O DIA EM QUE ENCAREI OS OLHOS VERDES DA CIGANA. OU: A ARTE DE IMPRESSIONAR OS CÉTICOS
Céticos, tremei. Quem se recusa terminantemente a dar um mínimo crédito de confiança a ciganas ,videntes,adivinhos e outros habitantes da Terra da Premonição deve ficar longe da fita de vídeo que uma cigana chamada Esmeralda gravou,em dezembro de 1993,para o Fantástico. Porque esta fita pode ter o poder de abrir uma fresta no paredão de descrença que os céticos profissionais erguem em torno de si.
Revejo a fita. Depois de tirar uma carta de um baralho na tentativa de prever o que o ano de 1994 reservava para o campeão Ayrton Senna,a cigana diz,textualmente,à repórter Fátima Bernardes : "Ayrton Senna poderá sofrer um acidente fatal numa curva". Menos de cinco meses depois, no dia primeiro de maio de 1994, as palavras "curva" e "acidente fatal" cruzaram o caminho de Ayrton Senna.
Durante a gravação da entrevista para o Fantástico, houve uma cena que não foi captada pela câmera . Com uma dramaticidade realçada por olhos esverdeados que fitam o fundo da retina do interlocutor, a cigana Esmeralda diz a Fátima Bernardes que ela não deve se preocupar com o problema de saúde que tinha sido descoberto na véspera. "Fiquei imóvel",diz,hoje,a apresentadora do Jornal Nacional. "Porque eu realmente tinha ido ao médico".
A cigana cravou pelo menos dois outros acertos. Disse,em dezembro de 1993, que a economia sofreria uma reviravolta em julho de 1994."A moeda terá um novo nome". Assim foi feito. Os bruxos da economia deram à luz o Plano Real. Por fim,os cartas disseram à cigana que o próximo ocupante do Palácio do Planalto seria um nativo do signo de gêmeos. Em outubro de 1994,as urnas deram a Presidência das República a um nativo de gêmeos - o professor Fernando Henrique Cardoso,nascido em dezoito de junho de 1931. Quando a cigana fez a previsão,ele ainda não era candidato. Acredite quem quiser.
A que estranhos poderes esta cigana recorre afinal para dar a impressão de que é capaz de enxergar, num amontoado de cartas de baralho, os desígnios do futuro ?
Uma década depois , desembarco no endereço da cigana numa manhã chuvosa de sábado. A consulta tinha sido marcada com a devida antecdência,por telefone. Nuvens cinzentas pairam, assustadoras, sobre Copacabana. O céu ameaça desabar a qualquer momento. O cenário parece perfeito para que uma cigana entre em cena. Que ela venha, com seus santos protetores, cartas de baralho, metais misteriosos e olhares esverdeados. Eu estarei pronto a espargir, sobre este exército de entidades sem rosto, todas as poções do meu ceticismo militante.
O porteiro avisa à moradora do apartamento 101 deste prédio de esquina na rua Raul Pompéia que o visitante, esperado para a consulta das 13 horas, chegou. Um homem de cabelos grisalhos, presos num extemporâneo rabo-de-cavalo, abre a porta dos fundos do apartamento. A cigana aguarda pelo visitante instalada, como uma soberana, num inacreditável quarto de empregada, decorado por imagens de entidades ciganas,medalhas, moedas espalhadas pelo chão, imagens de bruxas,gnomos,baralhos,véus,espelhos,dados,pedras,metais. A anárquica congregação de signos impressiona os olhos recém-chegados do cliente. As moedas, diz ela, são símbolo da fertilidade. As estatuetas representam os Ciganos da Lua Cheia. Um inventário do que significa cada uma daquelas bugingangas místicas seria suficiente para encher um tomo.
Apelo ao mutismo para tentar descobrir que estranho jogo é este que a cigana joga para impressionar o freguês. Se eu começar a falar pelos cotovelos, estarei dando à cigana as informações de que ela necessita para, espertamente, formular suas previsões. Baixa em mim o espírito daquele ministro do governo militar que respondia as inquisições dos curiosos com uma frase-padrão :"Nada a declarar". Declaro o mínimo possível à cigana. Faço mistério. Quero ver se ela é capaz de decifrar esta esfinge precária , com a ajuda daquele exército de entidades.
O jogo começa em desvantagem para o consulente. A paisagem do quarto de empregada - transformado em altar de supostas divindades ciganas - dá a Esmeralda uma posição de indiscutível superioridade sobre quem a visita. Ali, literalmente,quem dá as cartas é ela. Ao visitante, cabe o papel de ouvinte. Quem bate às portas deste oráculo cigano na esperança de enxergar as feições do futuro sente-se como um paciente que espera ouvir do médico um prognóstico qualquer - de preferência,otimista. O médico é o senhor da situação. A cigana também.
A cena lembra um conto que Jorge Luis Borges nunca escreveu. Uma porta maciça, no fundo do Salão do Tempo Presente, protege um mistério inalcançável : o futuro. É impossível enxergá-lo . Quando finalmente o viajante consegue abrir a porta maciça , o feitiço se quebra : o futuro deixa de ser futuro. Desvendado aos olhos do curioso, o futuro transforma-se em tempo presente. Mas o mistério se renova com a aparição de outra porta maciça, ao fundo do salão recém-conquistado : lá estará,novamente invisível, o futuro que a todos fascina - arredio , inalcançável , fora do campo de nossa visão. Ciganas como Esmeralda se dizem capazes de enxergar através da porta indevassável, esta barreira que mantém o futuro protegido contra as investidas de nossa pobre curiosidade . Deve ser esta a principal razão que leva ciganas a atrair a curiosidade de crentes ou céticos envergonhados que, como eu, pagam setenta reais pelo direito de entrar neste quarto de empregada de um prédio em Copacabana.
Eis agora a Cigana Esmeralda tentando exercer diante de mim seus pretensos poderes divinatórios. Ciganos,videntes e outros supostos donos de bolas de cristal têm também o dom de provocar medo em almas impressionáveis. Porque há,na vida ou nos palcos,qualquer coisa de trágico e intrigante em previsões. É assustadora a voz da vidente que, misturada à multidão, grita para César "cuidado com os idos de março !" na cena shakesperiana. César manda chamar o autor do aviso : "O que me dizes agora ? Repete !". O vidente : "Cuidado com os Idos de março". Mas César não dá ouvidos ao vidente :"É um sonhador.Pode esquecer.Passemos". Quando os idos de março chegam, César é apunhalado no senado romano.
As sobrancelhas da cigana que agora olha nos meus olhos foram desenhadas a lápis. Os cabelos com certeza passaram por um tintura. A cigana começa a manusear as cartas, avisa que meus dias de sorte são terça e sexta à tarde (depois,numa busca na Internet,vejo que outro horóscopo cigano indica o dia segunda-feira como dia de sorte.Em qual das duas entidades acredito : Internet ou cigana ? ).
De vez em quando,em meio a caudalosos informes sobre saúde ("boa"),vida ("longa"),pedra de nascença ( "turmalina verde"), elementos da natureza ("ouro branco" e prata velha"), número de sorte
("trinta e três"), cristal de sorte ("branco transparente"), cor ("verde"),recomendações ("atenção a modificações na pele"),a cigana faz perguntas repentinas : "Quem é Sérgio ?","quem é José ? ","quem é Paulo ou Paulinho ? ". Respondo que não me lembro de alguém com estes nomes. A cigana informa : um "Sérgio" vai me ajudar; um "José","já morto", intercede por mim; um "Paulo" pode trazer problemas se eu assinar documentos com ele.
Começo a avaliar a possível tática da cigana. Faz perguntas genéricas envolvendo nomes ou situações razoavelmente comuns. Quem não conhece um "Sérgio",um "José" ou um "Paulinho" ? A certa altura, ela pergunta,depois de bater no meu joelho direito : "O que é que você sente aí ? ". Respondo que nada. Mas poderia perfeitamente ter um problema qualquer no joelho, o que com certeza alargaria a lista dos possíveis acertos da cigana. Se houver pelo menos uma coincidência entre as suposições da cigana e a vida do visitante , o caminho estará aberto para que o ouvinte saia dali impressionado.
Adiante,a cigana lê nas cartas que tive "preocupação com aquisição de residência",mas os problemas ligados à documentação "estão se desembaraçando" - o que é verdade. "Você pode fazer uma viagem ao exterior de repente de uma hora para outra".
Depois de descobrir que tenho três filhos , insiste : "você teve preocupação com um dos filhos este ano" . Rebato : "Qual é o pai que não tem preocupação com filhos ? ". A cigana não entrega os pontos : "Mas você teve uma preocupação especial com um dos três,sim.Vejo o sol clareando a situação".
O segundo conselho é precedido por uma pergunta : "De quem é esse carro prateado ? ". A cigana simula ver alguma coisa nas cartas. Respondo que nunca tive carro dessa cor. Mas ela insiste :"Cuidado quando entrar num carro prateado,porque ele pode estar com problema nos freios. O carro pode ser de um amigo .Você pode se dar mal. Você tem de ficar atento .Cuidado com velocidade,cuidado com acidente".
Que fique registrado : se um dia o autor dessas mal traçadas linhas se meter em trapalhadas num carro prateado,a cigana Esmeralda merecerá ser entronizada no altar as pitonisas.
Quando a consulta se aproxima do fim,Esmeralda me informa que uma entidade cigana,um certo Vladimir,me dá proteção. A cigana sugere que eu um dia faça uma oferenda a Vladimir : podem ser frutas, ofertadas ao "povo cigano" ao pé de uma árvore. Esmeralda me oferece dois conselhos. Primeiro : "Não use perfume de Alfazema ! Dá azar. É das múmias !". Uriel,"anjo da Noite", igualmente me protege - é o que dizem as cartas de Esmeralda.
O Grande Jogo das Coincidências vai se armando neste quarto de empregada travestido de oráculo. Um pai que tivesse tido uma "preocupação especial" com um dos filhos ficaria,com certeza,impressionado com a insistência da cigana sobre esta particularidade. Quem acredita em "avisos" pensaria dez vezes antes de embarcar num carro prateado depois de ouvir a recomendação. Embalada pelas cartas, Esmeralda ainda me daria dois conselhos que são um primor de incorreção política : "Afaste-se de quem é homossexual.Cuidado ao lidar com judeus".
Não revelo minha condição de repórter. Deixo sem resposta a pergunta que a cigana me faz com insistência : "Por que você tem dúvida quanto à profissão"? Entre uma e outra informação, tento perguntar à cigana por que ela se acredita capaz de enxergar o que ninguém enxerga :
- É espiritual. Não sei explicar. É uma mediunidade espontânea dada por Ele (refere-se a Deus,aponta para uma imagem na parede). Faço este trabalho deste os oito anos de idade. Já estou com sessenta e nove.
Esmeralda sabe capitalizar o dom de impressionar os outros.Trabalha "de segunda a segunda",como diz,orgulhosa.Em dias de movimento intenso, pode dar "de doze a treze" consultas.Façam-se as contas. Treze vezes setenta igual a 910 reais - um faturamento diário nada desprezível. Se apenas três almas penadas batessem por dia à porta da cigana em busca de um facho de luz sobre os mistérios do futuro, ela teria um faturamento mensal de 6.300 reais.Caixinha,obrigado.
Peço para tirar fotos da cigana,com a desculpa de que uma de minhas filhas gostaria de ver em que ambiente ela trabalha. Em nenhum momento digo que aquela consulta eventualmente poderia servir de matéria-prima para um reportagem que penso em publicar numa revista que nem existe ainda. Quando me preparo para me despedir,a cigana me diz,textualmente :
- Se sair em alguma revista, mande para mim...
Fico pensando : quem sabe,ela notou em minha curiosidade um ou outro traço típico de jornalista. Observadora atentíssima - porque precisa pescar nas palavras do visitante informações que lhe permitam arquitetar previsões - ela pode perfeitamente ter imaginado minha intenção. Arriscou,então,um palpite nada absurdo.
De qualquer forma, quer tenha sido mero palpite ou não, devo dizer,em nome da veracidade factual, que a cigana se referiu a uma revista que era segredo. As palavras de Esmeralda ficaram registradas no meu gravador.
Piso novamente no terreno movediço das suposições,divagações,coincidências. Quem entra neste quarto de empregada em Copacabana ingressa num jogo de espelhos sem fim. Uma suposição leva a outra, numa teia que não se acaba nunca.
Deixo o oráculo depois de uma consulta que durou exatos cinqüenta minutos. Chove lá fora. Um carro prateado (são tantos,na cidade) sai do túnel que dá para a rua Raul Pompéia. Tenho a sensação de que paguei setenta reais para adquirir uma dúvida ("cuidado com um carro prateado") e um alívio ("a carta forte do sol saiu várias vezes. Sol não pode ser ruim,porque clareia").
O Santo Protetor da Racionalidade me sopra, enquanto tento driblar as poças d'água na calçada neste começo de tarde de sábado : é ridículo acreditar que generalidades pronunciadas por uma mulher que se diz dona de poderes premonitórios. Somente quem já chega ao Oráculo de Esmeralda preparado para acreditar em platitudes sobre o futuro é capaz de dar credibilidade às palavras da cigana.
Penso que a chave do enigma é este : só acredita em previsões assim quem chega ali preparado para acreditar. Caso contrário, é possível derrubar uma por uma todas as sentenças da cigana . Prever que um piloto de Fórmula-Um vai sofrer um "acidente fatal" numa curva não chega a ser uma demonstração genial de clarividência. Igualmente, dizer a um pai que ele teve "preocupação especial" com um dos filhos é apostar no mais do que possível . Por fim,quem nunca se preocupou com documentos de imóveis ?
Noventa e nove por cento das evidências dizem que tudo não passa de um esperto jogo de adivinhações. A própria cigana é mestra em jogar na loteria das coincidências : quer saber - por exemplo - se o visitante tem um problema no joelho. Se ele tiver, vai acreditar que ela é dotada de poderes no mínimo estranhos. É tudo ilusão. O iludido é o visitante. A ilusionista é a cigana.
Mas devo confessar : é impossível não se deixar fascinar por este Grande Jogo das Coincidências, tão habilmente manipulado por uma observadora arguta,cercada de ícones por todos os lados,num minúsculo quarto de empregada. O ambiente, algo lúgubre,é propício a divagações de todo tipo. Um encontro como este deixa sempre uma fagulha de dúvida no peito de quem descrê.
Caio por cinco minutos na tentação de perguntar a mim mesmo, enquanto espero pela condução (felizmente, não há táxis prateados no Rio de Janeiro) : e se o José de que ela fala for o meu avô, já morto ? Como é que ela adivinhou que fiz a consulta pensando em escrever para a revista ? O que é que levou a cigana a dizer que eu tinha tido um problema com documentação de uma "residência" ? Rendo-me por quinze minutos à certeza de que não custa nada dar uma chance ao imponderável, ao invisível, ao insondável,nem que seja por mera curiosidade jornalística. É um gesto inofensivo.
A tempestade que estava se armando no céu de Copacabana finalmente se dissipa. Pego um táxi - amarelo,é claro. Nada de carro prateado. A rua Raul Pompéia fica para trás. A cigana permenece no quarto- quem sabe,à espera do próximo visitante.
Vou adiante : intimamente, decreto a suspensão temporária de meu ceticismo. Resolvo dar um crédito de confiança às entidades que - jura a cigana - me oferecem proteção : então, bem-vindo,Cigano Vladimir. Bem-vindo, Uriel,Anjo da Noite. Obrigado, pedra de Turmalina, ouro branco, prata velha. A partir desta tarde de sábado, conto com vocês.
Mas, lá no deserto de minha descrença, onde não há espaço para pedras de turmalina nem anjos da noite nem carros prateados, eu sei : é tudo um mero jogo de espelhos, um labirinto de adivinhações.
Copacabana me engana.
Quatro meses depois da consulta,bato de novo à porta da cigana. Quero saber se é verdadeira a informação de que ela teria morrido dias antes do Natal. O porteiro confirma : "É verdade.Dona Esmeralda morreu de repente. Fecharam o apartamento.Desligaram o telefone.Acabou o movimento".
Posted by geneton at junho 11, 2007 09:15 PM