A HORA DE FAZER UM BALANÇO DAS UTOPIAS IRREALIZADAS
Quem ? Gilberto Gil.O quê ? Viajou. Quando : em 1967.Para onde : Caruaru. Por quê ? Queria conhecer o som torto da Banda de Pífanos. O resultado do encontro entre Gil e a sonoridade rústica da Banda pode ter mudado o rumo da MPB. Quase quatro décadas depois,Gilberto Gil confessa,nesta entrevista,que quer ser lembrado,na história da MPB,como aquele que propôs a Caetano Veloso a junção entre a Banda de Pífanos de Caruaru e os Beatles. Dessa mistura,nasceu o Tropicalismo.O resto é história.Assim que voltou de Londres,Gilberto Gil escolheu o Recife como palco de um dos seus primeiros shows pós-exílio.O disco que marcou a volta de Gil ao Brasil começa –não por acaso - com uma gravação da Banda de Pífanos de Caruaru tocando “Pipoca Moderna”. Nesta entrevista,Gilberto Gil fala da Banda de Pífanos,Londres,exílio,utopias e saudades brasileiras.
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*Qual seria a primeira frase de um livro de Gilberto Gil sobre Gilberto Gil?
Gil : “Eu, brasileiro,confesso minha culpa, meu degredo...”
*Cabelo branco é sinal de cansaço ou de sabedoria?
Gil : “Meu pai com 40 anos já tinha a cabeça toda branca.A minha não ficou toda branca. Ainda não estou tão cansado - nem tão sábio assim”.
*Você, há alguns anos, citava Jean Paul Sartre para dizer: “Já não serei um grande homem, mas serei um homem de bem”. O desejo continua?
Gil : “Com o tempo,o desejo de ser “grande homem” vai se esvaindo. Ao realizar o que é possível,a gente se defronta com as limitações.Você não vai ser o maior.Não vai ser o melhor.Vai ser simplesmente o bom (risos). Ser um homem de bem é uma bela coisa, porque significa uma auto-conciliação : você já equilibrou a noção do pecado com a noção da redenção, já se redimiu.Só precisa ficar atento ao comportamento, porque ainda pode incorrer em pecado. Afinal, as regras ainda existem.Mas o auto- equilíbrio já ficou mais bem realizado. Falo do bem não no sentido maniqueísta. O bem é uma bela utopia, realizável.O desejo de ser apenas um homem de bem me faz lembrar uma canção do Caetano Veloso, em que ele diz “sou homem comum/ninguém é comum”. Quer dizer : ser um homem de bem, ninguém é de bem. Não quero ser nada excepcional.Basta ser comum,basta ser igual a todos : um pouco bom, um pouco mau, um pouco quieto, um pouco inquieto, um pouco tudo,um pouco nada.Acho que basta. Ser grande é ser fora do comum. Para mim, basta ser um homem de bem. Sou um homem de bem, mas ninguém é de bem”.
*Que papel você atribui a Gilberto Gil no cenário da música popular brasileira na segunda metade do século XX ? Qual terá sido a maior contribuição ?
Gil : “A contribuição foi levar a Banda de Pífanos de Caruaru para a música popular. Minha maior contribuição,na verdade, foi propor a Caetano Veloso que a gente juntasse a Banda de Pífanos com a Sargeant Pepper´s Lonely Hearts Club Band (n: título do álbum dos Beatles lançado em 1967) . É uma contribuição que,no fim das contas,veio dar em Chico Science,veio dar nessas coisas todas. Minha grande conquista,na verdade, foi ter conhecido Caetano Veloso.Minha grande contribuição foi ter proposto a ele que fizéssemos essa junção,entre a Banda de Pífanos e a Sargeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band”.
*Você teve um encontro com John Lennon, em Londres, durante o exílio, você na platéia, ele no palco. Aquele show deixou uma marcas em você?
Gil : “Eu estava na platéia e John Lennon estava com Yoko Ono,no palco do Liceum,uma casa prestigiosa. Eu era amigo de Alan Watts, que hoje é do Yes e na época tocava com a Plastic Ono Band,a banda que acompanhava Lennon. Era uma véspera de natal. O show, muito interessante, tinha um ar de happening : Yoko,por exemplo,saía de dentro de um saco,o que ainda não era usual em concertos da época. Yoko tinha todo aquele trabalho de artes plásticas. Lennon tinha deixado os Beatles há pouco tempo. Por essa razão,o show foi muito marcante”.
*Tanto tempo depois da volta do exílio, o que ficou de bom e o que ficou de ruim daquela temporada em Londres?
Gil “É como se ter ido fosse necessário para voltar, tanto mais vivo de vida, vivida, dividida, pra lá e pra cá”..(Gil cita a letra de “Back in Bahia”,uma das músicas do disco que ele lançou ao voltar para o Brasil,em 1971). Ainda ontem estava pensando sobre essa música : exatamente na palavra “dividida” e no que ela queria dizer. O que diria hoje,para mim, esse sentido de dividir ? O que me dividiu? Eu me dividi mesmo ao ir para Londres ? A divisão significou uma ruptura ou tudo se dividiu como se dividem as moléculas, as células ? Tenho a impressão de que a divisão ocorreu mais nesse sentido : não houve traumas; não fiquei com marcas negativas da passagem por Londres. Aprendi a tocar guitarra em Londres,assim como foi em Londres que me tornei um “band leader” -como diria Jorge Ben na “Banda do Zé Pretinho”-,nesse sentido pop, moderno. Gosto disso. Aprendi inglês. Meu filho Pedro nasceu em Londres. Não tenho queixas”.
O exílio teve coisas boas e coisas ruins.Uma cena magnífica - que nunca esqueço - foi o dia da vitória do Brasil sobre a Inglaterra,por um a zero,na Copa do Mundo de 70.Os ingleses tinham vencido a Copa de 66.A expectativa na Inglaterra inteira era de que eles ganhassem do Brasil e partissem para o bicampeonato.Conseguimos ganhar aquela partida. Um dia depois,no bairro de Chelsea, onde eu morava, as parades estavam todas pichadas: “Rivelino Revelation”. Uma coisa maravilhosa”.
*Você nunca pensou em usar essa frase em uma música ?
Gil : “Você acaba de me dar uma idéia....”.
*Já se disse que 1968 foi “o ano que não terminou”. Qual foi o fato que você viveu em 68 que nunca pôde ou nunca quis contar?
Gil : “1968 foi um ano marcado por uma paranóia muito grande de minha parte. O ano marcava o final, o canto do cisne do tropicalismo. Vejo em 68 o ano básico das grandes indisposições com colegas que se mostraram reticentes - alguns mais do que reticentes;resistentes,mesmo,ao esforço,ao esboço e ao empenho tropicalista. Naquele ano, tive pela primeira – e última vez também – um problema sério de desavença com Caetano, exatamente no dia da apresentação do programa tropicalista que o Zé Celso Martinez Correia dirigiu”.
*A “primeira e última” desavença com Caetano Veloso foi de natureza estética?
Gil : “Fiquei com medo de me apresentar. Tinha havido um incidente com o Vicente Celestino - que veio a morrer naquela noite, durante um ensaio. Eu tinha ficado nervoso e com medo. Já vinha vivendo uma paranóia grande : o programa era sistematicamente rejeitado pelas donas-de-casa do interior de São Paulo. Recebemos cartas de prefeitos, a sociedade civil toda rebelada contra nós.Eu morria de medo daquilo tudo. Quando saímos do ensaio para voltar para casa, eu disse a Caetano: “Não estou com vontade de fazer esse programa.Não vou fazer”. Caetano,então,ficou bravo, reclamou muito comigo, a gente discutiu. Acabou me convencendo a fazer o programa”.
*Você falava no início dos anos setenta do ano 2000 na música “Expresso 2222” - regravada há pouco por João Bosco,num Song Book. O ano 2000 funcionava para você,na década de sessenta,como símbolo do futuro e divisor de águas ?
Gil : “Vários dos traços utópicos que se enxergavam no símbolo 2000 confirmaram-se ou foram definitivamente arquivados. Por exemplo : a new age,a aproximação entre a ciência e o misticismo,toda aquela perspectiva anunciada pelos hippies,pela ligação indiana,pelos Beatles e pelos beatniks,aquilo tudo de uma certa forma se confirma; em outros aspectos,se dilui definitivamente”.
*Quando se falava em futuro no Brasil, o símbolo era sempre o ano 2000. O Brasil, que sempre foi citado como o país do futuro, vai lhe dar mais alegrias ou mais tristezas nesse começo de milênio ?
Gil : “O Brasil já vem me dando um pouco mais de alegrias. O país vem se configurando definitivamente como um país real de uma sociedade real. É um país novo, proposto e criado na esteira dos descobrimentos, com toda aquela tragédia da vertente ameríndia. Igualmente,a tragédia africana também se desenvolveu aqui. Por todos esses motivos,é um país com um traço trágico muito profundo. Agora,pela primeira vez, o país vive com uma certa consciência desse traço trágico,sem aqueles arroubos de uma quimera paradisíaca que viria em algum tempo.
Hoje,o que temos é um país real - que precisa pagar todo dia pela superação de seus problemas. Há uma sombra enorme deixada pela herança européia sobre nós.Aos poucos,vai se resgatando esse traço europeu,a alma-mãe indígena e a mãe africana”
*Quando você explodiu,com Caetano Veloso, vocês representaram o vigor e a energia da juventude em busca de mudanças e de transformação do país. Qual foi a grande utopia que fracassou? Que utopia fracassada dói particularmente em você?
Gil : “A utopia brasileira que fracassou não era apenas brasileira. Era uma utopia do planeta todo, especialmente de áreas secundarizadas,aquelas em que vivem os povos chamados subdesenvolvidos : a utopia socialista, a utopia da Revolução. É uma utopia que varreu a África e a América Latina,além de se insinuar também em países europeus como a França e na Alemanha e se esboçar fortemente no Leste europeu e na China.Formaram-se duas grandes repúblicas socialistas no mundo. Houve a revolução cubana - a nossa versão tropical, cativante, interessante. Digo que essa foi a grande utopia não realizada”.
*Em 1977, você chamou os socialistas de beócios, o que provocou uma reação da esquerda na época.Já naquela época o Muro de Berlim incomodava você ?
Gil : “Eu me formei,na universidade,em 1964,justamente o ano do golpe - o momento em que desmoronou a utopia revolucionária. Era secretário de cultura do centro acadêmico da minha escola. O centro era evidentemente, dominado pelas esquerdas,assim como todos os outros centros. Havia dois ou três representantes do centro,mas, basicamente os integrantes eram de grupos de esquerda como a Ação Popular(AP ),um braço do movimento católico.
Já naquela época,nas discussões com esses colegas,eu dizia: “Não sei se essa utopia socialista é realizável; não sei se a realidade da vida humana permite que ela se instale”. Os colegas brigavam um comigo: “Você é um fracote ! ”. Sempre discuti com as esquerdas em relação a esse dado do sonho utópico : eu já desconfiava de que não dava”.
*Você prefere o professor ou o presidente Fernando Henrique Cardoso?
Gil: “Gosto muito do fato de os dois – o professor e o presidente - poderem coincidir. É uma coincidência interessante, porque Fernando Henrique é um homem que tem uma visão sobre o Brasil, sobre a América Latina e sobre o mundo.Basta lembrar dos estudos comparativos que ele fez sobre América,Europa e Brasil, sob o ponto de vista da sociedade. É uma coincidência boa o fato de o Brasil ter Fernando Henrique como presidente numa época de transição violenta por que passa a sociedade mundial.O presidente é um homem que aprendeu muito sobre como teorizar,como analisar o povo e a sociedade brasileira,nas vertentes econômicas e sociais. Agora,aprendeu a fazer política. Aprendeu mais depois que foi ministro de Itamar Franco e presidente. O Brasil nunca esteve tão bem servido”.
*Dos encontros que você teve com ele, qual foi a impressão mais marcante que ele deixou em você?
Gil : “Do que eu mais me lembro é de uma situação em que ele concordou comigo.Em 1987,1988 ,ele era senador quando se estava preparando a nova Constituição. Eu pretendia ser prefeito de Salvador.Fernando Henrique era do PMDB.Eu também. Numa visita que fiz a Brasília, estive no gabinete de Ulisses Guimarães,falei com vários deputados e senadores,acabei no gabinete do Fernando Henrique.Terminamos conversando sobre a Constituição.Eu -que, evidentemente,estava ali muito mais para aprender,porque não tinha nada a ensinar a ele – disse a Fernando Henrique : “Senador, tenho medo de que essa Constituição fique muito corporativa...”. E ele : “É mesmo!”. Para mim,aquela concordância foi sintomática e interessante.Porque -de certa maneira – a suspeita de que a Constituição fosse corporativa terminou se confirmando na presidência do próprio Fernando Henrique”.
*Você uma vez confessou que entendia por que John Lennon dizia que a dor era o “substrato básico da criação”. Se você concorda com esse raciocínio, então por que noventa e cinco por cento de suas músicas são alegres?
Gil : “Porque a alegria não leva a gente a descer aos infernos. A alegria bóia, tranqüila, fagueira,no brilho dos raios do Sol sobre a superfície das águas.O que sai desse tipo de criação é uma coisa leve.
Já a dor leva a uma profundidade que nos impressiona mais. Não é que a dor seja melhor ou mais bonita ou mais interessante. Nós é que valorizamos mais o que nasce do fundo do poço. Aquilo que tiramos lá do fundo da cacimba nos parece mais precioso. A dor é assim : obriga-nos a descer aos infernos da alma”.
*O caso mais doloroso de música que você compôs foi “Cálice”(“Pai,afasta de mim esse cálice/afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”) .Pouca gente sabe que é uma parceria de Gilberto Gil com Chico Buarque. Você diria que “Cálice” é a música mais dolorosa que você fez?
Gil : “Em “Cálice” há dois aspectos: uma dor pessoal e uma dor exterior . Sobre a dor pessoal,há outras músicas: “Drão”,por exemplo, é uma música de separação. Além de sofrer muito,eu acompanhava de perto o sofrimento de Sandra,minha mulher – de quem eu estava me separando. Já “Cálice” traduz,num nível pessoal,o sentido genérico da dor.Ali,aparece a dor numa expressão maior : era a dor do calvário, a tradução de uma dor genérica”
*Por que você não consegue cantar “Cálice” em público, quando esta é uma de suas raras parcerias com Chico Buarque ?
Gil : “Cálice” me remete à idéia de sofrimento. A música nasceu uma sexta-feira da paixão.Chico Buarque tinha ido assistir na véspera a um show meu, para a gente pensar na realização de uma música. Fiquei em casa na sexta-feira da Paixão, meditando, meditando, até que a dificuldade de fazer a música me fez lembrar do sofrimento do Cristo no Horto das Oliveiras.Tive então a idéia da primeira frase : “Pai, afasta de mim esse cálice/Afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”. Um dia depois,no sábado de Aleluia, levei a frase para a casa de Chico - que morava ali na Lagoa. Daí é que surgiu a frase que vem mais adiante : “Ver emergir o monstro da Lagoa”. Porque Chico,como eu disse,morava ali defronte. A música foi feita num período difícil,em meio à censura, à ditadura, à perseguição em cima da gente,numa louca sexta-feira da paixão”.
* “Cálice” era,portanto,mais uma dor política do que uma dor pessoal. Das músicas de Caetano Veloso,existe alguma música que desperte ciúme autoral em você?
Gil : “Há várias !”
*Qual é aquela que dá inveja em você, a que você gostaria de ter escrito?
Gil : “Coração Vagabundo”.
*Entre os seus amigos - que foram personagens importantes da cultura brasileira, como Glauber Rocha e Darcy Ribeiro - quem é que faz mais falta ao Brasil de hoje ?
Gil : “A complexidade do Brasil faz com que sejam necessários todos os ângulos de visão.Mas,hoje,sinto muito a falta de Darcy Ribeiro. Há no Brasil a sombra projetada pelo colonialismo e pela invasão européia. É terrível a supressão da mãe índia. Darcy Ribeiro é o intelectual brasileiro que foi mais fundo nessa questão”.
*Representantes ou porta-vozes de um pensamento intelectual brasileiro -como fazia Paulo Francis, por exemplo - reclamam de que a imprensa brasileira e o público dão uma importância excessiva aos músicos populares do Brasil. Em algum momento você chegou a concordar com essa opinião?
Gil : “Isso é inveja,é bobagem.O que a gente vai fazer? O destaque que os músicos populares desfrutam no Brasil é uma escolha do povo, uma escolha da alma.Diz respeito a uma carência verdadeira : o povo precisa desse ungüento. A atividade da música e da poesia popular – em que se transmitem sentimentos através das canções - é mais balsâmica do que qualquer outra coisa. Desempenha uma função curativa sobre as pessoas, maior do que outras áreas de produção cultural : maior do que os livros, maior que o cinema,maior que a novela,até.
A música continua a ser essa manifestação mais direta, mais imediata. Como é que a gente vai contrariar o público? O peso dado à música no Brasil não é uma escolha nossa, não é uma imposição,não é uma consequência da mecânica capitalista ou do processo industrial, em que se pode dizer “investiu-se mais na área dos artistas e eles ficaram mais populares”.Não é assim ! Os jogadores de futebol –por exemplo - recebem o mesmo grau de idolatria, porque o que eles fazem também preenche uma necessidade.Não se pode brigar contra esse mistério da subjetividade”.
*Suas músicas mais recentes falam de ciência. Você, como artista, considera a ciência superior à arte como instrumento de busca da verdade ou as duas podem se completar?
Gil : “As duas se completam.O físico César Lates disse que a ciência é irmã bastarda da arte.Num encontro que tivemos em Campinas,ele me disse que a sociedade dos cientistas tinha ficado aborrecida com essa declaração. Eu não chegaria a tanto : não colocaria a arte num plano de superioridade, mas,num em plano de complementaridade em relação à ciência. Parto do seguinte princípio: em toda ciência, para descobrir e conceituar qualquer coisa, você precisa da arte. Precisa cumprir processos que,no fim,são artísticos : é a arte de fazer isso,a arte de fazer aquilo.
Tudo é a “arte”: a arte de pensar, arte de fazer, arte de dizer.Talvez a arte tenha,então,uma precedência - não uma superioridade. A arte precede qualquer conquista humana. Tudo o que o homem fez foi arte : descobrir o fogo e a roda, desenhar nas cavernas, utilizar a pedra. Toda descoberta implica em arte - inclusive as da ciência. O que aconteceu foi que a ciência acabou se separando da arte : achou um nicho no cérebro,terminou se transformando numa área específica de conhecimento. Criou-se,então,a idéia de superioridade da ciência,mas acho que a arte tem um precedência em relação à ciência”.
*O futebol,tão importante na vida do brasileiro,é quase ausente na música popular.Por que a música não trata mais do futebol,já que o brasileiro gosta tanto de futebol e de música ?
Gil : “Não precisa.O futebol e a música são paixões gêmeas. Uma e outra são gêmeas no afeto e na celebração popular.Uma não precisa ficar cantando a outra”.
*Você já escreveu sobre futebol,entre outras músicas,em “Meio de Campo”,aquela que cita o jogador Afonsinho...
Gil : “Aquele Abraço” fala de futebol. Jorge Ben tem várias músicas que falam de futebol,como a que ele fez para Zico,a que fala nos goleiros,além “Fio Maravilha”.O futebol já tem tanto realce em nossa alma que a gente não precisa ficar falando dele. O povo já conhece –e muito - o espírito embriagador do futebol. A música não precisa ficar revelando esse encantamento. A missão da poesia popular talvez seja a chamar a atenção para um encantamento que ainda não esteja suficientemente explícito e revelado. Mas acho que,no caso do futebol, não existe esta necessidade : todo brasileiro entende a alma da bola, sabe tudo sobre ela”.
*Você falou sobre a resistência que houve em áreas da música popular brasileira ao projeto dos tropicalistas. Você estava se referindo especificamente ao grupo que era identificado com a Bossa Nova, na época?
Gil : “Quem resistia começava a se identificar não necessariamente com a Bossa Nova, mas com o embrião do que veio a se chamar de MPB. A música popular - que tinha passado pela Bossa Nova, pelo samba de morro, pelo Opinião, por Zé Keti, por Nara Leão, pelo Rosa de Ouro,por toda aquela recuperação de uma visão aristocrática do samba no Rio de Janeiro – era contrária, evidentemente,à nossa atitude,porque o que nós propúnhamos era uma horizontalização democrática, aberta a tudo, inclusive à música estrangeira.
Ora,a música estrangeira era vista como associada ao imperialismo, ao colonialismo.Nós,no entanto,a redimíamos. Tudo estava ligado também à resistência política. Todos estávamos ligados a uma luta política antiimperialista. Mas parecia que o movimento tropicalista era de concessão imperialista, porque deixava entrar o elemento estrangeiro, o rock, o jazz. Passávamos a reverenciar essas coisas, em pé de igualdade com as manifestações locais. Todo esse quadro causou uma complicação na cabeça da esquerda”.
*Você acha que o grande equívoco em relação ao tropicalismo foi acharem que ele era um movimento “entreguista”, numa época tão ideologizada quanto aquela?
Gil : “Sem dúvida,era um equívoco.O tropicalismo,na verdade,era uma premonição da situação em que a gente vive hoje,com a globalização e a pluralização internacionalista. Ou seja : era mais o jovem Marx do que o velho Marx. A esquerda naquela época,como se sabe,era toda o velho Marx : vivia-se a fase do socialismo institucional, leninista, já pós-marxista. Já o tropicalismo era internacionalismo juvenil do jovem Marx”.
*Durante os governos militares, havia uma grande expectativa sobre o que ocorreria no dia em que o Brasil voltasse à vida civil. Hoje, há um certo sentimento de frustração, porque expectativas não se confirmaram. Você concorda com isso?
Gil : “A projeção de expectativas foi demasiada.Projetou-se demais.De novo, parecia que o país estava precisando de um pai civil. Era como se estivéssemos abrindo mão de um pai militar para receber um pai civil. Não existe um pai salvador. Ao contrário : o que existe é um país civil dramaticamente entregue ao conjunto de suas interações,ao vazio atomístico de suas realidades.É complicado.Mas aos poucos, o quadro vai se refazendo : o país toma consciência da realidade.O Brasil é hoje um país sem dúvida mais maduro”.
*Nada é tão simples quanto parecia...
Gil : “Nada é tão simples : não se pode remeter ao governo a responsabilidade pela solução de todos os problemas. A política,ineficiente e ineficaz,é responsável por todos os males. Quando ela for super-eficaz, vai ser responsável por todas as soluções. Mas ela não adquire essa eficácia porque ss exerce no meio dos homens : o jogo dos interesses continua. Os interesses mais fortes continuam mais fortes.Tendem,portanto,a prevalecer a médio e a longo prazo sobre outros interesses - que são da maioria mas possuem menos força. De qualquer maneira,as coisas estão se equilibrando um pouco melhor. Mas o idealismo da solução ideal vem caindo por terra”.
*O que significa para você o Jomard Muniz de Britto sessentão,ele que foi um dos precursores do tropicalismo no Nordeste ?
Gil : “Quero partilhar, no contexto de minha geração,no forno do meu fogão existencial,desse pão de farinha nordestina que é Jomard Muniz de Brito.É bardo, professor, amigo, entusiasta, cultuador, fã,torcedor de todas essas coisas, torcedor do Brasil, torcedor do destino, autêntico, sonhador, apostador do sonho brasileiro, tropicalista da primeira hora. Sobre Jomard não se pode falar: ele é só aquele vozeirão.Maravilhoso”.
*Você diria que o exercício da política fez bem ou mal ao ex-vereador Gilberto Gil ?
Gil : “A gente se recupera, mas,durante mandato de vereador,naquele período todo na Bahia,comecei a desenvolver uma dor no peito.Tive que trabalhar muito, caminhar,fazer exercícios, acalmar a cabeça, a mente e o coração, para poder me livrar da dor que a política me deu.A política pode virar angina”.
*O que você diria hoje aos presidenciáveis que sonham em subir a rampa do Planalto?
Gil : “Como é que se pode inverter essa usura exagerada com que trabalha o capital selvagem no Brasil ? Qual é o segredo para dobrar esse pessoal ? O que se pode fazer para que se tenha um gesto mais generoso com essa nação e com esse povo ? Peço a eles que meditem”.
*Você já foi guru de muita gente. Quem é o guru de Gilberto Gil hoje?
Gil : “Hoje,meu guru é o silêncio. Quando consigo calar a voz do pensamento, quando consigo conciliar o som, quando consigo esquecer a poesia,a filosofia,as alegorias e os ditames da cidadania,quando consigo ter sono,dormir, me aquietar e silenciar, aí eu tenho uma espécie de mestre”.
*Você ainda é um brasileiro esperançoso ?
Gil : “Sou otimista, porque não vejo vantagem no pessimismo. A letra de uma música minha chamada “É” diz : “A violência, a injustiça e a traição ainda podem perturbar meu coração/mas já não podem abalar minha fé/porque eu sou e Deus é/e disso é que resulta toda a criação”.
(1997)