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maio 12, 2006

UM BELO ARTIGO SOBRE "ÁRIDO MOVIE": O FILME "CULT" DA TEMPORADA "DESBRAVA O SERTÃO DESTE INÍCIO DO SÉCULO COM OS OLHOS LIVRES"

Árido Movie: Sertão e Lisergia

Amin Stepple Hiluey*

Crepúsculo em Salvador, final dos anos 70, o cineasta Glauber Rocha, com os sete buracos da cabeça a mil por hora, pergunta ao também cineasta Jomard Muniz de Britto: “os intelectuais da Fundação Joaquim Nabuco ainda estão no Cuba Libre?”

Rocha, em 2006, é a cidade imaginária de Árido Movie, filme de Lírio Ferreira. Na trilha sonora, Renato e Seus Blue Caps. Grupo remanescente “daquelas tardes de guitarras, sonhos e emoções”, da época das “três, quatro doses” de rum com coca-cola. Mas o aditivo energético agora é outro. Jonas é o rapaz do tempo, repórter meteorologista, desses que adivinham chuva e manhã de sol na televisão. Coisa rara no Brasil atual, o Deus Urano arranjou emprego de carteira assinada nos telejornais. Jonas (Hamlet eletrônico?) chega de São Paulo para enterrar o pai, assassinado em Rocha. Numa viagem paralela, três amigos de Jonas, urbanos e maconheiros do tipo recreativos-fundamentalistas, também saem do Recife em direção à Rocha, para encontrá-lo e participar da cerimônia de adeus.

Se Jonas, com sua moderna profissão, tem uma certa originalidade olímpica na concepção de seu personagem, o mesmo não se pode dizer do trio de maconheiros. Na genealogia cinematográfica, eles são “primos” dos “coiseiros” de Meteorango Kid, Herói Intergaláctico, de André Luiz, filme baiano inaugural do udigrudi nacional(1969). E, na teatral, “primos” dos doidões de Trate-me Leão, do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone (final dos 70). No Árido, os maconheiros também são engraçados. E escrotos, como todo drogado. São, como se definem, os “Bocas Secas”. Numa das seqüências, se deparam com uma produtiva roça de liamba. Provavelmente plantada (à revelia e omissão) em terras e com água do Governo Federal. É uma aula involuntária sobre as novas oportunidades de investimento no sertão. A dança à la Hair dos “Bocas Secas” na plantation ensina muito sobre o Brasil dos agronegócios.

Árido é uma road-expedição, sociológica e antropológica, ao Brasil profundo. Maconha, crime, vendeta familiar, banditismo rural. Prostituição, clientelismo político, misticismo secular. Escassez de água, disputa de terra, choque cultural, sermões desconexos. Ronco de motos, idiotia rural, rodovias duplicadas, paisagem esturricada. Índios aculturados, machismo estereotipado, matriarcado virago. E a oralidade surreal da última Flor do Lácio: o dialeto arcaico sertanejo redivivo, saldo colonial, em diapasão dissonante com o maconhês metropolitano, herança lingüística da contracultura. Está tudo lá nos grotões de Árido Movie.

Como, aliás, sempre esteve. Parafraseando Nelson Rodrigues, o sertão não se improvisa, é obra de séculos. Mas Árido é uma obra de aggionarmento do Cinema Novo dos anos 60. Ou até mesmo do cinema brasileiro dos 90, do próprio Baile Perfumado, com sua seca verde e o uísque importado de Lampião. Ou, ainda, se quiserem, da melhor tradição da literatura regional (dos 20 aos 40). Ao mesmo tempo, reforça a tese de que o cinema brasileiro está condenado a filmar e refilmar o “sol de dois canos” do sertão. Pena mais branda do que a do cinema americano, condenado a ficcionar as guerras em que o Império se mete a cada década.

Nas várias fases do cinema brasileiro, o sertão sempre foi uma location revisitada. A emprestar a sua geografia física e humana para que, através do cinema, o País se conheça e se reconheça em sua própria História, com suas questões sociais e econômicas praticamente inatacadas, imunes à evolução dos tempos, apesar das sucessivas retóricas oficiais de transformação e redenção. O espectador já assistiu ao sertão de cangaceiros sanguinários, folclóricos e até aburguesados. Ao hiperrealismo comovente e denunciador de Fabianos injustiçados e Baleias mortas. Ao barroquismo místico, delirante e salvacionista, a envolver jagunços, camponeses famélicos, cantadores cegos, justiceiros, beatos e santos guerreiros. À paródia e à chanchada de anti-heróis desbundados e cordelizados.


Vez por outra, num criativo fatalismo cíclico, surge um novo olhar sobre a velha paisagem e suas almas secas. É o caso de Árido Movie, com sua originalidade lisérgica a se contrapor ao acumulativo histórico realista, teatralizado. É impossível esquecer ou abstrair a maconha, onipresente no filme. Advém dela a gramática onírica, a impor-se como filtro a deformar e a desmanchar o real, como única forma de remontar histórias aprisionadas quase secularmente na consciência. O que interessa aqui é o relato cambaleante do inconsciente. O realismo já cumpriu o seu papelão histórico. Muito embora o cenário, os personagens, os sentimentos e os conflitos, como sabemos, sejam absolutamente iguais aos de antes. Mas liberto e distanciado do realismo, Árido Movie desbrava o sertão deste início de século com os olhos livres, e é também dessa maneira que o filme pede para ser visto. Malgrado a percepção do ineditismo das factualidades ser absolutamente ilusória, embaralhada pelo “barato” da miragem lisérgica.

Com as decantadas portas da percepção já arrombadas pela ressaca alucinógena da arquivada contracultura e com a profusão de drogas sintéticas, pode-se até afirmar que Árido Movie é um filme fora de época, realizado com urgente atraso, como o sepultamento do pai. E poderia até ser. Mas não esqueçamos que a maconha hoje é um próspero empreendimento econômico da região. Ou da rotineira prevalência do uso político da água. A rigor, Árido é um filme muito além da nossa época. Longe de atrasar, “os ponteiros infectados de tempo” (poeta Ângelo Monteiro), e não são poucos, adiantam em alguns anos o relógio de Árido Movie, dando a necessária continuidade ao continuado nos sertões imemoriais do cinema brasileiro.

Muitos críticos e espectadores se queixam de uma certa irregularidade em Árido Movie. Apontam, não de todo sem razão, que, mais do meio para o fim, os personagens se atarantam nos labirintos solares da história. Ironicamente, chegam atribuir a descontinuidade aos possíveis efeitos da “maresia” soprada durante quase todo o filme. Como os meteorologistas, o diretor Lírio Ferreira às vezes erra a previsão do tempo. Mas quem conhece os pedregulhos do sertão, sabe que o difícil é a travessia, légua mais tirana. Como não se deve desconhecer que o filme é uma elegia assumida à exuberância exaltada (imagens, personagens, diálogos, silêncios). No entanto, é nessa suposta imperfeição que Árido Movie cumpre a sua melhor performance. É como se o filme incorporasse o destino errático - geográfico e humano - do sertão, impregnado de sua, agora atualizada, taxa luminosa de desordem. Beleza mais que imperfeita, falsa promessa de felicidade. Bem brasileiro.

No entanto, nada mais transcendente. Basta recordar de uma das frases finais do filme, na seqüência da instalação sobre água, já em São Paulo: “Io (a lua de Júpiter) será o nosso próximo endereço”. O papo é lunático só na superfície. Os astrônomos americanos, entre uma guerra e um filme sobre essa guerra, já descobriram que o satélite jupiteriano tem água. Pragmáticos como são, e também “viciados” em água, os americanos compreendem bem a profundidade da frase da lameira do caminhão-pipa que transita na estrada poeirenta de Rocha: “aonde a água chega, a água faz o resto”. Fato curioso, essa frase-síntese da “sopa primordial” da vida, e também do próprio Árido Movie, é de um homem forte de Getúlio, Agamenon Magalhães, interventor de Pernambuco durante a ditadura Vargas. Apesar de extremamente violento, Agamenon não perdia uma missa dominical. Em busca da água benta da transcendência?

Assim, Árido Movie reescreve a profecia alada do Conselheiro: o sertão vai virar Io. Enquanto colabora para editar a novíssima história do cinema brasileiro. A exemplo de Amarelo Manga, de Cláudio de Assis, e de Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes. Com Árido, o cinema pernambucano comprova mais uma vez: é amarelo mas tem saúde.

Em tempo: os intelectuais do Joaquim Nabuco continuam no Cuba Libre?

Quanto ao cineasta Jomard Muniz de Britto, a única experiência dele com droga se limitou a um comprimido de aspirina com leite quente e canela, receita do médico João Guimarães Rosa para a cura da gripe.

*Jornalista e Cineasta

Posted by geneton at maio 12, 2006 11:28 AM

Comentários

Genial!
Não vi o filme...
Mas gostei!
Parabéns pela escolha do artigo.

o filme é muito bonito. as imagens do sertão me impressionaram. aquelas pedras, que poderiam servir para esconder sertanejos terroristas de ataques militares. as relações entre os personagens que mostram a sociedade brasileira com lucidez. penso que tem muita coisa pra ser dita, filmada, e tem tanta gente fazendo o velho, repetindo coisas que já se fez. "excesso de informação e falta de água", é isso, o cenário das artes está árido. filmes como amarelo manga e árido movie vêm para refrescar um pouco.

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