CAETANO VELOSO
O "QUASE PERNAMBUCANO" CAETANO VELOSO VÊ O BRASIL PELOS OLHOS DE JOAQUIM NABUCO
Rio de Janeiro - Caetano Veloso, o mais baiano dos artistas baianos, anuncia, a quem interessar possa: vem se sentindo “quase” um pernambucano. Motivo: o deslumbramento que lhe causou a leitura do livro “Minha Formação”,escrito há um século pelo abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco.
Depois de ganhar de presente um exemplar da nova edição do livro,publicado pela Editora Topbooks, Caetano Veloso ficou “deslumbrado” não apenas com a beleza do texto,mas também com as confissões feitas pelo abolicionista. O homem que combateu com todas as forças a escravidão escreveu, num belo texto confessional,que sentia saudade dos escravos.
O impacto da descoberta de Joaquim Nabuco foi imediato sobre o mais inquieto dos compositores brasileiros de primeiro time. Caetano Veloso extraiu de uma passagem de Joaquim Nabuco o título do disco que lançou em dezembro – “Noites do Norte”. Resolveu enfrentar o desafio de musicar um texto em prosa de Joaquim Nabuco sobre a escravidão – devidamente incluído no disco.Como se não bastasse,ficou bem impressionado com o artigo que o vice-presidente da República,o pernambucano Marco Maciel,escreveu na Folha de S.Paulo no Dia Nacional da Consciência Negra.Caetano Veloso elogia a firmeza do artigo em defesa do negro.Por fim,proclama que o melhor grupo em atividade na música brasileira vem do Recife : a banda Nação Zumbi.
Neste depoimento – que Continente Cultural publica na íntegra com exclusividade – Caetano Veloso explica com detalhes a origem da paixão intelectual por Joaquim Nabuco.Trechos desta entrevista exclusiva apareceram no site de Caetano Veloso na Internet. Agora,pela primeira vez,o depoimento é publicado sem cortes.
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Eis exemplos de textos de Joaquim Nabuco que emocionaram Caetano Veloso no livro “Minha Formação “ :
1."NENHUMA DAS MINHAS IDÉIAS POLÍTICAS SE ALTEROU NOS ESTADOS UNIDOS,MAS NINGUÉM ASPIRA O AR AMERICANO SEM ACHÁ-LO MAIS VIVO,MAIS LEVE,MAIS
ELÁSTICO DO QUE OS OUTROS,SATURADOS DE TRADIÇÃO E AUTORIDADE,DE
CONVENCIONALISMO E CERIMONIAL".
2."..COMBATI A ESCRAVIDÃO COM TODAS AS MINHAS FORÇAS,REPELIA-A COM
TODA A MINHA CONSCIÊNCIA- COMO A DEFORMAÇÃO UTILITÁRIA DA
CRIATURA, E NA HORA EM QUE A VI ACABAR PENSEI PODER PEDIR TAMBÉM MINHA
ALFORRIA,POR TER OUVIDO A MAIS BELA NOVA QUE EM MEUS DIAS DEUS PUDESSE
MANDAR AO MUNDO; E,NO ENTANTO,HOJE QUE ELA ESTÁ EXTINTA,EXPERIMENTO UMA SINGULAR NOSTALGIA : A SAUDADE DO ESCRAVO"...
3."A ESCRAVIDÃO PERMANECERÁ POR MUITO TEMPO COMO A CARACTERÍSTICA NACIONAL DO BRASIL.ELA ESPALHOU POR NOSSAS VASTAS SOLIDÕES UMA GRANDE
SUAVIDADE; SEU CONTATO FOI A PRIMEIRA FORMA QUE RECEBEU A NATUREZA
VIRGEM DO PAÍS -E FOI A QUE ELE GUARDOU; ELA POVOOU-O COMO SE FOSSE
UMA RELIGIÃO NATURAL E VIVA,COM OS SEUS MITOS,SUAS LEGENDAS,SEUS
ENCANTAMENTOS; INSUFLOU-LHE SUA ALMA INFANTIL,SUAS TRISTEZAS
SEM PESAR,SUAS LÁGRIMAS SEM AMARGOR,SEU SILÊNCIO SEM CONCENTRAÇÃO,SUAS ALEGRIAS SEM CAUSA,SUA FELICIDADE SEM DIA
SEGUINTE...É ELA O SUSPIRO INDEFINÍVEL QUE
EXALAM AO LUAR AS NOSSAS NOITES DO NORTE.
4.”QUANTO A MIM,ABSORVIA-A NO LEITE PRETO QUE ME AMAMENTOU; ELA
ENVOLVEU-ME COMO UMA CARÍCIA MUDA TODA A MINHA INFÂNCIA;ASPIREI-A
NA DEDICAÇÃO DE VELHOS SERVIDORES QUE ME REPUTAVAM O HERDEIRO
PRESUNTIVO DO PEQUENO DOMÍNIO DE QUE FAZIAM PARTE....ENTRE MIM E
ELES,DEVE TER-SE DADO UMA TROCA CONTÍNUA DE SIMPATIA - DE QUE
RESULTOU A TERNA E RECONHECIDA ADMIRAÇÃO QUE VIM MAIS TARDE A
SENTIR PELO SEU PAPEL".
5."PELA PEQUENA SACRISTIA ABANDONADA PENETREI NO CERCADO ONDE ERAM
ENTERRADOS OS ESCRAVOS...DEBAIXO DOS MEUS PÉS ESTAVA TUDO O
QUE RESTAVA DELES.SOZINHO ALI,INVOQUEI TODAS AS MINHAS REMINISCÊNCIAS,CHAMEI-OS A MUITOS PELOS NOMES,ASPIREI O AR
CARREGADO DE AROMAS AGRESTES,QUE ENTRETÉM A VEGETAÇÃO SOBRE SUAS
COVAS...".
6."OH,OS SANTOS PRETOS ! SERIAM ELES OS INTERCESSORES PELA NOSSA
INFELIZ TERRA,QUE REGARAM COM SEU SANGUE,MAS ABENÇOARAM
COM SEU AMOR !"....
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POR QUE O TEMA DA RACA BRASILEIRA APARECE TÃO FORTEMENTE EM SUAS ÚLTIMAS MUSICAS ? O QUE É QUE PROVOCOU O INTERESSE POR ESSE TEMA AGORA ?
Caetano Veloso : "Interesso-me por esse assunto desde
menino.Não parei de me interessar.Mas quando eu ia comecar a fazer esse novo
disco,eu so pensava nos sons : queria fazer experimentacoes com o modo de
gravar a voz com percussao.Eu nem sabia que cancoes eu iria cantar ou
compor.Mas,assim que recebi de presente o livro "Minha Formação",fiquei
maravilhado com Joaquim Nabuco.Desde o início,fiquei impressionado com a
amplidão da visão e o estilo de Joaquim Nabuco.O que me impressionou também foi
o modo de Joaquim Nabuco ver a política internacional no século XIX,a situação
na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos.O comentário que ele faz dos
Estados Unidos dá uma impressão uma lucidez total,uma total ausência de
provincianismo. É uma voz de uma verdadeira elite brasileira assim como a gente
gostaria de poder sonhar.E,no entanto,a gente tem ! Fiquei maravilhado com
Joaquim Nabuco antes de chegar a essa questão da raça.Quando Joaquim Nabuco
entra nas lembranças do abolicionismo - ele que foi um dos líderes mais
notáveis da campanha da abolição -,faz uma reflexão sobre uma lembrança de
infância quando o assunto da escravidão apareceu para ele como um problema a
ser resolvido.Fiquei apaixonado por um texto magnífico que comeca dizendo: a
escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do
Brasil.A frase entra com grande impacto.O que vem depois vai aprofundando o
problema para um lado que a gente não espera.Eu achei que ali estava um texto
de densidade e beleza,uma expressão profunda do Brasil.Eu disse assim : "Vou
imprimir este texto de Joaquim Nabuco na primeira página do libreto do meu novo
disco". Não pensei,num primeiro momento,em musicar aquelas palavras de Joaquim
Nabuco.Terminei musicando,coisa que me parecia muito difícil,porque era um
texto em prosa,reflexivo,mas com um certo tom lírico.O assunto entrou no meu
disco com mais peso do que eu imaginava".
JOAQUIM NABUCO CONFESSOU,EM "MINHA FORMAÇÃO",QUE TINHA UM SENTIMENTO CONTRADITÓRIO : ELE,QUE TINHA LUTADO COM TODAS AS FORÇAS CONTRA A ESCRAVIDÃO,CONFESSOU QUE SENTIA O QUE ELE CHAMAVA DE "SINGULAR NOSTALGIA" - A
SAUDADE DO ESCRAVO. O QUE DEIXOU VOCÊ FASCINADO COM JOAQUIM NABUCO FOI O SENTIMENTO AMBÍGUO QUE ELE TEVE EM RELAÇÃO A ESSE TEMA?
Caetano Veloso : "Eu já estava muito fascinado por ele antes de
ele confessar essa sutileza do espírito individual diante da questão.É um
momento complexo e ambíguo do "Minha Formação".Talvez seja o momento mais
intimamente confessional de todo o livro.Depois dessa confissão é que vem o
trecho que me levou a querer musicar.O assunto terminou dando o título a meu
disco - que se chama "Noites do Norte".Mas essa confissão permitiu que ele
retomasse a idéia de que a escravidão tinha organizado -ou desorganizado! - a
vida brasileira de tal maneira que o Brasil precisaria de muito tempo e muito
esforço para desfazer o trabalho da escravidão.É um bordão do pensamento de
Joaquim Nabuco,que,neste momento de "Minha Formação",aparece sob a luz do
reconhecimento de um sentimento contraditório : aquele que mais lutou pela
abolição da escravatura confessa que sentia saudade do escravo. Para mim, essa
reflexão pessoal de Joaquim Nabuco já é uma revelação de algo muito profundo
que é o Brasil. Quando vi que,logo em seguida,ele expande esse sentimento para
um retrato abrangente do Brasil,eu disse : é mais do que poesia !"..
QUE OUTRO HORROR BRASILEIRO, ALÉM DA ESCRAVIDÃO, SERIA CAPAZ DE DESPERTAR SENTIMENTOS AMBÍGUOS EM VOCÊ?
Caetano Veloso : "Eu estou embebido dessa visão do Joaquim
Nabuco.Venho lendo e relendo "Minha Formação".Já reli - muito! - "O
Abolicionismo".Assim como fêz Joaquim Nabuco,acho difícil,neste momento,não
atribuir todos os horrores nacionais à escravidão- que ele descreve como tendo
formado o Brasil.
Joaquim Nabuco atribuía à escravidão a estrutura do
pensamento do homem brasileiro como ser social : é a sensação paralisadora que
o brasileiro tem de que tudo se deve às autoridades oficiais; toda queixa deve
ser feita contra elas;todas as exigências devem ser feitas a elas;quase nenhuma
responsabilidade resta para o cidadão.É essa vontade louca de cada brasileiro
se tornar um funcionário público,uma estrutura que leva a coisas que me
indignam. Sou,por exemplo,um obsessivo pela obediência às leis do
trânsito.Sempre me pareceu absolutamente inaceitável que as pessoas no Brasil
não considerem o sinal de trânsito um sinal nítido e simples,uma lei de
convivência social paradigmática de todas as outras leis de convivência social.
Mas vejo também a linguagem corporal, extremamente sensual e
bonita dos brasileiros nas ruas.Estrangeiros - que às vezes trago ao Brasil -
ficam fascinados com esse jeito de ser e de andar na rua dos brasileiros - que
transmite uma impressão de felicidade física.O diretor do Museu Gugenheim,que
veio ao Brasil para escolher a cidade onde vao instalar uma filial do
museu,disse,depois de um dia : "Quero morar aqui !".Pelo modo de as pessoas de
moverem ! Isso me parece misteriosamente vinculado à dificuldade brasileira de
entender o aspecto abstrato de leis tão simples quanto as de
trânsito.Antes,muito antes de ler o que Joaquim Nabuco escreveu sobre a
escravidão,eu pensava assim.Eu manterei,sempre,minha posição pública contra
o desrespeito às leis do trânsito,mas,intimamente, olho para esse fenômeno com
amor e ternura.Vejo que é parte de alguma coisa preciosa que não devemos
perder - ainda que aprendamos a respeitar os sinais de trânsito !
Eduardo Gianetti - um sujeito que admiro imensamente,adoro o
jeito de ele pensar desde que li o livro que ele escreveu sobre economia - me
perguntou uma vez se eu achava que o Brasil poderia passar a ser
organizado,nesse sentido de parar no sinal de trânsito.Não vejo necessariamente
uma contradição insolúvel.
Isso leva também ao fato de o Brasil estar sempre visto como a
um milímetro de ser apenas um paraíso de turismo sexual.Tenho sentimentos
ambíguos semelhantes aos que encontrei em Joaquim Nabuco com relação à
escravidão. Talvez o desrespeito às leis de trânsito venha de muita coisa que a
escravidão nos deixou.O sujeito que,por possuir um automóvel,se julga no
direito de fazer o que quer que seja - e fura o sinal vermelho - se acostumou
a uma sociedade de senhores e escravos,não a uma sociedade de cidadãos que
devem se respeitar em pé de igualdade.A repressão se mostra tímida diante do
proprietário do automóvel,mas se mostra violenta diante dos despossuídos. Isso
é parte da formação do Brasil - uma vergonha,uma coisa tétrica;mas,algo em tudo
isso é precioso,é bonito,leva a essa sensualidade do modo de ser do brasileiro
na rua e a essa doçura no trato,uma série de coisas bonitas que o Brasil não
deve perder.
O modo de você ver as pessoas na rua leva o Brasil a estar sempre
em risco de se tornar uma espécie de paraíso do turismo sexual- um sintoma do
legado da escravidão,porque é uso do corpo do outro por quem pode usar. Mas o
país que corre o risco de ser um ambiente de turismo sexual tem,em
princípio,algo de precioso e maravilhoso - que não deve ser destruído por um
moralismo que venha a fazer uma assepsia da vida cotidiana que nos livrasse do
perigo de ver as nossas meninas, os nossos meninos prostituídos por
estrangeiros.
O risco que nós corremos,sob muitos aspectos,é maravilhoso.Não
havendo este reconhecimento,essa limpeza não interessa. Então é nessa vertente
de ambigüidades de julgamento moral que eu me identifiquei muito profundamente
com esse trecho de Joaquim Nabuco sobre a escravidão. Mas admiro também
imensamente todo o resto - que é mais racional e não ambíguo".
O QUE É QUE IMPRESSIONOU VOCÊ NO ARTIGO QUE O VICE-PRESIDENTE MARCO MACIEL ESCREVEU SOBRE O MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL?
CAETANO VELOSO : "Eu li o artigo de Marco Maciel no Dia Nacional
da Consciência Negra.Achei de grande importância,porque é um artigo que,alem de
correto, não teve pudores de ir nos pontos essenciais,ao propor a adoção
de medidas de reparação histórica aos negros.O vice-presidente da República,um
homem do PFL - um partido de centro-direita ou considerado no espectro político
brasileiro como estando à direita - escreveu um artigo em que diz não tudo o
que deve ser dito,mas o que uma autoridade como ele na melhor das hipóteses
diria. O artigo é muito bom ! Reputo de grande valor histórico.Não tenho lido
por parte de políticos de esquerda textos sobre o mesmo assunto tão nítidos e
tão corretos.Agora,vão dizer "olhem o Caetano Veloso com o PSDB,Fernando
Henrique Cardoso, Antônio Carlos Magalhães,Marco Maciel,ele está em cima do
muro...". Mas ninguém pode medir se artista é direita, esquerda ou centro.Não
pode julgar um artista como se o que ele faz devesse ser pesado a partir dessas
categorias !.
Dizer que um artista está em cima do muro é uma coisa
estúpida.Porque necessariamente o artista deve pairar muito acima do muro !.A
verdade 'e essa ! O jeito de Baden Powell tocar violao era direita ou esquerda
?.Gostaria que alguem me dissesse.Eu acho chato querer vincular".
HÁ EXATAMENTE UM SÉCULO, EM 1900, JOAQUIM NABUCO ESCREVEU A FRASE QUE HOJE VOCÊ CANTA, "A ESCRAVIDÃO PERMANECERÁ POR MUITO TEMPO COMO A CARACTERÍSTICA NACIONAL DO BRASIL", QUAL É HOJE O GRANDE TRAÇO DESSA HERANÇA NA VIDA BRASILEIRA ?
Caetano Veloso : "O mais evidente é a favelização das grandes
cidades e a estatística vergonhosa e escandalosa da predominância de negros
entre os que vivem na situação de favelado.Isso é o resultado mais imediato e
mais evidente. Mas há outros,muito mais sutis.Em "O Abolicionismo",Joaquim
Nabuco já registra esse fenomeno no nascedouro,ao dizer que estava se
formando uma aglomeração de pessoas jogadas perto das cidades".
VOCÊ UMA VEZ ESCREVEU QUE ESSA MISTURA DE RAÇAS NO BRASIL NÃO ERA GARANTIA "NEM DE DEGRADAÇÃO NEM DE UTOPIA GENÉTICA".SE VOCÊ FOSSE PROCURAR UMA
MÁ HERANÇA DESSA MISTURA, VOCÊ CITARIA O QUÊ ? E A BOA HERANÇA, QUAL FOI?
Caetano Veloso : "Eu estou muito impregnado de Joaquim
Nabuco.Já estou quase virando um pernambucano : é uma paixão. A maior honra
hoje em dia é que minha casa,no Rio,fica pertinho da saída da rua Joaquim
Nabuco.Fico honradíssimo.Eu estou tão embebido do pensamento de Joaquim Nabuco
que quando ouço uma pergunta como essa me lembro do que ele disse ainda na
campanha do abolicionismo - uma visão diferente da minha.É difícil citar,porque
é uma questão complexa,mas ele via uma coisa muito má na mistura de uma raça
que estava num estágio atrasado com uma raça que,por estar em estágio mais
adiantado de civilização,agia brutalmente.A combinação da submissão dos negros
com a brutalidade dos brancos era alguma coisa que só poderia criar uma
formação nacional débil e má.Mas Joaquim Nabuco diz coisas lindas,como,por
exemplo,que grande parte da atitude servil do negro apresentava uma
superioridade humana e moral que chegava às raias do sublime.Por essa
razão,ele diz que,em muitos casos,tinha saudade dos escravos - um sentimento
ambíguo. Joaquim Nabuco viu exemplos de abnegação,entrega,despojamento e
ausência de egoísmo em escravos que chegavam à raia da santidade.Isso poderia
vir a compensar o que havia de brutal na atitude do senhor.Para ele,
uma nação fundada nessa relação tem todas as probabilidades de não funcionar
bem e ter um futuro sombrio.
Há um momento em que ele cita um pensador inglês que disse que
os negros nos Estados Unidos nunca chegariam a uma verdadeira felicidade. Mas
ele via uma grande possiblidade de felicidade para os negros do Brasil,no
futuro,porque aqui não havia aquela separacao.Naturalmente,não é o que a
realidade de hoje confirma.Não podemos de forma alguma dizer que esta é a nossa
realidade.Em todo caso,os escravagistas do sul dos Estados Unidos mantinham a
nitidez da superioridade que justificava a escravização da raça negra.Nem os
escravos americanos nem os seus filhos podiam ter participação na
cidadania.Não podiam nem pleitear igualdade.Depois da abolição americana,era
essa a posição dos racistas do sul.Aqui no Brasil se deu algo que lá teria sido
um escândalo : os negros alforriados podiam ter escravos ! Podiam ser
senhores.O fato de ele poder ser escravo significa que ele poderia ter o status
de senhor.Joaquim Nabuco dizia que a escravidão no Brasil foi muito mais
hábil,porque ela mexe em todos os interstícios da sociedade, enquanto que nos
Estados Unidos,não.Isso dá uma possibilidade ao Brasil : se um dia superar os
problemas que a escravidão trouxe,o Brasil pode realizar possibilidades que os
Estados Unidos jamais poderão.
O fato de os escravos brasileiros,uma vez alforriados,poderem
ser senhores significava que não havia um impedimento de base racial,como nos
Estados Unidos,para que,em principio,pessoas de qualquer cor viessem a
participar da cidadania com plenitude. Joaquim Nabuco ja dizia no seculo
dezenove o que muita gente pensa que so se disse no Brasil depois dos anos
setenta,com o movimento negro e a influencia americana : a escravidao
brasileira se mostrou muito mais habil do que no sul dos Estados Unidos,porque
pode se perpetuar e se infiltrar por todos os meandros da sociedade
brasileira,os mais sutis,inclusive.Isso nao quer dizer que nao haja vantagem na
mistura e na confusao de hierarquia- uma caracteristica que faz com que o
movimento negro no Brasil nao possa ser parecido com o dos Estados Unidos.Isso
e' mau e bom.E' algo que os norte-americanos nunca tiveram nem pouderam ter.
Se nós conseguirmos crescer economicamente e superar
aleijões que a escravidão deixou na nossa sociedade,temos uma matéria prima
humana que os Estados Unidos nem sequer conhecem".
“A VONTADE DE SER AMERICANO”
NUMA DAS MÚSICAS,VOCÊ TRATA DA VONTADE DE RAUL SEIXAS DE "SER AMERICANO".HÁ UM SÉCULO JOAQUIM NABUCO TRATAVA DO PROBLEMA DE COMO NÓS BRASILEIROS VÍAMOS OS ESTRANGEIROS. NUM TRECHO DE MINHA FORMAÇÃ0O,ELE DIZ QUE O
AR LÁ É "MAIS VIVO E MAIS LEVE" QUE OUTROS,"SATURADOS DE TRADIÇÃO E CONVENCIONALISMO". OS AMERICANOS ESTARIAM, SEGUNDO JOAQUIM NABUCO,"INVENTANDO A VIDA, COMO SE NADA TIVESSE EXISTIDO ATÉ ENTÃO". VOCÊ, QUE ACABA DE SE
TRANSFORMAR EM DISCÍPULO DE JOAQUIM NABUCO, TEM OU TEVE ESSE SENTIMENTO DIANTE
DOS ESTADOS UNIDOS?
Caetano Veloso :"Joaquim Nabuco vai fundo também na crítica à
idéia de igualdade,tal como ela era vivida pelos americanos.Diz que os
americanos viviam a ilusão de que tinham uma liberdade individual que
resultava numa igualdade de cada indíviduo muito mais desenvolvida do que na
Inglaterra,por exemplo.Para ele,que era anglófilo,a Inglaterra tinha uma
solução que oferecia resultados melhores,porque a igualdade que se esboçava era
feita com conteúdos de nobreza moral que os americanos desconheciam"
MAS VOCÊ TEM O PENSAMENTO DE QUE,COMO JOAQUIM NABUCO DIZIA,OS AMERICANOS ESTAVAM REINVENTANDO A VIDA ?
Caetano Veloso : "Eu tenho esse pensamento.É o que a gente
sente estando nos Estados Unidos - ou de longe.É o aspecto mais positivo e
animador dos Estados Unidos.Interessa,porque parece um sopro de ar puro na
história da humanidade.Mas Joaquim Nabuco escreveu que os americanos,quando
dizem que cada indivíduo pode ter liberdade,estao falando de norte-americanos
brancos. Chineses e dos negros estao, na mente do americano,
abaixo da condição de humanidade.Joaquim Nabuco dizia que,
quando um americano olha para seus primeiros vizinhos na América Latina - o
mexicano ou cubano -,para não falar dos outros latino-americanos,ele faz com
um desprezo nunca visto de um ente humano para outro em nenhuma outra situação.
Aos olhos de Joaquim Nabuco,essa atitude desqualifica o valor espetacular da
individualidade que a grande democracia americana preconizava e
preconiza.Hoje,nos Estados Unidos,pensa-se em multiculturalismo,mas é um
prosseguimento de uma linha puritana que não se sabe onde pode dar.Quando a
gente olha para os Estados Unidos,no entando,sente uma atração por coisas como
" ar puro" de que Joaquim Nabuco falou".
VOCÊ AINDA ACREDITA INCONDICIONALMENTE NA IDÉIA DE QUE O BRASIL VAI SER -OU É- UM PAÍS ORIGINAL ?
Caetano Veloso : "Acredito- mas não incondicionalmente.Se os
países são originais,o Brasil é muito original ! O que aconteceu na Argentina
dá a ela características que fazem do país algo diferente do
Chile.Eu,sinceramente,quando estava no Chile,senti uma saudade horrível da
Argentina.Parecia que a Argentina era a Bahia ! O Chile era tão formal, trazia
uma mistura tão forte de europeísmo com neo-yuppismo americano que eu ficava
com saudade da Argentina e do Uruguai,sem falar no Brasil.
O fato de um país desse tamanho falar português e ter um autor
como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20
faz do Brasil um grande segredo que nós guardamos e queremos revelar.
É uma experiência única! Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e
sermos um país de dimensões continentais na América do Sul significam um
acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma graça.É tão grande o
acúmulo de desvantagens,num país ao mesmo tempo tão interessante,que a gente é
forçado a ler isso como uma benção.
Isso não é uma questão apenas de eu querer me salvar já que eu
nasci no Brasil e sou mulato do interior da Bahia,filho de gente do povo.
Minhas duas avós nunca se casaram.Cada uma teve filhos com mais de um homem.
Ou seja : é gente do povo brasileiro mesmo! Meu pai era mulato.Eu já estou
salvo !
Qualquer mente inteligente concluirá que o país tem um acúmulo
considerável de peculiaridades - desvantajosas em princípio, mas não malditas
em si mesmas - que nos leva a desconfiar,com toda razão,de que tudo significa
uma benção"..
ALÉM DA REFERÊNCIA DIRETA A JOAQUIM NABUCO,VOCÊ FAZ PELO MENOS DUAS HOMENAGENS NO DISCO, UMA A ANTONIONI, PARA QUEM VOCÊ COMPÔS UMA MÚSICA E OUTRA A JORGE BEM DE QUEM VOCÊ REGRAVOU ZUMBI. É POSSÍVEL COMPARAR O
SIGNIFICADO DE UM E DE OUTRO SOBRE O QUE VOCÊ FAZ?
Caetano Veloso : "Além do Joaquim Nabuco,tenho no disco três
personagens explicitamente homenageados : Raul Seixas, Michelangelo Antonioni e
Jorge Ben. Raul Seixas é homenageado numa canção que se chama "Rock in Raul".
Acabei de ouvir um disco de Tom Zé que tem uma música sobre Raul Seixas.
É como se fosse um cordel que narra a chegada de Lampião e Raul Seixas no
FMI.Os dois estão enfrentando o FMI e Washington.Já no meu disco,Raul aparece
como um sujeito que superexibia a "vontade fela da puta de ser americano".Era o
como Raul Seixas falava - um modo baiano antigo de falar;acho que em
Pernambuco tambem.Pode parecer,a ouvidos mais tolos,que a minha canção
apresenta uma desaprovação seja do Raul seja da vontade de imitar os
americanos. Em primeiro lugar,não desaprovo Raul,um dos meus artistas
favoritos. O primeiro disco de Raul Seixas é um dos melhores já feitos no
Brasil - uma obra-prima. Não havia quase nada feito por outros artistas
brasileiros - pode pensar nos maiores nomes - de que eu gostasse mais.
Havia muito pouca coisa que eu chegasse a gostar tanto quanto eu gostava de
"Ouro de Tolo".
Nunca vivi,como ele e muita gente viveu e vive,a vontade imediata
de ser americano.Não foi assim comigo e com muitas outras pessoas da minha
geração,como Chico Buarque,Paulinho da Viola, Glauber Rocha, Cacá Diegues.
Mas aquele sentimento - mundial diante do que os Estados Unidos se tornaram -
se manifestou ainda mais fortemente nos paises da América. Era a vontade de
chegar à situação do americano.
É como se a vida que podíamos levar não fosse a verdadeira vida.
E' como se,atraves dos filmes,canções e reportagens nas revistas,a gente
visse que ali e' que se vivia a verdadeira vida.Assim como tantos outros,Raul
não queria viver o que não fosse a verdadeira vida. Rita Lee contou numa
entrevista que Raul Seixas disse a ela : "Sou americano.Apenas nasci no país
errado".Todo o negócio do rock vem dessa vontade.
Mas não é só o rock : a Bossa Nova tem muito disso.João Gilberto é
que deu um nó,uma virada.Mas Johnny Alf,Dick Farney,os proprios nomes que eles
botaram em si mesmos,as musicas que eles fizeram....Aloísio de Oliveira - um
letrista espetacular,uma pessoa maravilhosa,um ghomerm que foi tudo para Carmen
Miranda,o namorado,o companheiro,o sujeito que amparou Carmen nos Estados
Unidos,autor de letras lindas com Tom Jobim - tinha aquela vontade louca de ser
americano.Mas,em primeiro lugar,é difícil querer exigir que essa vontade não
apareça.É alguma coisa vivida desde a infância.Também há a admiração do
desenvolvimento harmônico e da sofisticação da música popular americana em
comparação com as outras.Quem tem bom ouvido musical e ouve uma música
harmonicamente mais rica e ritmicamente mais inventiva se sente atraído por
ela,consegue entendê-la, quer reproduzí-la, quer participar daquele mundo.É uma
vontade legítima! O sujeito vê naqueles grupos de rock a sensação de que havia
uma pujança de energia que tinha de ser extravasada em música barulhenta e
roupas espalhafatosas.Então,o sujeito tem,desde criança,uma vontade genuína
de fazer aquilo.Depois de adulto,o que ele faz com aquela vontade genuína é uma
arte que ao mesmo tempo a exiba e e comente com alguma ironia. Não com a ironia
dos tropicalistas - que não vieram daí.Nós não viemos da vontade de
imitar.Eu,sobretudo,não - nem tão pouco Gil,Gal,Bethânia,Tom Zé.
Toda a linhagem do rock vem daí.A música de Raul Seixas trata
disso.Numa frase rápida,a letra diz "e hoje olha os mano..." . É uma menção aos
rappers brasileiros - que também demonstram uma grande vontade de se
identificarem com os americanos.Os nomes que eles escolhem para si são nomes em
ingles,parecidos com os dos negros americanos.É imensamente saudável,porque
apresenta uma vontade de discutir e problematizar o modo como se dispõe o
panorama racial no Brasil.Preferem se chamar Ice Blue,Mano Brown,Carlinhos
Brown.Ganham o nome de James Brown.Isso é tudo muito complexo para mim.É o
estÍmulo da minha vida.
Mas,quando vejo uma vontade muito destrutiva de simplesmente
imitar os americanos - e empobrecer a vida brasileira -,eu digo assim : " Essa
gente merece um Ariano Suassuna". Adoro quando Suassuna mantém aquela
ranzinzinice.Não penso como ele.Penso de uma maneira que ele já disse repetidas
vezes que não aceita.Eu entendo que as pessoas,se traírem essa vontade
genuína,estarão sendo menos brasileiras.Porque é muito profundo,num verdadeiro
brasileiro,sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os
norte-americanos ! Não é a única coisa que pode acontecer com os
brasileiros.Mas é um muito frequente,muito compreensível e muito profundo na
formação de uma personalidade brasileira.
Os rappers trazem uma conotação de crítica ao panorama racial
brasileiro.Dizem coisas que a gente não acha em outras áreas da produção.O
rap,para mim,é mais som do que conversa.Eu entendo mais uma letra de uma música
cantada do que um rap.Mas ouvi tanto o disco dos Racionais Mcs que já me
acostumei.Aquilo é de uma beleza enorme.Falam de versos "violentamente
pacíficos" .A gente vê ali uma pujança e uma liberdade de criação artística.Se
eles não tivessem a vontade louca de imitar os americanos,a gente não estaria
hoje contando com eles.Assim é o caso de Raul Seixas.Por esse motivo é que falo
na letra "e hoje olha os mano".Tudo e' exemplo de dignificação dessa atitude.
Quanto às outras personalidades que estão homenageadas no
disco: Jorge Ben é um caso espetacular de saúde cultural,é rock com samba,um
brasileiro preto do Salgueiro que terminou indo viver em São Paulo um período
crucial da vida.Ficou quase tão ligado a São Paulo quanto Chico Buarque ficou
ao Rio de Janeiro.Joge Ben se ligou ao iê-iê-iê em São Paulo porque não podia
aparecer no Fino Bossa : misturava rock com samba.O disco dos Racionais- por
sinal - abre com uma música de Jorge Ben,"Jorge da Capadócia". É preciso ver
que Jorge Ben,como João Gilberto de uma maneira totalmente diferente,fica num
lugar onde essas coisas acontecem.
Jorge Ben tem muito mais vontade de imitar o americano que João
Gilberto.Mas Jorge Ben criou uma solução única,em que a brasilidade entra não
apenas com um percentual importante,mas também como uma função na estruturação da personalidade artística.É diferente de Tim Maia - um artista
interessantíssimo.Por essa razão,Jorge Ben é mestre dos pagodeiros,rappers,
tropicalistas e roqueiros.A gente encontra Jorge Ben nos neo-bossanovistas,nos
discos do Milton Nascimento,nos pagodes,nos Racionais,nos meus discos.Desde os
anos setenta,sempre gravo músicas de Jorge Ben.Os Paralamas do Sucesso
gravam,todo mundo grava.Porque ele é uma solução espetacular.Dá uma sensação de
saúde cultural sem os amparos do status de uma educação de alta classe
média.Não é assim.Jorge Ben não é letrado : é um grande poeta,um grande
solucionador cultural,um sujeito imenso.
Eu me sinto presente ali dentro do disco dos Racionais que
começa com uma música de Jorge Ben que também gravei.Há uma coisa que precisa
ser dita,porque tem a ver com o falei sobre Raul Seixas e Jorge Ben : não é
verdade de maneira nenhuma que grupos de rap,como os Racionais,sejam alguma
coisa destacada da "MPB",algo que se opõe a ela.Tenho horror a esse negócio de
"MPB"- parece uma doença que deu na música popular brasileira.Eu acho errado.
Nunca me identifiquei com essa idéia.O Tropicalismo veio para dizer que não tem
nada a ver com isso.Eu mantenho até hoje essa atitude.Ouvem-se,no disco dos
Racionais Mcs,ecos da minha gravação da música de Jorge Ben - confirmados pelos
componentes dos Racionais,pessoalmente,em conversa comigo.É algo importante,
porque os vincula explicitamente - e o que eles fazem - à tradição da música
popular brasileira.O vínculo já existiria,necessariamente.Mas há um vínculo de
eleição por parte dos artistas.
Num momento crucial,numa das letras mais lindas do
disco,Mano Brown diz assim: "Eu sou apenas um rapaz latino-americano".É a frase
do Belchior que,ali citada,marca a continuidade de história da Música Popular
Brasileira,o diálogo interno da MPB,o que não quer dizer que não haja
diferenças enormes.Raul Seixas sempre foi meu amigo.Vi o último show que ele
fez,aqui no Rio,com Marcelo Nova.Raul já estava quase sem poder falar,sem poder
cantar.Fui homenageá-lo,conversar com ele,porque era meu amigo desde que
voltei de Londres.Nunca tivemos briga,rusga,discordância,nada - nem pessoal nem
artística.Raul Seixas queria ser feito um roqueiro que falava inglês,queria
estudar numa high school,usava bota como se fosse do oeste,vivia vestido de
Elvis Presley. Eu não : desde menino,nunca tive vontade disso.Meu negócio é
outro : eu gostava de Sílvio Caldas.Mas entendi essas pessoas.Vi o que
significava o gosto pelo rock,vejo nos manos hoje.
Quanto a Antonioni : tenho com o cinema italiano uma dívida
imensa -que venho pagando pouco a pouco.Eu gostava dos musicais americanos,mas
tinha uma grande paixão pelos filmes neo-realistas italianos e pelos
desdobramentos do neo-realismo.Fiz uma música sobre Julieta Masina,o que me
levou a ser convidado para fazer um espetáculo em homenagem a ela e a Federico
Felini - que,gravado,terminou saindo em disco.
Depois de ter visto todos os filmes de Antonioni,tive um
contato com ele.A admiração às vezes assombra.Tive um contato pessoal com
Antonioni,graças a meus dois amigos e cineastas brasileiros Júlio Bressane e
Cacá Diegues.Um não se dá com o outro,mas ambos adoram Antonioni.Os dois
convidaram-no para jantar.Antonioni aceitou os dois convites.Todos dois me
convidaram também.Antonioni,então,riu muito,porque eu estava nos dois
grupos,totalmente diferentes.Antonioni não fala,depois do derrame que
sofreu,mas se comunica através da mulher.Quando fui a Roma,tive a surpresa de
vê-lo na platéia do meu show "Fina Stampa".Nem vi que ele estava na
platéia,mas,quando acabou o show,eles vieram ao camarim para falar comigo.
Antonioni tinha ficado muito bem impressionado.
Quando fiz em Roma o show que saiu do disco Prenda Minha,
ele estala na platéia novamente.Voltamos a conversar.Curiosamente,ele não fala,
desde que sofreu o derrame,há oito anos,mas se comunica -muito- através da
mulher,dá opiniões através de gestos.É muito bem-humorado.Gostou muito do show.
Já devo tanto a essa gente,já devo tanto a esse homem.Tento ir pagando pouco a
pouco minha dívida com o cinema italiano - que,agora,acaba de crescer com o
filme de Bertolucci,"O Assédio".Nunca fui fã de Bertolucci,mas "O Assédio" é
uma obra-prima. Eu digo : meu Deus,continua crescendo o meu débito com os
cineastas italianos. Fiz,então,uma música que se chama "Michelangelo
Antonioni".Fiz a letra em italiano,uma língua que mal falo.Organizei os poucos
versos para ficar tudo direito e mandei para Antonioni,para que ele me dissesse
se tinha aprovação.Fiquei muito feliz ao receber uma resposta dizendo que ele e
a mulher tinham tinham aprovado com entusiasmo.Gostaram da canção".
AO EXPLICAR PORQUE ESTAVA LANÇANDO TÃO POUCOS DISCOS, CHICO BUARQUE DISSE TEXTUALMENTE,NUMA ENTREVISTA RECENTE,QUE A MÚSICA POPULAR TALVEZ
SEJA UMA ARTE DE JUVENTUDE.COM O PASAR DO TEMPO,OS COMPOSITORES JÁ NÃO TÊM AQUELA ESPONTANEIDADE DOS 20 ANOS. VOCÊ, QUE LANÇOU O ÚLTIMO DISCO AUTORAL HÁ 3
ANOS, TAMBÉM TEM TIDO ESSA SENSAÇÃO ?
Caetano Veloso : "Não tenho - e Tom Zé não me deixa ter.Tom
Zé fêz,aos sessenta e quatro anos,um disco que é o mais jovem que ele já fêz.
Fêz com uma tal vontade que parece que ele vai fazer trezentas músicas.Deve ser
porqueo disco foi feito no Brasil.Tom Zé voltou a gravar aqui.Desde os anos
setenta -ou oitenta,no máximo - ele não gravava no Brasil.O disco,então,ficou
vital.
Quando li esta declaração de Chico numa entrevista,eu me
identifiquei imediatamente com ela,concordei com ele : achei que a música
popular brasileira é uma arte de juventude.Você precisa de estar com disposição
para viajar,cantar,subir no palco,compor músicas,ter aquela animação ingênua de
quem acha que pode fazer mais canções.Escrever livros ou fazer filmes já se
assenta mais para uma pessoa mais velha.Por isso,fiz um filme nos anos oitenta
pensando em fazer outros.Pensei : já estou ficando velho.Então,faço só cinema -
um negócio que assenta mais do que música popular para alguém mais velho.Também
pensei em escrever livros,mas não gosto de ficção para mim.Eu tinha vontade de
escrever outro livro,porque gostei muito de escrever "Verdade Tropical".Pensei
em escrever um livro sobre raça no Brasil - não um livro de scholar,mas um
estudo,uma reflexão pessoal sobre minha experiência.Talvez um dia eu escreva".
Não escrevi,mas li Joaquim Nabuco".
O HISTORIADOR EVALDO CABRAL DE MELO RECLAMA DE QUE A OBSESSÃO EM PROCURAR UMA IDENTIDADE NACIONAL É TÍPICA DE PAÍSES INSEGUROS. VOCÊ ACHA QUE A MÚSICA, NO CASO DO BRASIL, PODE AJUDAR O PAÍS A ACHAR ESSA TAL
IDENTIDADE ? VOCÊ TEM ESSA PRETENSÃO ?
Caetano Veloso : "A obsessão em encontrar uma identidade
nacional evidentemente é sintoma de uma insegurança do país.O Brasil tem todas
as razões históricas para se sentir inseguro.
O que falo não pode nem se contrapor à fala de um
historiador - um sujeito que se dedica a estudar e a levantar
dados.Eu,compositor de música popular,tinha,pessoalmente,na época do
Tropicalismo,uma atitude de enfrentar e ao mesmo tempo "desconstruir",como se
diz hoje em dia,a questão da identidade nacional.Nós fizemos um grande
escândalo anti-nacionalista,demonstramos ostensivo desprezo pela idéia de busca
de raízes da autenticidade nacional.O primeiro apelido do Tropicalismo foi "som
universal".O nome "Tropicalismo" veio depois.
Gil gostava da expressão "som universal".Também gostava de
"pop".Eu não gostava tanto de que se chamasse Tropicalismo porque achava que
era um rótulo que ia prender a gente nos trópicos.Era o que não
queríamos.Gostávamos do desrespeito a um estilo nacional-popular que era
buscado então.A gente queria desrespeitar esse negócio.O filme "Terra em
Transe" tem um desespero em relação à identidade brasileira.Há uma grande
agressividade em relação a esse tema.Vivia-se,ali,o auge da obsessão com a
identidade nacional.Isso fêz a questão da busca de identidade entrar em crise
- ou em transe.Isso me interessou muito logo que vi o filme.
Talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade
do que o cinema e a literatura.Fizemos coisas que eram um desrespeito à própria
busca da identidade,embora tivessem a ambição de resolver o problema da
identidade nacional.Era como a gente quisesse passar por cima do tema,como se
a gente dissesse : eu considero que,com o desespero da busca de identidade,a
vontade louca de imitar os americanos,a falta de segurança,a incapacidade de
organizar uma sociedade respeitável,com tudo,acho que já tenho identidade
suficiente.Já estou falando diretamente para o mundo,como se dizia no Recife
numa famosa emissão radiofônica :"Pernambuco falando para o mundo".
O JORNALISMO EM DEBATE
O QUE INCOMODA VOCÊ NA POSTURA DA IMPRENSA DIANTE DE LANÇAMENTOS DE DISCOS E LIVROS? POR QUE É QUE VOCÊ RESOLVEU NESTE DISCO PRIMEIRO FALAR ATRAVÉS INTERNET PARA TODO MUNDO?
Caetano Veloso : "Faz algum tempo que sinto um pouco mal
quando vejo nos jornais os lançamentos de discos,livros,peças de teatro,
filmes.Vejo sair na primeira página dos segundos cadernos,no mesmo dia,
matérias parecidas,uma entrevista matada,uma crítica pequenininha,escrita sem
tempo,em consequência de uma combinação feita entre os jornais e as assessorias
de imprensa.Acho que o jornal perde e o produto perde.Porque o produto -um
disco,um livro,um filme - vira uma notícia que é disputada pelos jornais.
Parece que um vai furar o outro.Mas penso,na apreciação de um livro,não seria
cabível pensar que um jornal possa "furar" o outro.Ou alguém tem algo a dizer
de interessante sobre aquele livro -e o fará quando estiver preparado,para que
o jornal seja o melhor possível - ou então reduz-se tudo a uma notícia que será
disputada entre os jornais.O que acontece hoje é que se uma notícia sobre um
lançamento qualquer sair antes em um jornal,o outro não publica nada sobre o
assunto.! Se noticiar,noticia contra ou esconde ou boicota.É um problema que
desmerece a imprensa - e os produtos também,porque eles terminam mal
apreciados criticamente.Os críticos não têm tempo de ouvir !. Recebem um CD com
um press release,no mesmo dia todos entrevistam o artista e saem rapidamente
para as redações.
Eu já acho a cara da gente meio ridícula ali,a toda hora,
quando vai estrear um show ou quando vai ser lançado um disco.Quando se abre o
jornal nos segundos cadernos,lá está a gente,na primeira página.É o caso de
artistas como eu,Chico,Gil,Roberto,artistas de primeiro time que vão para a
primeira página.É sempre igual aquilo.Acho meio empobrecedor tanto para a
própria imprensa quanto para o produto que os jornais e revistas estão
apreciando.Então,tive uma vontade louca de procurar um meio de driblar isso.
Mas é muito difícil. Eu estou aqui fazendo de uma maneira que me parece que
pode mexer com esse quadro.Se a gente conseguir mexer e mudar...
As pessoas escrevem a crítica como e quando quiserem.Não faço
entrevista com eles agora.A que estou fazendo agora com você pode ser lida -ou
vista- na Internet por todo mundo,ao mesmo tempo, jornalistas e
não-jornalistas.Quem tiver acesso à Internet verá.Pode até conferir o que os
jornais publicarem.O que digo aqui pode também estimular entrevistas
particulares sobre determinados assuntos.Ou sobre um detalhe que não foi
falado.O jornalista pode dizer assim: "Quero "aporrinhar" Caetano sobre um
detalhe de que ele não falou". A gente faz,então,a entrevista.Se ninguém quiser
fazer,tudo bem : não se faz,contanto que se mude a prática.Eu realmente acho
que é saudável e necessário mudar.Os jornalistas também estão precisando ! Nós
estamos ! Não pode um jornal sair parecendo que é o release dos lançamentos.
Para as assessorias e para quem oferece o produto -
artistas,companhias de cinema, editoras,gravadoras - é como se o jornal fosse
um release,como se a página do jornal fosse um veículo de lançamento.
Quando se trata de uma notícia,acho compreensível.Há notícias que todo mundo
tem de dar mesmo.O sujeito se dá bem quando consegue um furo de reportagem com
a descoberta de uma tramóia.Mas,quando se trata de um produto cultural,não é
bem assim.Se sai um romance de Chico Buarque,qual é a vantagem de você sair na
frente ? A vantagem seria ler.O leitor pensará : "Não vou deixar de comprar o
Jornal do Brasil,porque as resenhas são muito bem feitas".Mas as resenhas não
podem ser muito bem feitas,porque são feitas às pressas para sair antes".
MAS VOCÊ ACHA QUE PODE QUEBRAR ESSE VÍCIO ATRAVÉS DA INTERNET ?
Caetano Veloso : "É uma maneira de tentar quebrar.Pelo menos a
entrevista sairá para todo mundo.Pode ser que haja um ritmo diferente.A gente
vê que,na própria imprensa,há esforço nesse sentido.Eu li,na Revista Bravo,um
artigo de Sérgio Augusto de Andrade que diz exatamente o que estou dizendo
aqui.Adorei ler porque ele diz com todas as letras exatamente o que eu vinha
observando.Faz uma análise com a qual concordo plenamente,não só em relação às
críticas,mas também quanto à feitura dos segundos cadernos.Um sujeito pode ir
fundo num artigo sobre um assunto que ninguém escolheu.A gente vê que há uma
certa reação.Mas esse negócio de sair,na primeira página de todos,o lançamento
de um filme da Sharon Stone é pobre,porque não se privilegia a apreciação.
Ou bem você tem uma apreciação interessante sobre um filme novo ou você não tem
mesmo muito o que dizer.É fraco,num jornal,dizer que fulana ia filmar com
beltrano mas deixou de filmar na última hora...".
ENSAISTAS CONSERVADORES,COMO O INGLÊS PAUL JOHNSON,QUE ESCREVEU UM LIVRO PARA DIZER QUE A ARTE MODERNA É UMA PORCARIA, DIZEM QUE A GRANDE PRAGA DESSE FINAL DE SÉCULO É O RELATIVISMO CULTURAL : TUDO É VÁLIDO,
NADA É RUIM. VOCÊ NÃO CORRE O RISCO DE ESTIMULAR ESSE RELATIVISMO CULTURAL AO CRITICAR OS CRÍTICOS DA PREDOMINÂNCIA DA CHAMADA MÚSICA COMERCIAL NO MERCADO?
Caetano Veloso : "Eu olho com desconfiança esses conservadores.Mas
não gosto desse negócio de vale tudo não.Por falar o que falo,compreendo que há
um risco de parecer que dou força ao que eles chamam de "relativismo cultural".
Mas,na crítica que estou fazendo aos jornalistas,não me sinto de maneira
nenhuma dando força ao relativismo cultural.Pelo contrário ! Porque acho que o
que vem acontecendo é um enfraquecimento da instância crítica.
Os jornalistas se comportam como artistas ultra-comerciais.Mas se
dão o direito de criticar artistas que são,sob o ponto de vista
profissional,muito mais responsáveis que eles ! Os jornalistas se dão o direito
de descartar a existência desses artistas como se eles,os artistas,fossem
comerciais.O que se vê,aí,é um relativismo inaceitável,uma confusão de valores
que não posso aceitar ! Sou muito mais exigente !
O sujeito que critica não sabe redigir bem.Mas Daniela Mercury
canta afinado, ensaia bem os números;Ivete Sangalo arrebenta cantando; Sandy é
uma cantora perfeita,sob o ponto de vista técnico. Eu peço,pelo menos,que o
sujeito que escreve na Folha ou o outro que escreve no Globo redijam a frase
corretamente.É o mínimo ! Como Sandy é afinada, que ele saiba pelo menos
escrever.Mas não ! Ele é uma estrela da agressão e da opinião moderna.Só gosta
de grupos de língua inglesa.Para ele,nada do que é brasileiro pode prestar
jamais! Isso já é um princípio simplório demais.Fazem personagens assim mas não
apresentam sequer um produto comparável ao que Sandy e Júnior
apresentam.Chitãozinho e Xororó cantam afinado, ensaiam bem os shows. Os
artigos são mal escritos ! Você vai ler : está errado o Português ! A idéia é
primária,o Português está errado e ele vai falar mal da Sandy? Vai falar mal de
Ivete Sangalo? Não dá ! É muito abaixo da Ivete Sangalo,como quem apresenta um
produto que vou consumir.Sou,então,muito mais exigente. Não há relativismo
possível aí ! O que estou dizendo é que essas pessoas são superiores àquelas
outras, naquilo que fazem ! De fato,são ! Posso mostrar a você que,numa
gravação da Sandy, a afinação é 100% ! Eu levo você ao show da Sandy.Digo assim
: você não vai ver aqui um buraco,porque ela entra no tempo certo,ela tem
intensidade de voz certa em relação aos instrumentos,as harmonias estão certas,
A afinação é em nível de Elis Regina ! Mas posso pegar o texto do crítico
Pedro Alexandre Sanches e dizer : venha cá, o que é que este parágrafo quer
dizer? É tudo errado,mal escrito.Posso pegar o texto de Mario Marques : isso
aqui está mal escrito ! Então,não existe nada de relativista nisso.Nada ! Ao
contrário : é possível mostrar claramente que o que estou dizendo é pertinente,
porque há valores universais que podem ser reconhecidos ali.Há redações bem
realizadas e há cantos afinados.Há cantos desafinados,você pode até medir a
afinação em aparelhos.Não há nada de relativismo.Há,sim,valores absolutos,
universais.Uma nota afinada é uma nota afinada ! Também há uma modernidade a
respeito da utilização da nota afinada,um interesse pela desafinação,pela
microfonização,pela negação da tonalidade.Mas são outros quinhentos.Isso é o
momento meu menos relativista : eu estou me atendo a valores reconhecíveis e
indiscutíveis".
VOCÊ DIRIA QUE A COMPETIÇÃO EXACERBADA ENTRE OS JORNAIS VEM PREJUDICANDO A COBERTURA CULTURAL ?
Caetano Veloso : "Eu acho que prejudica a cobertura cultural,
empobrece a prática do jornalismo e compromete a própria qualidade dos cadernos
ditos culturais.Não que não haja coisas boas e interessantes ! Mas existe uma
coisa que acho mais grave,porque é um sintoma de um grande comercialismo dos
jornais e de uma vulgarização do aspecto comercial do jornal : é a
transformação de jornalistas - que assinam o nome - em personagens que procuram
caricaturar-se para ver se se tornam figuras.Nesta área do jornalismo
cultural,dá-se muita ênfase a uma suposta agressividade dos apreciadores.É uma
agressividade forçada,para que o jornal fique polêmico ou seja a estrela do
acontecimento.Então,quando sai um disco,vê-se na maioria das redações uma
disputa para ver quem escreve de maneira mais chocante sobre os produtos e os
produtores de cultura.Isso é um negócio chato.
Sinceramente,não posso aceitar que as mesmas pessoas que agem por
uma motivação comercial reclamem contra o comercialismo da axé music ou da
música sertaneja ou do pagode ! Tenho vontade de rir quando vejo esse tipo de
jornal e esse tipo de jornalismo querendo torcer o nariz para a axé music ou
para duplas sertanejas. Digo : comparada com o que vejo nesses veículos,
Daniela Mercury é São Francisco de Assis ! É incomparável ! Há nos blocos de
axé a responsabilidade de apresentar um produto respeitável. Também há,nas
duplas caipiras e nos grupos de pagode,a responsabilidade de apresentar um
produto de alta qualidade,dentro daquilo a que se propõem - com exigência,com
trabalho,com profissionalismo,com respeito por quem vai consumir.
Não vejo nada disso na produção desses jornalistas que torcem o nariz para
música axé, pagode e sertaneja.
Eu li numa revista um artigo que citava números para dizer que
considerava auspiciosa a queda na vendagem da axé music e do pagode.A verdade é
que o mercado fonográfico brasileiro estava caindo em geral,mas essa revista se
dava ao direito de festejar dizendo "é bom,porque nós vamos nos livrar de ouvir
esse lixo".Mas a revista era um lixo - e essa música é que é bem feita,por
gente honesta. Para mim, não dá ! Dizem : "É corporativismo de Caetano
Veloso;não se pode falar nada contra a música popular...".Mas não é assim não.
Não sou corporativista ! Sou bom colega,tenho o maior orgulho de chegar a todo
lugar do mundo e me perguntarem com inveja : "Como é que isso acontece no
Brasil ? Como é que você se dá com Djavan, se dá com Lenine,conhece Ivete
Sangalo,freqüenta Daniela Mercury,fala com Sandy e Júnior,é amigo de Milton
Nascimento e janta com o Edu Lobo ? Não entendo como é que vocês se dão !
Porque não é o que acontece aqui na Inglaterra,aqui na França". Não pode,é
impensável essas pessoas aqui conviverem,se encontrarem,se admitirem umas às
outras.Tenho orgulho que seja assim,acho bonito,me sinto bem.É da minha
natureza. Não sou corporativista não, quando gente de música erra,eu digo e
tenho dito com a maior clareza,às vezes com grande agressividade !
Já houve coisas que desaprovei abertamente.Não fico procurando,não
sou palmatória do mundo,não vou ficar aqui dizendo "fulano é bom, fulano não
é",mas acontece que há limites.Eu reajo mesmo a pessoas que agem mal.Eu me
lembro da briga com Fagner nos anos setenta,oitenta.Durante uma entrevista,
respondi violentamente porque Fagner tinha sido desonesto e injusto comigo
publicamente.Tinha mentido a meu respeito.Respondi violentamente.Aldir Blanc -
que estava participando da entrevista - desligou o gravador e me mandou apagar,
Eu disse : "Não ! Faço questão de gravar para que saia o que quero dizer".
Agora mesmo tive uma discordância com Marcelo D2 - do Planet Hemp-
por causa de uma atitude pública que ele teve.Adorei a apresentação do Planet
Hemp na Festa da MTV,achei que foi o melhor número da noite.
Marcelo D2 disse no jornal que não gosta da minha música.Disse-me também
pessoalmente que não gosta da minha música,o que acho bom, porque se o fato de
ele não gostar contribui para ele ser como ele é,então ótimo.É bom que as
pessoas não gostem de algumas coisas para que possam ser mais intensamente o
que elas são. Mas ele agiu mal comigo de uma maneira imperdoável que não tem
nada a ver com o fato de ele gostar da minha música ou não.Marcelo D2 marcou
uma gravação para a trilha do filme "Orfeu" mas não foi.Ficamos esperando; ele
adiou para a segunda noite,mas não foi nem deu explicação.Nós procuramos o
procuramos,mas não o encontramos.Um mês depois,ele dá uma entrevista à Folha de
São Paulo para dizer que não foi porque soube que quem estava produzindo era
Caetano Veloso.Quis botar banca para agradar a um pessoalzinho que lê a Folha
de São Paulo e pensa que é bacaninha dizer que não gosta de Caetano Veloso.
Pensei : quando eu o encontrar vou dizer a ele : "Você não é homem.Você não
foi viril.Isso não está certo".E disse a ele - não foi gritando nem dando
escândalo.Falei firme com ele. Não tenho,então,esse problema.
Quando aconteceu aqui a polêmica sobre o pagamento dos cachês aos
artistas no show do Reveillon,achei que Paulinho da Viola não agiu certo. Eu
disse a ele numa carta.Reitero aqui.Eu estou seguro de que ele não estava !.
Muita gente me disse "não, não diga !".Gil tentou até a última das últimas
horas não desacreditar daquilo que estava sendo apresentado por Paulinho como
sendo a versão verdadeira.Mas eu já sabia que não era.Adoro Paulinho da
Viola.Para mim,ele é um dos deuses do Brasil,mas aquilo estava errado.Eu disse
com todas as letras,numa carta que escrevi para o Jornal do Brasil.Uma porção
de gente me esculhambou,em milhões de cartas.Vejo gente que hoje fala comigo na
rua mas escreveu me xingando.Comigo,então,não existe esse negócio de
corporativismo banana nenhuma !
Uma das melhores coisas que vi ultimamente foi o show da Nação Zumbi.
Fui ver sozinho em Santa Teresa.Achei maravilhoso;achei a banda a melhor coisa
do mundo.Mas,outro dia,Lírio,diretor de cinema,estava me dizendo que eles
tinham ficado zangados porque não gostam do meu som.Eu disse : se é para fazer
aquilo,então acho bom que não gostem do meu som. Porque,para mim,aquilo que a
Nação Zumbi faz é tudo o que há de bom.Talvez seja a melhor banda do Brasil
atualmente ! Desde o tempo de Chico Science,acho aquilo espetacular.Lírio
estava me dizendo que eles tinham um grilo porque eu tinha dito que aquilo veio
do Olodum. Era como se o ritmo do Nação Zumbi tivesse sido tirado do Olodum.
A idéia de um grupo de percussão de rua se modernizar com
influências internacionais e manter ligações com a tradição da música de
carnaval de rua é uma coisa que se tornou notória através do Olodum, não nego.
O Olodum não tem uma banda própria que se compare nem de longe ou que tenha
nível para lamber os pés da banda do Nação Zumbi.Mas o Olodum é o Olodum !
Historicamente,influenciou esse tipo de atitude no Brasil inteiro.Não posso ver
o Nação Zumbi sem pensar que,sem o Olodum,o estímulo para tomar aquela atitude
nunca teria aparecido.O Olodum precedeu e estimulou aquilo.É o que eu disse.
E é verdade.
Ninguém precisa gostar do meu som, mas não tem o direito de dizer que
eu disse uma coisa que eu não disse".
VOCÊ DIZ QUE A IMPRENSA RECLAMA DA QUALIDADE DA CHAMADA MÚSICA COMERCIAL,MAS A IMPRENSA DEVE SE LEMBRAR DE QUE TAMBÉM ELA SEGUE AS LEIS DO COMÉRCIO. VOCÊ QUER CONVOCAR A IMPRENSA A FAZER UMA COMPARAÇÃO ENTRE A
QUALIDADE DO PRODUTO OFERECIDO PELOS JORNALISTAS E A MÚSICA? É ESSE O DESAFIO QUE VOCÊ QUER FAZER?
Caetano Veloso : "Você falou exatamente o que eu podia ter falado em
poucas palavras.
Eu,pessoalmente,estou convencido de que a música comercial é de
melhor qualidade do que a imprensa comercial brasileira. Gostaria que os
jornalistas atentassem para isso".
VOCÊ JÁ RECLAMOU DE QUE AS CRÍTICAS QUE SE FAZEM À AXÉ MUSIC E AOS PAGODEIROS ESCONDEM, NA VERDADE, UM PRECONCEITO CONTRA A INCLUSÃO DE GENTE HUMILDE NO MERCADO CONSUMIDOR. O MOTIVO É ESSE ?
Caetano Veloso : "É o motivo principal escondido atrás de tudo.O
comentário que li celebrando o fato de o mercado ter caído foi publicado pela
revista Veja."Íamos deixar de ouvir esse lixo,axé,pagode,sertanejo..".Isso tudo
é um modo de dizer : "A inclusão no mercado dessa gentalha que passou a
consumir discos e a eleger esse ou aquele tipo de música é um negócio que o
Brasil nunca teve,mas é passageiro,vai acabar,Graças a Deus está passando e
vamos ficar nós aqui,com uma revista bacaninha,com uma gente de alto nível"...
Acontece que não é assim.Isso daí é pavor de que a superação da escravidão -que
Joaquim Nabuco preconizava - se realize".
VOCÊ DIZ QUE O BRASIL TEM UMA TENDÊNCIA PARA O APARTHEID TANTO SOCIAL TANTO CULTURAL. QUAIS SÃO AS MANIFESTAÇÕES CONCRETAS DESSE APARTHEID NA MÚSICA, NO TERRENO MUSICAL, DO GOSTO MUSICAL?
Caetano Veloso : "Fiquei assustado quando você disse que eu disse
que o Brasil tem uma tendência para o apartheid- tanto cultural quanto social.
O Brasil tem uma tendência para manter um grupo pequeno que termina funcionando
como uma elite,no sentido de ser líder intelectual das maiorias.Mas é apenas
uma elite dos que se salvaram da miséria.Isso é que é a elite,na verdade.
Quando você conhece um brasileiro de sua classe social,você fala dez minutos e
logo descobre que ela conhece quatro ou cinco pessoas com quem você tem algum
tipo de relacionamento ou é parente.É pequeno o grupo de pessoas que está fora
da grande massa miserável.Isso é que considero ser verdadeiramente um
apartheid.Não gosto de quem diz ou quem tenta dizer que a segregação racial no
Brasil é pior do que a que havia na África do Sul- onde existia um apartheid
oficial pior do que a segregação racial que o sul dos Estados Unidos conheceu.
Discordo.Não acho que seja pior. Penso mais como Joaquim Nabuco.Um pouco além
de Joaquim Nabuco quanto a este problema.
Não gosto da tendência de chamar uma área da criação de
música popular no Brasil de "MPB".É considerá-la como se fosse a parte elevada
de algo que,na maioria,é "vulgar e ruim". Isso é um erro total ! Eu me sinto
violentamente agredido por isso.
Quer dizer que eu sou MPB e Rauzito e os Racionais MCS não são ?
Ao mesmo tempo,eu,oficialmente,estaria junto com Chico Buarque, Chico
César,Gilberto Gil,Milton Nascimento.Mas aí a Daniela Mercury não é -ou agora
já quase é.Já o Chiclete com Banana não é.A turma que é "MPB" necessariamente
estaria num nível superior de produção musical.Não acho ! Não acho mesmo.As
duas coisas estão erradas. O que se pode chamar de MPB é só uma coisa : a
música popular que feita,no Brasil,pelos brasileiros".
VOCÊ UMA VEZ DISSE QUE OS ARTISTAS NÃO DEVEM E NÃO PODEM SEGUIR A MESMA HIERARQUIA QUE OS JORNALISTAS SEGUEM - E VICE-VERSA. QUAL É O MAIOR EQUÍVOCO DA IMPRENSA EM RELAÇÃO A VOCÊ?
Caetano Veloso : "Em primeiro lugar,para falar da imprensa em
termos gerais,o equívoco é a idéia de que há uma área mais respeitável que se
chama MPB,à qual eu pertenceria. Errado !.Mas há também brigas mais ou menos
alimentadas - que não deveriam ter razão de ser,mas chegam a níveis
baixíssimos,não por minha culpa.É o caso da revista Veja,por exemplo - uma
coisa chocante.Não falo com a revista Veja há 10 anos.Faz uns dois,três anos,
eu ia voltar a falar,ia voltar a aceitar.Eu estava começando a pensar a voltar
a falar com a revista,porque os responsáveis por um negócio imperdoável que
aconteceu há anos já tinham sido afastados. Eu digo : a revista começou em 68;
eu comecei em 67....A Veja tinha uma vontade louca de imitar a revista
americana Time,no tamanho,na frase com dois pontos embaixo da fotos,enfim,tudo
bem.A Veja até publica reportagens políticas boas,é a melhor revista semanal do
Brasil,assim de brincadeira,a mais respeitada,mas comigo é muito ruim,é muito
errada !
Quando eu estava pensando "agora vou falar" fizeram uma
reportagem sobre minha ida a Vigário Geral com o pessoal do Afro Reggae.São
meus afilhados,colaboro com eles na medida em que posso,admiro enormemente o
que eles vêm fazendo.O disco eles vão lançar é uma beleza,o show é um
acontecimento,todo mundo deveria ver.Eu espero que em breve todo mundo veja em
toda parte do Brasil,porque é espetacular.Mas eles têm um número em que eles
entram todos encapuzados no palco.O que eles me pediram ? Como eu ia cantar
logo em seguida,eles me pediram que eu entrasse encapuzado com eles.Eu iria
ficar lá no meio do palco.Depois,quando eles todos levantassem o capuz,eu
levantaria - e já sairia cantando.Já se veria que era eu.Depois,eu ficaria
sozinho cantando sozinho.Assim fizemos.Mas a Revista Veja publicou uma
reportagem mentindo descaradamente e dizendo que eu botei uma máscara preta
para fazer marketing. Parecia que só eu que é que tinha ido de máscara.
A revista dizia que aquilo era uma coisa terrível porque quem usa aquelas
máscaras são os matadores.Era como se eu fosse para um gueto judeu com uma
suástica. Tudo é marketing de Caetano...A revista,aí,me trata com desrespeito.
Isso é um negócio brutal,sob o ponto de vista do jornalismo.
Por que é feito isso ? Há pouco tempo,na TV, um sujeito que faz
programa de entrevistas na MTV pergunta para um garoto,num programa feito para
adolescentes : "O que é que você acha que se deve fazer para o rock no Brasil
ficar legal ? A gente deve matar Caetano Veloso ?".
Matar ? !!! Perguntar a um adolescente se é uma boa idéia matar
Caetano Veloso? Isso é horrível,é absurdo. O mesmo apresentador deu uma
entrevista na Isto é dizendo que tinha sido repreendido pela direção da
emissora.Mas diz assim : "Ah,Marcelo D2 tem razão : disse à Folha de São Paulo
que não se pode falar nada contra Caetano Veloso".
Mas o que vejo,o tempo todo,na Folhateen(N:suplemento semanal da
Folha de São Paulo) é aquele pessoal só falando mal de mim.Igualmente,na
Ilustrada (caderno de cultura da Folha).A Veja é assim.Agora,para dizer que
Tom Zé é bacana,"o verdadeiro rebelde",a Veja esculhamba comigo,diz que eu
gravei a música "Sozinho",uma música banal,para botar na trilha sonora de uma
novela.Mas eles sabem que não é verdade ! Não foi o que aconteceu ! Por que
faz,então ? Se a revista vai elogiar Tom Zé,por que tem de publicar um artigo
um negócio contra mim,Gal,Gil e Betânia? Aquilo desmerece Tom Zé,porque parece
que o que animou a redação a fazer duas páginas coloridas com Tom Zé não foi a
excelência real do trabalho que ele faz - e de fato é excelente-,mas a
oportunidade de meter o pau em mim e em Gil ! Não evitam mentir descaradamente.
Mas ver essa gente falar mal de Alexandre Pires - que canta bem,é
afinado,ensaia o show com responsabilidade e apresenta o produto perfeitamente
- não dá,não dá !".
Aliás, sobre Tom Zé eles nunca disseram nada nos anos 70.Quando os
discos de Tom Zé saíam,a imprensa nada fez por eles.Agora querem que seja minha
ou de Gil a culpa pelo fato de Tom Zé não ter sido noticiado pela imprensa na
época em que lançou discos maravilhosos,como,sobretudo,o "Estudando o Samba" -
uma obra-prima. Eu,pessoalmente,já tive raiva da revista Veja por outras
coisas.Quando Elis Regina morreu,achei abominável o tratamento que a Veja
deu.Disse isso de público.O modo como eles trataram foi um desrespeito
horrível,uma atitude sensacionalista,um comercialismo baixo.Com o caso do
cacique Paiakan também : sensacionalismo baixo ! Comparado com aquilo,Ivete
Sangalo é uma cantora de música religiosa estritamente pura,não fez nada por
dinheiro.Eu não entendo essa moral !
Parei de falar com a Veja foi quando eles fizeram uma reportagem em
que eles punham Tom Jobim,eu,Millor Fernandes e Chico Anísio,sob o título "O
Clube dos Ressentidos".A revista trouxe uma fotografia de uma ala da Comissão
de Frente da Mangueira,trabalhada por computador.Fêz-se uma fotomontagem com os
rostos dos personagens da matéria.A reportagem,horrenda de ponta a ponta,foi
escrita por Alfredo Ribeiro -que também se assina Tutty Vasquez.Era de uma
desonestidade brutal.Era a época de Collor,o que tornava mais perigoso o
negócio,porque dava uma sensação horrível.O artigo dizia que aquele era um
grupo de pessoas que se enchiam de dinheiro com o Brasil mas só falavam mal do
país.Incluíram-me num elenco criado artificialmente.Não há identidade nenhuma
entre Tom Jobim e Chico Anísio,Millor Fernandes e eu.Nem me dou com Millor
Fernandes -que,aliás,é uma das figuras da imprensa que eu admirava quando
criança. Depois de criarem o elenco artificialmente,atribuíram a todos uma
suposta vontade de depreciar o Brasil.É uma coisa disparatada em relação a mim.
Pode ser até que outra pessoa diga que quero salvar o Brasil a todo custo,ou
descobrir algum canto,alguma coisa fascinante ou maravilhosa,uma identidade
especial do país.Mas é uma coisa horrenda dizer que eu tendo a desmerecer o
país ou que eu demonstro uma grande ingratidão porque eu ganharia muito
dinheiro com o Brasil ! São termos inaceitáveis. Eu disse : assim não é
possível ! Não dá para entender como uma revista que se diz a mais respeitada
-ou que supostamente se dirige ao leitor mais sério- pode vir com um negócio
desses. Não dá para entender ! Eu disse : não falo mais com essa gente ! Chega
! Fiquei muitos anos sem falar.Quem dirigia a revista era esse Mário Sérgio
Conti - um sujeito que hoje escreve bem na Folha de S.Paulo.É um oásis na
Ilustrada,em meio a tanta gente que escreve mal.Deve escrever bem porque é
mais velho,já aprendeu a escrever um pouquinho mais.O fato é que ele - que
dirigia a revista - e Alfredo Ribeiro - que fêz o artigo- terminaram saindo da
"Veja" tempos depois.Eu disse : "Acho que vou falar com a Veja".Mas saiu a
matéria sobre Vigário Geral.Vi,então,que o problema não é Conti nem Ribeiro nem
Vasquez. O problema é que aquele ali tem tem que ser -infelizmente ! - inimigo
meu.Faz parte de um aspecto do apartheid brasileiro o fato de eu ter de estar
em oposição à revista Veja.Eu deveria poder apoiá-la,naturalmente,porque a Veja
é um amadurecimento do jornalismo brasileiro,representa alguma coisa,não sou
basicamente contra,mas vejo que há,ali,alguma coisa terrível.Ou eu é que sou
terrível de alguma maneira para algo ali que termina não dando certo.Não sei
porque saiu a matéria sobre Vigário Geral.Era mentira o que foi dito ali.Quem
fez sabia que era mentira,mas distorceu propositadamente,porque tinha vontade
de me agredir"..
VOCÊ CITOU O CADERNO FOLHA TEEN -DA FOLHA DE SÃO PAULO- COMO UM DOS LUGARES ONDE SE PUBLICAM CRÍTICAS A VOCÊ COM CERTA FREQÜÊNCIA. UM DOS COLUNISTAS,ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR,DIZ QUE AQUI NO BRASIL QUALQUER COMPOSITOR QUE
QUEIRA FAZER SUCESSO TEM DE ESTENDER O TAPETE VERMELHO PARA CAETANO VELOSO.É ESSE O TIPO DE CRÍTICA QUE IRRITA VOCÊ ?
Caetano Veloso : "Não propriamente.Porque,a Folha Teen acho
que é um pouco brincadeira.Mas é uma brincadeira que tem um problema : o do
comercialismo.Aquilo ali é feito para criar um tipo de público,um tipo de
platéia de que eles são os palhaços,os bem desenhados.É o negócio de Paulo
Francis.O sujeito escreve dizendo tudo o que pensa,não respeita fulano,eles
falam tudo,"sei de tudo","estou por dentro","sei onde as cobras dormem","não
tenho medo de dizer isto e aquilo".É aquele personagem da imprensa.Mas Paulo
Francis era um grande jornalista,um homem muito culto,muito inteligente,
escrevia rápido.Fez uma grande carreira de vedete.O grande confronto que houve
entre mim e Paulo Francis -e ele me agrediu violentamente - aconteceu porque,
mais cedo ou mais tarde,teria de haver um choque : sou uma vedete,um cantor
popular famoso,um personagem público do entretenimento com uma capacidade de
articular idéias e uma vocação crítica muito desenvolvida que apareceu no meu
trabalho e nas minhas entrevistas.Já ele era um crítico e um jornalista muito
articulado. Era um mau romancista,o que deve ter lhe causado amargura,porque
ele queria ser um homem de alta cultura.
Os meninos da Folha Teen -os mais novos- pegaram justamente a
última fase do Paulo Francis,a mais reacionária,ligada a tudo o que fosse de
direita.Todos os aspectos da direita ele enaltecia.Tornou-se até meio acrítico
quanto a isso.São meninos que lêem gibi.Acham que podem esculhambar comigo.Um
jornalista dá uma entrevista ao jornal Caros Amigos e esculhamba comigo.
Vem Roberto Freire - não o político pernambucano,mas o psicoterapeuta paulista-
e reitera as palavras do jornalista meio jovem da Folha que me esculhambou.
Roberto Freire,um homem velho,não tem vergonha na cara ? Que negócio chato !
Mas,na Folha Teen,fazem esse tipo,como o menino que deu a entrevista para
Caros Amigos.É um personagem que diz assim: "temos que destruir a máfia do
dendê !".Esculhambam comigo.Tenho cinquenta e oito anos.Já fiz coisa pra
caramba.Adoro o disco novo - que acabei de fazer.Tenho minhas limitações,não
sou um grande músico,não me acho o bacana.Não mesmo ! A maioria das pessoas a
que me referi aqui considero superiores a mim,na minha profissão.Alguns muito
superiores.João Gilberto muitíssimo ! Jorge Ben, muito; Chico Buarque muito,sob
certos aspectos; Lenine,muito,sob outros;Paulinho da Viola,muito sob outros
aspectos, musicalmente. São pessoas superiores a mim,mas tenho uma contribuição
a dar que inclui uma visão crítica,uma recolocação do modo de fazer a música
popular,pensar aquilo e apresentar algo do pensamento no meu trabalho,fazer
algumas canções que sejam mais ou menos relevantes,que fiquem aí.Eu me acho
assim.Não sou modesto : eu estou sendo objetivo ao máximo ! É assim que me
vejo.Não me acho grandes coisas. Mas esse pessoal me superestima.É preciso que
se reitere que sou o máximo para que seja pesado eles dizerem que sou uma
porcaria ! O que eles querem é que se intensifique o retrato que eles fazem de
si mesmos,como grandes figuras,como Paulo Francisinhos.
Não leio a Folha Teen,uma vez ou outra é que dou uma olhada.Eu sei
que não é todo mundo que diz,ali,que sou uma porcaria.É,sobretudo,esse cara que
era daqui de TV,já trabalhou no Fantástico.Mas não ligo muito.Isso é um
problema da imprensa,é comercialismo,é criação de personagem para vender aquele
veículo.Não tem nenhuma contribuição organizada a oferecer para o leitor".
SE O LIVRO "VERDADE TROPICAL" FOI ESCRITO CONTRA PAULO FRANCIS, QUE INFELIZMENTE MORREU ANTES DE O LIVRO SER CONCLUÍDO,O DISCO "NOITES
DO NORTE" É CONTRA OU A FAVOR DE QUEM?
Caetano Veloso : "É a favor do Joaquim Nabuco".
(2000)
Posted by geneton at junho 9, 2007 05:51 PM