janeiro 05, 2005

"DOSSIÊ MOSCOU" : O DIA EM QUE O LOCUTOR QUE VOS FALA VIU A HISTÓRIA ACONTECENDO

Vai fazer vinte anos agora em 2005: um homem até então desconhecido no resto do mundo assumia, em 1985, o comando de uma superpotência - a União Soviética. Chamava-se Mikail Gorbatchev. Ninguém esperava, mas ele viria a se transformar num dos mais fascinantes personagens da história política do século vinte.

O mundo passou a olhar com extrema curiosidade para Moscou assim que Gorbatchev acenou com mudanças no fechadíssimo regime soviético. Durante décadas, o planeta se dividia em dois campos. De um lado, as nações capitalistas. De outro, o mundo socialista, guiado por Moscou.

As reformas prometidas por Gorbatchev tomaram um rumo imprevisto: a União Soviética, um conglomerado de repúblicas socialistas reunidas sob o comando monolítico de Moscou, simplesmente se dissolveu, em dezembro de 1991. A superpotência - que durante tanto tempo funcionou como um contraponto ao poder americano - deixou de existir.

Um a um, regimes comunistas europeus que viviam sob a influência direta de Moscou desmoronaram como num jogo de dominó. O ciclo de reformas iniciado por Gorbatchev só estaria cem por cento completo quando a Rússia pós-soviética finalmente fosse às urnas para eleger um Presidente. É aí que o locutor que vos fala teve a oportunidade (rara!) de ver a História acontecendo “ao vivo” - a um metro de onde me encontrava.

Todo repórter que se preza faz todo dia de manhã o seguinte pedido a São Gutemberg - o padroeiro da palavra impressa: que lhe seja dada a chance de um dia testemunhar um fato histórico.

Um personagem de “O Estrangeiro”, grande romance de Albert Camus, dá, sem querer, uma bela lição de jornalismo: "Quanto mais pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória. Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia poderia, sem dificuldade, passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar".

Pois é exatamente esta a sensação que invade a alma do repórter transformado em testemunha de um acontecimento importante: se tivesse cem anos para descrever o que viu, ele os usaria de bom grado, sem o risco de cometer o pecado do tédio.

O locutor que vos fala viveu uma experiência parecida: como correspondente do jornal O Globo em Londres, fui deslocado para Moscou, em 1996, para fazer a cobertura dos dois turnos da primeira eleição direta para presidente realizada na Rússia depois do fim da União Soviética.

Reuni tudo o que vi e ouvi naqueles dias na Rússia num livro recém-lançado - o “Dossiê Moscou”.

Um pequeno trecho:
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“Acorda, Lenin: eles enlouqueceram!”.

Quem terá escrito palavra de ordem tão bela e tão inútil? Jamais se saberá. Quando os tanques soviéticos chegaram à Tchecoslováquia na quarta-feira, 21 de agosto de 1968, para esmagar a chamada “Primavera de Praga”, um estudante anônimo pichou este grito de protesto num muro.

A Tchecoslováquia - país satélite da União Soviética - estava tentando criar um “socialismo com face humana”. Mas o socialismo de face dura de Leonid Brejnev, o homem-forte da União Soviética, resolveu mandar lembranças, em forma de tanques. Moscou não estava para brincadeiras. Os países-satélites deveriam seguir o figurino do Kremlin.

O bloco soviético só voltaria a falar em “socialismo com face humana” quando um homem que, até então, era um ilustre desconhecido para o resto do mundo assumiu o poder no Kremlin no dia 11 de março de 1985. O cargo de secretário geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas estava vago depois da morte da múmia Konstantin Tchernenko - um clássico representante da gerontocracia que durante décadas mandou e desmandou na União Soviética. Nome do desconhecido: Mikail Sergueivich Gorbatchev, um jovem de apenas 54 anos.

A história deu voltas surpreendentes nos anos seguintes à ascensão de Gorbatchev ao comando do gigante soviético. Todo mundo conhece o resto do enredo: depois de perder o controle sobre o processo de abertura política e econômica, Gorbatchev viu o império soviético sumir sob seus pés, mas entrou para a História como o homem que mudou o rumo do Século Vinte.

O fascinante processo de democratização da Rússia pós-soviética só ficaria completo no dia em que o país fosse às urnas para eleger um presidente pelo voto direto. O cenário estaria completo se o próprio Gorbatchev, o último dirigente da finada União Soviética, comparecesse às urnas, para votar como cidadão e ser votado como candidato a Presidente da Rússia, uma cena que jamais passou pela cabeça dos que o antecederam no comando do império soviético - Vladimir Ilyitch Lênin, Josef Stalin, Nikita Kruschev, Leonid Brejnev, Yuri Andropov e Konstantin Tchernenko.

As peças do quebra-cabeças pareciam se juntar com a perfeição possível: a Rússia convocara para 1996 as primeiras eleições diretas para presidente depois da extinção da União Soviética; Gorbatchev se lançara candidato. A História se movia de novo. Um ciclo extraordinário iria se fechar.

O repórter que quisesse testemunhar uma daquelas cenas que só se repetem de mil em mil anos deveria voar, urgente, para Moscou. Porque a primeira eleição direta para Presidente na história da Rússia pós-soviética marcaria, por todos os motivos, o início de uma nova era.

O dia que demorou tanto para chegar estava se aproximando. Liberdade, abre as asas sobre o Kremlin: dezesseis de junho de 1996 - um domingo - foi a data marcada para a eleição. A sede do desmoronado império soviético iria às urnas. Se acordasse agora, às vésperas da eleição, o que Lenin diria?

Ao ver as multidões se dirigindo às cabines de votação com o título de eleitor nas mãos, saudosistas da gerontocracia soviética teriam todas as razões para pichar na porta do mausoléu : “Acorda, Lenin ; eles enlouqueceram”. Porque o mundo parecia ter enlouquecido: já não havia lugar para partido único, já não havia lugar para imprensa controlada, já não havia lugar para “economia planificada”, já não havia lugar para “comitês centrais”. A pichação do estudante - que servira como um grito em defesa da abertura política na Tchecoslováquia de 1968 - poderia ser usada, na Rússia de 96, como slogan a favor da Velha Ordem.

Durante décadas, corações e mentes de militantes políticos de todo o mundo - tantos tão bem intencionados - se voltaram para Moscou. Que motivos explicariam o fascínio que as muralhas do Kremlin exerceram por tanto tempo sobre os intelectuais engajados e jovens que queriam mudar o mundo?

- “Um sentimento de culpa de classe média, uma insatisfação vaga com o estado das coisas, um ódio incomum contra o status-quo, um desejo de escandalizar o conservadorismo dos pais e o não tão ilusório sentimento de que seria possível se envolver diretamente em questões mundiais” - é o que diria, em 2002, no livro “Koba the Dread”, o escritor inglês Martin Amis, ao listar as possíveis razões que levaram tantos a aderir à bandeira vermelha.

A “sociedade sem classes”, em que não haveria exploração do homem pelo homem, se revelara uma ficção histórica. A classe operária não foi ao paraíso. O “socialismo real” exibiria uma folha corrida marcada por perseguição a dissidentes, imprensa manietada, partido único, “economia planificada”, o Estado reinando absoluto sobre o indivíduo.

A História entraria em cena novamente em Moscou. O locutor-que-vos-fala queria estar na primeira fila, na ala das testemunhas oculares.

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Chega o grande dia. Moscou assiste a uma cena jornalisticamente improvável. As pesquisas apontam como campeões de votos neste primeiro turno o comunista arrependido Boris Yeltsin e o comunista renitente Gennady Ziuganov. Mas para onde correm os repórteres? Que Yeltsin que nada. Que Ziuganov que nada. Todos querem testemunhar um pequeno gesto que carrega um imenso peso simbólico: o instante em que o último líder da já extinta União Soviética - Mikail Gorbatchev - se encaminhará para a cabine de votação. Quando Gorbatchev depositar o voto na urna, um longo, tumultuado e surpreendente processo estará concluído.

Meninos, eu vi. Mikhail Gorbatchev, o estadista que provavelmente será lembrado daqui a cem anos por ter iniciado a abertura da cortina de ferro comunista para a democracia, foi personagem de uma cena histórica no início da tarde de um domingo, um dia de céu azul em Moscou: era exatamente meio-dia e quarenta e nove minutos quando Gorbatchev, candidato a presidente, caminhou em direção a uma urna eletrônica instalada numa sala do primeiro andar do Instituto de Química e Física da Academia de Ciências da Rússia, num bairro chamado Colina dos Rouxinóis.

A cena que demorou setenta e nove anos para acontecer durou apenas quarenta e cinco segundos - tempo que Mikail Gorbatchev precisou para cumprir o ritual do voto na cabine. Quem estava naquela sala do Instituto de Química testemunhou uma cena inédita: jamais um líder máximo da União Soviética participou de uma eleição direta. Nenhum dos antecessores de Gorbatchev no comando do hoje extinto império soviético (Lenin, Stalin, Kruschev, Brejnev, Andropov e Tchernenko) encarou o teste das urnas.

Sobriamente vestido, com um paletó escuro e uma camisa azul-clara, acompanhado pela mulher, Raisa Gorbatchev, o homem que chamou a atenção do mundo para a glasnost exibia um sorriso protocolar de candidato quando chegou ao Instituto de Física e Química. Antes de depositar o voto na urna, posou para os fotógrafos, com ar confiante de quem espera um milagre - mas, no íntimo, certamente sabia que eleição não se ganha com milagre, mas com voto. A campanha se encerrara. Já não haveria tempo para operar o milagre da multiplicação dos votos.

O Gorbatchev que agora caminha rumo à cabine de votação é outro homem. Era como se, por um instante, o peso do iminente naufrágio eleitoral fosse maior do que a certeza de que um ciclo histórico se fechava ali. Quando Gorbatchev sai da sala, é abordado por repórteres que disputam no grito o privilégio de uma declaração.

Em meio ao tumulto formado pelo empurra-empurra de fotógrafos, repórteres, cinegrafistas e seguranças, consigo me aproximar do homem.

Os repórteres seriam brindados com frases épicas, apropriadas para a ocasião. O homem que mudou o curso da história do século XX enfrentava com estoicismo a iminência de um naufrágio eleitoral:

- A primeira vitória eu já obtive: é a realização das eleições. Uma batalha só é considerada perdida quando o próprio comandante renuncia a ela.

- Nada pode me humilhar - nem as pesquisas, nem o poder. Nenhuma força pode humilhar um homem se ele se sente confiante, mantém a dignidade e a defende. Vocês têm diante de si um homem assim.

Termina a entrevista improvisada. Os repórteres se dispersam. Cinegrafistas recolhem suas câmeras. Fotógrafos e repórteres voltam aos carros de reportagem. Insisto em seguir - a uma pequena distância - os passos de Gorbatchev. Quero testemunhar até o fim a aparição pública do homem que mudou a História do século XX.

Tenho, então, a chance de assistir a uma cena comovente. Livre do assédio dos repórteres, Gorbatchev começa a caminhar - cabisbaixo - por uma alameda em direção a um portão de ferro. Quando cruzar o portão de ferro, sumirá de vista. O homem que já comandou uma superpotência vive, ali, naquela pequena caminhada, um momento de intensa solidão.

Depois de percorrer uns trinta metros, ele apressa o passo, separa-se da comitiva. Permanece cabisbaixo. Um observador rigoroso flagraria ali, nas feições de Gorbatchev, aquela “dor atônita dirigida contra todo o ordenamento das coisas” que o dom Fabrizio de “O Leopardo” notou no olhar de um coelho abatido. Aproximo-me o máximo que posso, com minha máquina fotográfica. É tudo o que posso fazer. Registro o momento. As feições de Gorbatchev exibem um ar grave.

O dia é de festa, a Rússia vai se lembrar dessas eleições, mas, ali, naquela alameda, o homem que, em última instância, tornou possível a reviravolta carrega, no rosto, as marcas de uma impenetrável melancolia. Em que ele estaria pensando, enquanto caminhava, silente, com o olhar voltado para o chão? Àquela altura, que diferença faria saber? A História já tinha mudado de rumo, independentemente do que Gorbatchev poderia pensar.

Um mundo desabava ali - não com um estrondo nem com um suspiro, como poderia imaginar o poeta, mas com um silêncio enigmático.

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Posted by geneton at janeiro 5, 2005 10:59 PM
   
   
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