junho 09, 2007

OS LIVROS ESTÃO INDO PARA O TRITURADOR. OU A FOGUEIRA. CHAMEM CASTRO ALVES, URGENTE!

A vocação do Brasil para se perpetuar como uma republiqueta de décima quinta categoria se manifesta de novo. O trabalho de anos e anos do jornalista Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos, foi para o lixo.


A cena - patética, deprimente, horrorosa, indefensável, injustificável - saiu no jornal: caminhões recolhendo caixas e caixas de exemplares do livro "Roberto Carlos em Detalhes" no depósito da Editora. Vergonha. Vergonha. Vergonha. A visão de livros incinerados ou triturados é digna da era nazista. Um colunista da Veja, André Petry, acertou em cheio: Roberto Carlos manchou para sempre a própria biografia ao dar esta demonstração de absurda intolerância.

O livro vai ser fisicamente destruído - uma violência inominável. A destruição física do livro significa que todas as páginas foram censuradas. Todas as frases. Todas as vírgulas. Todos os parágrafos. Tudo. Que se diga com todas as letras: o veto integral ao livro configura uma violência e um ataque à liberdade de expressão. Abre um precedente perigosíssimo. Dá vontade de repetir a pergunta inútil: "Onde é que estamos?".

Uma voz, vinda das profundezas do inferno, sussurrará aos nossos ouvidos :"Calma! Nós estamos no país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza! Aqui, nesta republiqueta de décima sexta categoria, um juiz ajuda a decretar a pena de morte para um livro honesto, jornalisticamente correto e bem apurado. Depois, posa para foto com o co-responsável pela violência- o autor da queixa contra o livro!" ( quem não leu no jornal perdeu a chance de se indignar : terminada a audiência, o juiz pediu para tirar uma foto ao lado de Roberto Carlos. De quebra, deu ao cantor um CD que ele, juiz, músico amador, gravou nas horas vagas, um arremedo de Bossa Nova...).

É claro que, na prática, o recolhimento dos exemplares do livro não significa nada. O juiz, o cantor & seus sócios se esqueceram de que, para o bem ou para o mal, a vida intelectual hoje não se apóia em bases físicas, mas virtuais. Quem quiser pode queimar papel à vontade. Pode mandar triturar caixas e caixas e caixas de livros. Como se dizia na pré-história, "debalde". Porque, hoje, textos existem virtualmente na Internet. Não podem ser punidos com a destruição física. O texto integral do livro já circula, livre, nos computadores. Quem quiser pode lê-lo a qualquer momento. É só clicar.

A Internet fez este enorme bem à humanidade: as garras da censura e da intolerância podem ser peludas, intransigentes, violentas, nazistóides e intolerantes, mas são incapazes de decretar a morte de um texto. Hoje, é tecnicamente impossível banir um livro. (Thank you, Bill Gates! Deus te pague! Aliás, já pagou, em bilhões de dólares) . Basta que qualquer internauta de qualquer lugar do mundo digite o texto de um livro censurado e hospede-o num site fora das garras dos censores. Pronto. Acabou a palhaçada. A censura vai para o inferno. A liberdade de expressão - um bem que não pode ser jogado às feras sob hipótese alguma - reina, soberana e intocável, nas telas dos computadores).

A famosa primeira emenda à constituição americana proíbe que se crie qualquer instrumento contra a liberdade de expressão e de imprensa. A boa notícia : a Internet vem funcionando como uma espécie de Primeira Emenda planetária contra os abutres da liberdade de expressão. Nem foi preciso que se escrevesse esta emenda : ela já entrou em vigor, para todos os efeitos.

O artigo de Paulo Coelho na Folha de S.Paulo sobre a censura imposta ao livro é brilhante. O grande best-seller teve coragem. Partiu para a briga,o que é uma virtude louvabilíssima, nesta republiqueta de décima sétima categoria em que todo mundo dá tapinha nas costas de todo mundo. Pausa para vomitar. O choque de idéias, obrigatório em ambientes intelectualmente saudáveis, aqui no Brasil é logo substituído pela conciliação. Não por acaso, o Brasil é o que é : um paiseco de décima oitava categoria em que o jornalismo é chato, a literatura é chata, a universidade é chata.

Com raras exceções, a violência de inspiração nazista cometida contra o biógrafo de Roberto Carlos mereceu apenas reações burocráticas da imprensa. Não conheço Paulo César Araújo pessoalmente. Mas ele merece toda a solidariedade. Cadê os editoriais irados na imprensa? Cadê as manifestações iradas dos editores? Cadê as páginas e páginas e páginas de reclamação, briga, confronto, questionamento? O assunto não pode morrer assim. Que grande, enorme, injustificável vergonha! Onde estão os editores todos - que não fecham o trânsito na Avenida Paulista e na Avenida Rio Branco para protestar?

O Caso Roberto Carlos não é o único. Há outras vítimas de violência : um perfil biográfico do grande poeta Manuel Bandeira, escrito pelo jornalista Paulo Polzonoff, continua mofando no depósito de uma editora, numa cena digna de um filme sobre a Alemanha dos anos trinta- ou do Brasil dos anos setenta! Motivo: herdeiros do poeta investiram previamente contra o livro.

O caso é gravíssimo: um livro,impresso, sequer chegou às prateleiras da livrarias! A violência é até pior do que a cometida contra o biógrafo de Roberto Carlos. O livro sobre o cantor já é de domínio público. Independentemente do fato de o livro ter sido recolhido, censurado, destruído, queimado ou triturado, quem quiser poderá lê-lo na tela do computador. Já o livro sobre Manuel Bandeira foi alvejado no nascedouro. Nem chegou a ser distribuído! Manuel Bandeira é um patrimônio do Brasil. Ter acesso à história do poeta é um direito dos leitores. Mas não! Aqui, na republiqueta de décima nona categoria, o livro mofa nos depósitos.

Cadê as reportagens sobre o caso? Onde estão os pauteiros dos cadernos de cultura? Que explicação se dá para esta violência? O que é que vai acontecer com os livros? Digo de novo: o caso é gravíssimo. Mas quase ninguém liga. Vai todo mundo cantar "olê-lê-olá-lá-pega-no-ganzê-pega-no-ganzá" em mesas de churrascaria desta republiqueta de vigésima categoria. Em duas, três semanas, o assunto some do noticiário. Mas não deveria sumir.

Que fique registrado este protesto, inútil, contra duas violências que acabam de ferir e manchar o ambiente editorial e jornalístico deste paiseco de vigésima primeira categoria: uma foi cometida contra Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos ;a outra, contra Paulo Polzonoff, autor de um perfil biográfico de Manuel Bandeira.

O pior de tudo é que os que tiveram a chance de ler a biografia de Roberto Carlos garantem que o tom do livro é cem por cento elogioso! O perfil de Manuel Bandeira é apenas uma reportagem alentada sobre o poeta. Mas os dois estão condenados! Repito: que vergonha! Que vergonha! Que vergonha!

Que paiseco de vigésima segunda categoria é este, em que queixas contra livros honestos e corretos encontram terreno para progredir? Que Congresso Nacional é este - que não revê imediatamente as brechas que a Constituição deixou abertas para os abutres da liberdade de expressão? Duas décadas depois da redemocratização, a Censura ameaça emergir de novo das trevas, sob novos disfarces. Que se diga: não, não e não! O Brasil não quer ver de novo este filme de horror: antes, generais de óculos escuros, sargentos e coronéis se davam ao direito de dizer o que deveríamos ler ou não. Hoje, a intolerância, a intransigência e a ganância, escudadas em brechas da lei, ameaçam transformar o Brasil no país da biografia a favor. Quem desafinar o coro vai para a fogueira! Ou para a máquina trituradora! Em aldeias civilizadas, quem se sente ofendido recorre à Justiça. Briga boa é a que vai até o Supremo. O que não se pode, sob hipótese alguma, é censurar cem por cento do conteúdo de um livro, mandar uma edição inteira para o lixo ou condenar uma biografia a mofar no depósito


Qual o resultado de tanta insânia e tanto horror?
Gestos como estes ameaçam inviabilizar a publicação de biografias no Brasil. Se a esquisitice e a intolerância de uma personalidade pública são suficientes para condenar um livro a arder no fogo da censura, as editoras vão fugir da raia antes de embarcar em projetos biográficos. É este, ma verdade, o grande prejuízo: quantos e quantos projetos não serão abortados antes de escrito o primeiro parágrafo? Quantos e quantos livros deixarão de ser escritos?

Quem perde? Como sempre, o Triste Gigante; esta nossa velha republiqueta de vigésima terceira categoria - que convive com a insânia, a violência, a iniquidade, a censura e o horror como se fosse possível tolerar a insânia, a violência, a iniquidade, a censura e o horror. Não é.

Então, num gesto inútil de desobediência civil, só para mostrar que a capacidade de indignação não morreu, todos deveriam - independentemente de ter ou não interesse sobre a história do biografado – acessar na Internet o livro que será triturado em breve.

A nós, espectadores deste desfile de horrores, resta o quê? Chamar Castro Alves, urgente : "Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura/ Se é verdade / Tanto horror perante os céus!".

(*)Publicado no jornal O GLOBO, 13/05/07

Posted by geneton at junho 9, 2007 05:58 PM
   
   
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