Rei. Quem testemunha, por puro acaso, a chegada do “atleta do século” a este prédio de tijolos aparentes paga reverências: o porteiro do prédio não perde a chance de posar para uma foto ao lado do ídolo. Lá dentro, zelosas funcionárias tratam de cumprir ao pé da letra o papel universalmente destinado a assessores: o de atrapalhar até onde for possível o trabalho de repórteres.
O astro vai cumprindo pacientemente o que as assessores decidem. Só ensaia uma reclamação bem-humorada quando a responsável pela maquiagem insiste em espalhar um pó pelo rosto do “Rei” para evitar o reflexo das luzes: “Não precisa! Não precisa! Todo mundo me conhece....”.
Um grupo de crianças – comandado pela sobrinha de uma das funcionárias – leva bolsas, camisas e fotos para Pelé autografar. O “Rei” improvisa, então, uma curta aula de futebol: pergunta a cada um o que é mais importante na hora de chutar. Ouve respostas desencontradas. Trata de esclarecer : o mais importante num chute é a posição da perna de apoio:
- Se você vai chutar com a perna esquerda, a perna direita deve estar bem equilibrada. Parece fácil, mas nem todo mundo se lembra...
Os meninos ouvem a explicação, silenciosos e atentos. Vão ter o que contar quando chegarem à escola, no dia seguinte.
Gravado em seis fitas de vídeotape, em dezembro de 1995, o depoimento terminou se transformando numa espécie de autobiografia eletrônica do Rei. Pelé gravou o depoimento ora em português, ora em inglês. A gravação foi patrocinada pelo cartão de crédito que contratou Pelé como garoto-propaganda de luxo, o Mastecard.
Correspondente do jornal O Globo em Londres, escondo um gravador junto a uma das caixas de som do estúdio, sem ser notado pelos funcionários da produtora contratada para filmar a performance verbal do Rei.
Sem saber que um repórter brasileiro estava “grampeando” suas palavras, o Rei Pelé começa a falar, para público estrangeiro, sobre as façanhas do maior jogador de futebol de todos os tempos:
A OUTRA PROFISSÃO: “Quando eu tinha uns doze anos de idade, sonhava em ser piloto de avião. Ficava olhando os aviões passando por sobre os campos. Pensava comigo: “Um dia, vou ser piloto”. Hoje, tanto tempo depois, acho que tenho mais hora de vôo do que muitos pilotos...Mas meus primeiros pensamentos, quando bem jovem, eram dirigidos para o senho de ser piloto”.
O DIA EM QUE O REI TREMEU: “Tive a felicidade de marcar 1.263 gols. Posso dizer que o gol mais importante, para mim, foi o que marquei na Copa do Mundo de 1958,na partida contra o País de Gales. Eu tinha dezessete anos de idade. O Brasil ganhou de um a zero. O gol foi meu. O Brasil, então, classificou-se para o final da Copa. O outro gol que foi importante, porque o mundo inteiro estava esperando, foi o milésimo, marcado de pênalti contra o Vasco da Gama, no Maracanã, em 1969. Todos dizem que gol de pênalti é fácil. Não é. Só é fácil quando o placar já foi definido. Numa final, ou quando todos estão olhando para você, não é fácil. Que eu me lembre, foi a primeira vez que minhas pernas tremeram no Maracanã, porque todos gritavam Pelé, Pelé, Pelé”. ( O milésimo gol foi marcado no Maracanã, às 23:11h do dia 19 de novembro de 1969, diante de 65.167 torcedores, em jogo que terminou com a vitória do Santos sobre o Vasco da Gama, por 2 a 1).
O MENINO QUE INSPIROU O MILÉSIMO: “Pouco antes de fazer o milésimo gol, eu tinha visto um menino de rua arrombando carros. Era um daqueles garotinhos de praia,em Santos. Eu disse a ele: “Não faça isso!”. O garotinho ainda brincou comigo: “Mas eu só estou roubando carros de São Paulo.Não são daqui de Santos,não....”. Reclamei: “Não pode ! Isso não é coisa de criança!”.
Uma semana depois, fiz o milésimo gol. A primeira coisa que me veio à cabeça foi pedir proteção às crianças. Comecei a jogar entre os profissionais aos dezesseis anos. Tinha – e tenho – ligação com as crianças. Chamei, então, a atenção da sociedade. Jornalistas disseram que era demagogia: o que eu estava querendo era “aparecer em cima das crianças”....
Mas a verdade é que eu já estava vendo o problema. Infelizmente, hoje, tanto tempo depois, a gente vê o problema da violência em todos os lugares, principalmente no Brasil. Tudo porque o governo e a sociedade não se preocuparam com a educação das crianças. Daquela época para cá, já se passaram trinta anos. Teríamos tido uma geração diferente,se fosse feita alguma coisa”.
O GOL AMERICANO: “Vi meus gols em vídeotape. Porque a verdade é que, na hora do jogo, a gente não vê. O gol de bicicleta que fiz pelo Cosmos de Nova Iorque foi um dos mais bonitos que vi, entre os que fiz. Igualmente, o gol que ganhou uma placa no Maracanã, contra o Fluminense.O gol de bicicleta foi um dos melhores. Em toda a minha carreira, fiz três gols assim: este pelo Cosmos, um no Brasil e outro na Europa”.
O MELHOR PARCEIRO EM CAMPO: “Joguei na Copa do Mundo de 1958 com um jogador que, para mim, era excelente, porque combinávamos muito bem: Garrincha. Era excelente jogar com Garrincha, porque ele ia à linha de fundo. Didi,no meio-de-campo, também foi um grande parceiro. Depois, tive em Coutinho, centro-avante do Santos, um excelente parceiro. Coutinho é que criou a tabelinha com Pelé. Por fim, na última Copa do Mundo que joguei, no México, tive um grande parceiro em Tostão. Era um jogador muito inteligente, sabia tocar a bola, sabia voltar: pelo olhar, ele já sabia para onde a bola ia. São estes os jogadores com quem mais me adaptei. Mas, em vinte e cinco anos de carreira, joguei com outros muito bons”.
A VITÓRIA MAIS DURA, EM 1966: “A partida contra a Bulgária,na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, terminou com vitória do Brasil por dois a zero,mas, para mim, este jogo foi mais duro do que contra Portugal – que nos venceu por 3 a 1. O que aconteceu comigo contra Portugal foi uma fatalidade ( N : Pelé teve de deixar o campo amparado,porque não conseguia andar. Desde o início do jogo, Pelé foi perseguido em camop pelo zagueiro Vicente ). É evidente em todo caso, que aquela falta foi cometida por trás. Hoje, aquele jogador português seria expulso, sem dúvida. Mas houve também problemas no jogo da Inglaterra contra a Argentina – partida dura e difícil – e na decisão entre Inglaterra e Alemanha. A copa de 1966 foi dura e violenta”.
O DESABAFO AOS MARCADORES: “VOCÊ PARECE MINHA MULHER!” : “Os treinadores adversários sempre diziam a um dos jogadores: “Você vai marcar Pelé”. Então, este jogador ficava o tempo todo colado comigo. De vez em quando, eu tinha de dizer a eles: “Mas você parece minha mulher! Não me deixa sozinho nunca!”. Eu tinha dificuldade para jogar assim. Pedia a eles:”Vá jogar um pouco! E aí então você me marca!”. Tínhamos esse tipo de discussão dentro de campo. Era problemático. De qualquer forma, em vinte e cinco anos de carreira, só tive duas contusões sérias. É um saldo positivo. Uma foi contra Portugal,na Copa de 1966. Fui atingido por trás. Da outra vez que tive um problema sério, me machuquei sozinho, ao chutar uma bola. Tive uma distensão grave. Agradeço a Deus por ter tido somente estes dois problemas sérios, em tanto tempo de carreira”.
O PREÇO DA FAMA: “Ser tão conhecido me traz uma grande responsabilidade. Você perde um pouco de privacidade, sem dúvida. De vez em quando, nas viagens, preciso usar um chapéu e um bigode postiço. Por outro lado, é bom saber que as pessoas gostam de mim. Sou uma das poucas figuras, no mundo, que podem dizer: “Tenho as portas abertas no mundo inteiro....”. Onde quer que eu vá – na África, na Ásia, na América do Sul – tenho uma grande responsabilidade. Não posso cometer enganos”.
A CRÍTICA AOS TREINADORES: “O treinador, primeiro, tem de fazer o papel de psicólogo; precisa atuar como um amigo do garoto em início de carreira. É como se ele fosse um irmão mais velho, mais do que um treinador de futebol. Independentemente de qualquer coisa, o treinador precisa ser um bom observador. O que vejo hoje, em quase todos os treinadores de divisões inferiores, infantis ou juvenis, é que eles querem impor uma maneira de ser, querem impor estratégias, querem que o jogador jogue feito uma máquina. As crianças não têm liberdade. Isso é ruim! Treinador de infantil e juvenil tem de dar liberdade ao jogador para que ele possa criar. Somente depois é que o treinador deve tirar os defeitos”.
1970: “EU NÃO SABIA SE RIA OU SE CHORAVA”: “Quando fui para o México, em 1970, já pensava em me despedir do futebol depois daquela Copa. Poder me despedir por cima, como campeão, foi maravilhoso. Eu não sabia se ria, se chorava, se pulava. A verdade é que todos os jogadores ali, como Gérson, Carlos Alberto, Félix, Brito e até Jairzinho pensavam em disputar no México a última Copa de suas carreiras. Das quatro Copas do Mundo que disputei, a de 1970 foi a melhor para mim. Não tive contusão, joguei todas as partidas. A seleção brasileira de 1970 foi a melhor de todos os tempos”.
HOJE, JOGADORES QUEREM DINHEIRO: “Quando comecei a jogar, entre 15 e 16 anos de idade, recebia algum dinheiro do Santos – que usava para ajudar minha família. Um ano depois, fui chamado para a Seleção Brasileira. Aos 17 anos, já estava na Copa do Mundo, na Suécia. Clubes estrangeiros começaram a me chamar, principalmente italianos e espanhóis. Alguns jogadores brasileiros se transferiram, como Didi ou Garrincha. Mas eu nunca quis deixar o Santos. Depois, ao longo de minha carreira, recebi outras propostas. Mas nunca quis jogar apenas pelo dinheiro. Fui jogar no Cosmos depois de abandonar o futebol porque queria promover o esporte nos Estados Unidos. Hoje, é diferente. Jogadores já não se ligam tanto aos clubes. Atuam um ano num lugar; no ano seguinte, em outro. Querem o dinheiro. É uma abordagem diferente.
Eu, pessoalmente, nunca quis sair do Brasil. O dinheiro que eu ganharia fora do país seria umas três vezes maior. Mas eu estava bem no Brasil, porque nunca joguei por dinheiro”.
UMA CURIOSIDADE QUE RESISTE: “Tento até hoje descobrir – na África, por exemplo – algo que me ajude a entender o que significa a palavra Pelé. Comecei a jogar futebol na rua quando tinha uns seis, sete anos. Meu pai era jogador. Um dos meninos que jogavam na rua com a gente, em Bauru, passou a me chamar de “Pelé”. Eu não entendia, porque o meu nome era Édson. Tinha orgulho do meu nome, porque Thomas Édison era um grande homem. Tinha inventado a lâmpada...Quando este menino começou a me chamar de “Pelé”, briguei com ele: “Meu nome é Édson! Por que é que você me chama de Pelé? “. Ninguém sabia o que Pelé significava. Fui,então, para a escola. O mesmo grupo de garotos passou a brincar comigo na sala de aula. Briguei com um deles. Peguei dois dias de suspensão. O meu pai foi chamado à escola. O professor disse que eu tinha brigado por causa do nome – “Pelé”. A escola inteira, então, começou a me chamar de Pelé, para gozar comigo. Eu detestava o nome “Pelé” no início. Hoje, gosto”.
O REI PÁRA UMA GUERRA: “Guardo até hoje com alegria o fato de ter estado na delegação do Santos durante uma viagem à África, em que pudemos dizer que paramos uma guerra por uma semana. Primeiro, jogamos numa ilha. Fizemos uma grande partida. Fiz uns três gols. Quando íamos sair para jogar em outra ilha, disseram que havia uma guerra lá.”Mas, se vocês forem, a guerra pára”. Isso foi uma coisa maravilhosa em nossa vida. O Santos,com Pelé, parou uma guerra na África – pelo menos, enquanto a gente estava lá. O ideal seria que tivéssemos parado a guerra para sempre”
O JUIZ É EXPULSO, PARA QUE PELÉ VOLTE A JOGAR: “Viajamos para jogar na Colômbia, numa época em que o Santos sempre ganhava. Tínhamos sido campeões do mundo interclubes por duas vezes. O estádio estava lotado. Houve, então, uma briga no meio-de-campo. Eu, Pelé e Doval estávamos juntos. Os dois eram negros, parecidos comigo. Tinham o mesmo porte físico, tudo igual. Armaram a confusão. O juiz não viu direito quem foi. Eu estava tentando resolver a briga quando o juiz decidiu expulsar um jogador de cada lado. E me expulsou! Eu disse: “Mas eu não estava brigando!”. O juiz respondeu: “Não quero saber!”. Então, saí de campo. De repente, já no vestiário, ouvi um barulho, uma confusão do lado de fora. A polícia chegou. Vieram me chamar: “Volta!”. Eu disse que não poderia voltar, porque tinha sido expulso. E eles: “Volte, porque o juiz é que vai sair. Quem vai apitar o jogo é o bandeirinha. Você vai jogar!”. Voltei. O juiz é que foi expulso....”. ( O jogo contra o Millionarios, no estádio El Campin, terminou com a vitória do Santos por 5 a 1).
OS MAIORES : “É difícil dizer, porque joguei contra grandes jogadores. Mas poderia citar George Best – que seria um grande jogador, se não fossem os pequenos problemas de cabeça que teve. Atuei contra Bob Charlton, excelente jogador. Igualmente, Cruiff, Eusébio,Beckenbauer, Bob Moore. Di Stefano e Puskas foram excelentes. Tivemos uma boa fase de Maradona.. Nestes últimos tempos, foi o jogador que apareceu melhor. Um pouco antes, tivemos Zico. Alguns dos melhores foram estes”.
OS GRANDES MARCADORES: “Nunca foi fácil jogar, principalmente na minha situação, eu que era sempre marcado homem a homem. Tive marcadores que admirava, como Passarela, Nilton Santos,Beckenbauer e Bob Moore. O italiano Fachetti também foi um bom marcador”.
A VIDA EM VÁRIAS FRENTES: “Tenho a base ( financeira) que obtive no futebol. Toda vez que há eleição no Brasil, alguém me oferece: quer ser candidato a presidente? Digo que não. Não quero fazer política diretamente.Quero ajudar, mas não como presidente. De vez em quando, me oferecem a possibilidade de ser candidato a presidente da Fifa. Não sinto que deva”.
O DESCANSO DO REI: “Gosto de passar meu tempo livre com meu violão – fazendo música. Tenho algumas gravadas. Gosto também de fazer música para crianças. Outra coisa que gosto de fazer, quando tenho tempo de relaxar, é pescar. Vou pescar no barco de um amigo. Ou então me recolho a meu sítio, no interior de São Paulo, onde existe uma lagoa. Lá, passo uma semana, dez dias, depois de um ano inteiro de trabalho. Volto relaxado”.
O DESTINO: “Meu pai era jogador. Quando eu via meu pai jogando, pensava: “Um dia, vou ser igual a ele”. Mas nem sempre ele ganhava. Quando meu pai perdia, chegava em casa inseguro. Pensei: tenho de me preparar para não perder nunca- e ganhar sempre. Nasci para jogar futebol. Deus me deu esse destino”
PEQUENO RELATO SOBRE
A NUDEZ NO “REI”
A primeira vez em que vi Pelé permanece guardada na memória, quatro décadas depois. O meu pai, um agrônomo e fazendeiro de poucas palavras, me arrastou para o Estádio da Ilha do Retiro, no Recife, para ver o jogo do Santos de Pelé contra o Náutico, pela Taça Brasil. Placar: Santos 2 x 0 Náutico. Data: nove de novembro de 1966.
Eu tinha dez anos de idade. Jamais tinha ido a um estádio de futebol. Hoje, posso dizer que meu currículo de torcedor eventual exibe pelo menos este pequeno troféu: posso dizer que, criança, vivi o privilégio de ter visto Pelé, ao vivo, justamente na primeira vez em que em que fui a um estádio.
O apelo que a presença do Rei Pelé exercia sobre os fãs de futebol pode ser medido por um detalhe: meu pai era apaixonado pelo Sport Club do Recife. Reagia com olímpica indiferença aos grandes feitos do Náutico – à época, um timaço que engolia adversários com a facilidade de quem bailava em campo. Mas se animou a ir ao estádio em dia do jogo do Náutico - não para ver o rival jogar, mas para testemunhar o desfile do Rei do Futebol pelo gramado do Estádio da Ilha do Retiro.
Pelé fez um gol naquela noite – o 688@ de uma odisséia que o levaria a marcar cerca de 1.200 gols, recorde até hoje inigualado . Pepe, ponta-esquerda que desferia chutes mortais em cobrança de falta, marcou o segundo.
Agora, os esclarecimentos sobre a nudez de Pelé.
Quero fazer uma confissão: eu estava banhado de suor no exato momento em que descobri que "das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante" (quem terá sido o autor de uma definição tão perfeita?). Não, eu não estava disputando uma final de campeonato. Como um celerado, eu corria desembestadamente atrás do ônibus da seleção brasileira, na avenida Rosa e Silva, no Recife, no já jurássico ano de 1969.
Em minhas mãos, carregava uma folha de papel em branco. Não estava à procura de nenhuma declaração, não esperava por nenhuma entrevista. Nem sonhava em ser repórter. O que eu queria - como, provavelmente, todo menino brasileiro apaixonado por futebol - era um autógrafo de um dos meus ídolos. Fui a pé de minha casa até o estádio do Náutico, na avenida Rosa e Silva. Uma multidão de torcedores esperava pela chegada da seleção, para o treino.
Lá vem o ônibus. Tumulto. Gritaria. Empurrões. Eu me lembro de ter visto Tostão e Clodoaldo acenando na janela. Ou terá sido Gérson? Quem sabe, Jairzinho. Não importa: os craques dos meus times de botão estavam ali, materializados, a dois palmos de distância.
O treino ia ser fechado. Mas eram tantos os torcedores correndo atrás do ônibus que a Federação resolveu abrir os portões do estádio. Aquele punhado de fanáticos teve, então, o privilégio de assistir a um treino da seleção que, meses depois, entraria para a história do futebol mundial nos gramados do México como o melhor time de futebol de todos os tempos.
O que diabos eu estava fazendo na arquibancada do estádio dos Aflitos, na manhã de um dia de semana? Aos doze anos de idade, eu estava descobrindo que o futebol é a mais importante das coisas menos importantes da vida.
Dizem que a gente só guarda na memória rostos, datas e nomes que, por um ou outro motivo, são de fato importantes para nós. O trator dos neurônios soterra o resto. Pois bem: meu professor de desenho no Colégio São Luís - que Deus o perdoe - passou o ano tentando me fazer entender que "o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos".
Passei o ano preocupado com outro problema: o Sport Clube do Recife, afinal de contas, iria ou não barrar a caminhada do Náutico rumo ao título de heptacampeão pernambucano? O meu time de botão ia ou não ganhar o dificílimo campeonato que a gente organizava na rua Dom Manoel da Costa, no bairro da Torre?
Enquanto o professor - com cara de zagueiro alemão - tentava me familiarizar com o fantástico mundo da geometria, eu ficava pensando com meus botões: quem é hipotenusa? O que significa cateto? Onde fica a saída, pelo amor de Deus?
Hoje, tanto tempo depois, declaro-me formalmente incapaz de explicar o que significa a soma dos quadrados dos catetos. Mas sei de cor a escalação do time do Santos: Cláudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Negreiros; Manoel Maria, Toninho, Pelé e Edu. Era um dos meus times de botão no ano da graça de 1969.
E o Sport? Eis o esquadrão: Miltão; Baixa, Bibiu, Gílson e Altair; Válter e Vadinho; Dema, Zezinho, Acelino e Fernando Lima. Não preciso consultar nenhum jornal antigo para recitar de trás pra frente a escalação de outro dos meus times de botão - o Palmeiras de 1968: Perez; Scalera, Baldochi, Minuca e Ferrari; Dudu e Ademir da Guia, Gildo, Sevílio, Tupãzinho e Rinaldo. Eis uma prova matemática dessa verdade fundamental: das coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante. Se não fosse, eu não teria guardado tantos nomes.
O meu exercício de memória, obviamente, não vale nada. Mas o que é a vida, se não uma coleção de gloriosas inutilidades? Sou igualmente capaz de recitar o meu time de botão do Botafogo de 1969: Cao , Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César.
Minha memória sepultou no cemitério dos esquecimentos todo o palavrório que meu professor mobilizou na inglória missão de me apresentar aos mistérios dos catetos e hipotenusas.
Não tive coragem de dizer a ele, mas, desde o primeiro dia de aula, eu tinha certeza absoluta de que o futebol era mais importante do que a soma dos quadrados dos catetos. Não me perguntem por quê. Eu era um menino brasileiro. Não se deve pedir explicação a nenhum menino brasileiro apaixonado por futebol. A paixão nascera no dia em que eu fora a um estádio pela primeira vez, para ver os dribles de Pelé.
Esquecido das hipotenusas, guardei na memória duas cenas do dia em que corri desembestado atrás do ônibus da seleção brasileira.
Primeira cena: o meio-de-campo Clodoaldo saiu de campo chorando, machucado.
Segunda cena: termina o treino. Nós, os desocupados meninos do Brasil que saímos de casa numa manhã de dia de semana para correr atrás do ônibus da seleção, tentávamos agora vislumbrar por uma fresta numa das paredes do estádio nossos craques se preparando para ir embora. Havia, entre um degrau e outro da arquibancada do estádio, uma espécie de fenda que oferecia, aos eventuais bisbilhoteiros, uma visão do interior dos vestiários.
Parecia filme de Fellini. Nós nos revezávamos no posto de observação. Cada um podia olhar por cinco, dez segundos o que estava acontecendo no vestiário dos nossos deuses. Quando chegou minha vez, o que vi? Clara, nítida, diante de mim, a imagem do Rei Pelé ensaboado da cabeça aos pés. O Rei estava nu, no vestiário do estádio do Náutico.
Quando os jogadores voltaram para o ônibus, pararam para saciar nossa fome de autógrafos. Devo ter guardado em algum lugar esta relíquia. Onde estará este meu pequeno tesouro, pessoal e intransferível? Acabo de achar em meio a velhos papéis. Lá estão os autógrafos de Tostão, Rivelino, Brito, entre outros que terminaram ficando no caminho, na odisséia rumo ao México - como Paulo Borges,ponta-direita do Corinthians.
A seleção que foi treinar no campo dos Aflitos trazia as estrelas que reluziriam na campanha do México, meses depois : Félix, Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho,Tostão e Pelé. Quando o ônibus partiu, repetiu-se a gritaria, o tumulto, a vibração, os acenos. Nova correria atrás do ônibus.
O que terá acontecido naquele ano na vida do menino brasileiro apaixonado por futebol? O meu professor de desenho me reprovou, é claro. Meu pai me deu uma bronca de dimensões bíblicas: disse que eu passaria os próximos meses proibido de ir ao estádio. O meu time do Palmeiras perdeu o campeonato da rua Dom Manoel da Costa na penúltima rodada. O juiz com certeza deve ter roubado. O Santa Cruz - tragédia - venceu o campeonato pernambucano. O Sport ficou a ver navios, na Ilha do Retiro.
O menino brasileiro - um entre milhões - aprendeu ali que a vida é feita também de derrotas, fracassos, reprovações. Mas é também feita de lembranças que só aparentemente são desimportantes. Minha paixão pelo escrete deve ter começado ali, na corrida atrás daquele ônibus.
Então, dou um conselho aos meninos brasileiros: corram atrás do ônibus da seleção, se tiverem a chance. Ou do carro de bombeiros no desfile da vitória. Quantas lembranças, quantas paixões pelo escrete não surgirão entre esses meninos que correrão, desembestados, com uma folha de papel em branco nas mãos?
Quase quadro décadas depois daquelas expedições do menino recifense aos estádios da cidade em busca de uma visão do Rei Pelé, eis-me diante de Sua Majestade, em Nova York , para gravar uma entrevista que iria ao ar no “Fantástico”, em agosto de 2003.
É como se uma história - que começara em 1966 com um menino de dez anos indo pela primeira vez a um estádio de futebol - finalmente se completasse.
O menino que corria atrás do ônibus da Seleção Brasileira com um pedaço de papel nas mãos não conseguiu o autógrafo do “Rei” no estádio do Náutico, em 1969. O tumulto impediu a façanha.
Tanto tempo depois, o repórter quebrou a “liturgia” do cargo: terminada a gravação, pediu um autógrafo ao entrevistado. Não é coisa que se faça. Fiz.
Demorou quase quarenta anos - mas a mini-coleção de autógrafos finalmente ficou completa.
*Publicado no Livro das Grandes Reportagens ( Editora Globo, 2006)
Posted by geneton at dezembro 6, 2007 04:38 PM