ANOTACOES DE UM NAVEGANTE. ESCALA: UMA APARICAO DO ''MAIOR ESCRITOR BRITÂNICO''
LONDRES - Eis o homem que o The Guardian acaba de batizar como ''o maior escritor britânico vivo'': Martin Amis toma um líquido amarelado. Pode ser vinho. Fuma. A voz é algo grave. Faz pausas estratégicas nas frases, para arrebatar a platéia. Tira e bota os óculos repetidamente. A cabeleira ostenta uma cor suspeita. Pode ter sido beneficiada por uma leve tintura, quem sabe, para disfarçar os 57 anos.
( Amis é, obviamente, um escritor de primeira linha. Mas o título de ''maior escritor britânico vivo'' - que lhe foi concedido pelo jornal, há poucos dias, num texto de primeira página - provocou reaçoes: uma leitora exaltada escreveu uma carta para dizer que consideraria a possibilidade de se matar, se a imprensa insistisse em se referir ao escritor nestes termos.''Quem tem paixao por livros vai querer se exilar imediatamente no Uruguai. Por favor, salvem minha vida" - disse a autora do protesto. Uruguai, para ela, é sinônimo de fim de mundo)
Mr. Amis desembarcou no Royal National Hotel,na Bedford Way, perto do centro de Londres, para participar de uma Semana do Livro Judaico, como um dos convidados de honra.O que ele faz lá? Homenageia o amigo e ídolo Saul Below, um escritor que, nas palavras de Amis, ''emancipou'' os judeus na cultura popular americana. Depois, produz uma boa frase de efeito: ''Israel nao é um museu do Holocausto equipado com helicópteros''.
O ''maior escritor'' vai para um salao ao lado do auditório, para se submeter á tortura regulamentar de uma sessao de autógrafos. Troca frases simpáticas com fas que compram exemplares de seus livros, empilhados numa mesa.
(Amis produz textos em quantidades industriais. Transita, sem perder o brilho, entre a ficcao e a realidade. Já escreveu, como em ''Koba The Dread'', libelos para denunciar os horrores de Stalin - logo ele, filho de um escritor que durante décadas foi um simpatizante engajado da causa comunista. Em ''Time's Arrow'' descreve - de trás para frente - a vida de um médico criminoso de guerra nazista. Em "Visiting Mrs Nabokov'', produz ensaios para ridicularizar , por exemplo, as imposturas do show bunisess, como o circo armado em torno de entrevistas de estrelas como Madonna. Tanto barulho para nada: algum habitante deste Vale de Lágrimas já ouviu um pensamento original emitido por ela? Há um texto brilhante em que Amis mistura realidade com ficcao: reconstituiu os últimos momentos dos terroristas que sequestraram os avioes do 11 de Setembro. A revista Piauí publicou a traduçao no Brasil. Grande leitura)
Fico na fila. Dou a Amis um exemplar de "Time's Arrow''. Nosso personagem fica sabendo que o meu nome, esquisito, é Made in Brazil. ''Ah, brasileiro?'', pergunta, com a paciência profissional de quem ainda vai cumprir, esta noite, por 'n', vezes a obrigacao de ser cordial com estranhos.''Você sabia que passei uma temporada no Uruguai?''. Digo que sim, porque os jornais falaram da expedicao que Amis fez á América do Sul para acompanhar a mulher, a também escritora Isabel Fonseca, descendente de uruguaios.
Dou a Martin Amis, com dez anos de atraso, a notícia da morte de Paulo Francis. Meses antes de morrer, Francis o entrevistou, em 1996, em Londres. Fui testemunha : de volta ao escritório da TV Globo, Francis dizia, satisfeito, que tinha passado a vista nas estantes de Amis. Constatou que tinha lido a grande maioria daqueles livros. Deve existir - dizia ele - uma ''conspiracao internacional'' entre escritores e intelectuais, porque os livros que eles lêem sao os mesmos.
Amis franze a teste, dá a impressao de que tenta se lembrar da entrevista que deu a Francis. Quantas centenas de entrevistas nao terá dado nesta década? Ainda assim, exibe um ar de espanto quando sabe que Francis morreu poucos meses do encontro com ele.
Já sao dez e meia da noite. O próximo leitor se aproxima com outro livro nas maos.
Pego o autógrafo. Procuro a saída.
Lá na mesa, Amis comeca um novo diálogo - telegráfico - com outro fa.
Bota os óculos. Assina o exemplar. Oferece um sorriso profissional.
Próximo leitor, por favor.
Martin Amis vos espera, com uma caneta na mao, as sobrancelhas arqueadas e os ouvidos atentos- para entender como se soletra o nome de cada forasteiro que o aborda ali, na noite de autógrafos improvisada.
Faz parte do show. É assim que Martin Amis paga, sem reclamar, o pedágio que a fama cobra de escritores que se tornaram celebridades.
Posted by geneton at fevereiro 26, 2007 08:10 PM