fevereiro 23, 2006

ABRAM ALAS, CRIANÇAS. VAI COMEÇAR O GRANDE DESFILE DE NOMES

Conselho desinteressado de uma ruína quase cinquentenária (o locutor que vos fala): não levem a sério gente que, para parecer importante, vive arrotando suposta intimidade com personalidades importantes. São uns pulhas, na maioria dos casos. É melhor pedir a conta, dar uma gorjeta ao pianista, fechar a porta e ir embora em silêncio.



Mas, alto lá, há uma exceção tolerável: jornalistas podem, sim, cometer o pecado da enumeração dos nomes. Porque faz parte do trabalho jornalístico a convivência (acidental) com celebridades de todos os calibres.

Só existe um problema: o repórter que cai na ilusão de achar que faz parte do aquário dos peixes importantes pode pendurar as chuteiras, comprar um buquê de flores, acender uma vela, publicar um anúncio fúnebre e caminhar para o crematório, porque morreu para a profissão. Repórter de verdade não pode virar compadre - ou comadre - das fontes. Revogam-se a disposições em contrário. Ponto.

Se um dia me sobrar tempo, engenho e arte, eu vos prometo, crianças, contar em detalhes as cenas que vou repassando agora de memória:

vi a Dama de Ferro, a ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, me fitar com olhos gelidamente azuis para dizer que não, não iria atender ao pedido que eu fizera a ela: que tal se, num exercício de autoavaliação instantânea, ela escolhesse entre todas as palavras apenas uma, capaz de definí-la? Que tal se ela escrevesse esta palavra no espaço reservado à dedicatória, no livro que eu agora estendia para ela, numa longa fila de uma noite de autógrafos? Não. A Dama disse que não conseguiria se definir em apenas uma palavra.

vi de perto a cabeleira de um velho ídolo, Paul McCartney, o meu Beatle favorito: a juba tinha levado uma tintura, com certeza. O tom da pele do rosto era ligeiramente esquisito: tinha levado uma camada de pó, certamente. É assim. Não consegui articular uma pergunta. Os seguranças o cercaram. O homem foi levado para os bastidores do teatro. Dali a pouco, daria uma entrevista coletiva.

vi o ar contrito do homem que, para o bem e para o mal, mudou a história do Século XX - Mikail Gorbachev - , no momento em que ele entrou na sala de uma universidade em Moscou, para participar da primeira eleição presidencial direta da história da Rússia.

vi o Chico Buarque jovem e nervoso entornar um gole de uísque
nos bastidores do Teatro Santa Isabel, no Recife, em busca de coragem para encarar a platéia.

vi o Rei Roberto Carlos pedindo à nossa equipe que não, não gravasse imagens de uma santa que reinava em cima de uma pequena penteadeira no camarim.

vi Pelé caminhar anônimo pela Quinta Avenida, em Nova Iorque, por apenas dezesseis segundos - tempo suficiente para ser reconhecido por um africano e, em seguida, por uma multidão que causou um pequeno tumulto na calçada.

vi o ex-presidente Fernando Collor acompanhar nossa equipe até o automóvel, no pátio de uma estação de televisão em Maceió, num gesto que não lembrava em nada o presidente de ar empertigado dos tempos em que desfilava pela rampa do Palácio. Durante o caminho, foi falando com saudade da finada revista "Realidade".

vi Glauber Rocha meio inchado, com cara de sono, desfilar pelo saguão de um cineminha num subúrbio de Paris com uma cópia do último filme que fez, "A Idade da Terra". Queria mostrar a críticos franceses.

vi Caetano Veloso, recém-chegado do exílio londrino, dizer que convivia com os músicos, mas não era exatamente um músico - autoavaliação que abandonaria anos depois.

vi o poeta Ferreira Gullar ficar irritado durante uma entrevista porque julgou, equivocadamente, que eu o estava acusando de ter praticado o atroz "realismo socialista" em seus anos de engajamento político.

vi Paulo Francis se divertir feito criança com a história de que um embaixador brasileiro teria feito uma nova "opção sexual" depois de velho.

vi o rosto sereno do Carlos Drummond de Andrade morto : em vida, era o homem mais discreto do planeta. Inerte, no caixão, era bombardeado por flashs que espoucavam a um palmo do rosto do poeta. Fiquei pensando no absurdo da situação. O poeta pagava o preço da fama.

vi Ulysses Guimarães, à época comandante da oposição política ao regime militar, me soprar no ouvido uma frase que não sei se era uma queixa ou um cumprimento : "Você disparou o seu petardo!". O velho combatente de olhos azuis reclamava de que eu o "forçara" a se pronunciar sobre a morte de um operário nos porões do Exército, em São Paulo, num momento em que ele, raposa, ainda não tinha recebido informações concretas sobre o caso.


Dos fundos deste palanque imaginário, eu vos prometo que um dia, quem sabe, embalado pelas Musas da Memória , promoverei um desfile de todos estes personagens. Voltarei ao trabalho.

Repórter - afinal - existe para dividir com os leitores ( não importa que parcos) o que viu e ouviu.

Quase nunca o que ele viu e ouviu é importante. Mas tentar contar de uma maneira minimamente interessante o que foi visto e ouvido é tarefa para uma vida inteira. Pode até ser divertido. Funciona - na pior das hipóteses - como antídoto contra a besta da desolação, essa fera que vive deslizando as garras contra a porta da frente no meio da noite, para avisar que pode entrar na sala a qualquer momento.

Mãos à obra, então! O batuque dos teclados há de agitar a pasmaceira.

Mas, antes, peço licença para férias.

Vou ali e já volto.







Posted by geneton at fevereiro 23, 2006 06:22 PM
   
   
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