GLAUBER ROCHA: O VISIONÁRIO DESEMBARCA NO SAGUÃO DE UMA SALA DE CINEMA NUM SÁBADO CINZENTO EM PARIS
Vasculho meu arremedo de arquivo. Descubro as anotações de um encontro com Glauber Rocha, um dos últimos artistas visionários brasileiros. Ano: 1981. Ei-lo:
Paris foi uma escala - demorada - da última navegação européia de Glauber Rocha. Volta o filme: é manhã de um dia chato de inverno, um sábado cinzento, no começo de 1981. Amigos de Glauber, críticos franceses e estudantes brasileiros de cinema em Paris vão chegando aos poucos a uma sala de projeção, lá perto de Republique, para uma sessão especial de "A Idade da Terra".
Glauber Rocha aparece com uma cópia de "A Idade da Terra" debaixo do braço, cara de sono, rosto abatido, meio gordo e com o pique de sempre: vai falando com cada um, esculhamba com um crítico "burro" do Jornal do Brasil, quer saber o nome, a ocupação, a procedência dos forasteiros que lhe são apresentados ali, no hall do cinema, pouco antes do início da projeção.
Anima-se quando sabe que nós - eu e o também brasileiro Marcos de Souza Mendes - somos estudantes de cinema. Aumenta o tom de voz, faz gestos largos com as mãos, chama a atenção dos franceses: "Olhem aí: são os jovens cineastas, é a juventude brasileira estudando cinema! Isso me interessa! Quero saber o que é que vocês vão achar do filme!". Os franceses olham para nós, o objeto do entusiasmo glauberiano. Procuro um lugar no chão para me esconder.
Depois, Glauber Rocha reclama de que a cor da cópia não é ideal, começa a falar francês com sotaque inconfundível de nordestino. "Je vais rester ici; j´attende un ami" - declama Glauber, diante da porta de entrada da sala, enquanto avisa que os espectadores já podem ocupar seus lugares. Em seguida, vai até a cabine, falar com o operador. O filme começa. Glauber sairá da sala umas duas vezes durante a projeção. Terminada a sessão, ele, que estava sentado três fileiras adiante, se vira para trás, olha para nós,estudantes:
"Como é? Fizeram as ligações?". O dedo indicador de Glauber toca no outro.
Lá fora, ele pergunta pela mulher, Paula, procura por ela no café ao lado, fala mal desses "filmes reacionários, com história", dá o toque de que "o cinema materializou o desejo de ser imagem e som da palavra".
A saúde de Glauber já era assunto de conversas ao pé do ouvido. O guerreiro não andava bem. Tinha passado uma noite vomitando, dormira durante a projeção de documentários brasileiros no cinema "Le Denfert". Pouco tempo depois, levantara vôo para Portugal, onde trabalharia num projeto. As más notícias não demoravam a chegar a Paris: falava-se de complicações cardíacas, coisas assim. A última palavra surgiu, enfim, na primeira página do "Le Monde" : "o cineasta brasileiro Glauber Rocha, um grande autor lírico e barroco", tinha morrido num dia de sábado no Rio de Janeiro. O "Liberation", jornalaço, deu uma página inteira, a televisão noticiou, as emissoras de rádio falavam em Glauber Rocha. O "Le Monde" escreve que ele ficará para as "gerações futuras" como um testemunho da "necessidade de mudar o mundo".
Profeta, revolucionário, inventor, feiticeiro, Glauber nem precisa das lágrimas de crocodilo de quem quis crucificá-lo em vida. O conselho que ele deu naquela manhã de um dia chato de inverno: estudar Eisenstein, entender Godard, comprar o "Cahiers du Cinema", ver filmes.
A última lembrança: "Você vem do Recife? Jomard Muniz de Brito é meu irmão, meu amigo".
Vi, num sábado cinzento, a fagulha de um visionário brilhar no saguão de uma sala de cinema em Paris. Glauber Rocha sonhava grandezas para o Brasil, quebrava os catecismos políticos, imaginava um destino épico para esta república ancorada na América do Sul.
Faz falta.
Posted by geneton at janeiro 30, 2006 05:09 PM