março 28, 2004

O NOME : VERNON WALTERS.MAS PODEM CHAMÁ-LO DE CAPETA,DIACHO,MEQUETREFE

Se nomes próprios pudessem ser traduzidos , qual seria o significado de Vernon Walters ? Quem se opôs ao golpe militar de 1964 responderia de bate-pronto : Vernon Walters quer dizer o cafute, o cambito,o capeta, o coisa-ruim, o diacho, o esconjurado, o mequetrefe,o mofento,o tinhoso. Em uma palavra : o demônio.

O coronel que,durante a conspiração que derrubou João Goulart,desempenhava o papel de adido militar da embaixada dos Estados Unidos entrou irremediavelmente para a história do movimento militar de 1964 como símbolo de conspiração.

Procuro o general Vernon Walters para uma entrevista que seria gravada num cenário apropriado : um salão da Biblioteca do Exército,no prédio que já foi sede do Ministério da Guerra,no centro do Rio de Janeiro.

O general tinha feito uma viagem-relâmpago ao Brasil,para divulgar um livro autobiográfico(“Poderosos & Humildes”). Imagino que a figura lendária do esconjurado,o mofento,o cafute de 1964 vá se materializar em minha frente com o peito ornamentado de condecorações de todo tipo. Afinal, é assim que ele aparece,impávido,na capa do livro.

Surpresa : o homem desembarca na porta de entrada do prédio numa cadeira de rodas, embalada por um sobrinho. Problemas na articulação dos joelhos tinham nocauteado os movimentos do militar que um dia fez carreira nos campos de batalha : Walters lutou na Europa durante a Segunda Grande Guerra e esteve no Vietnam,na década de sessenta.

Os trajes civis do mequetrefe são discretos : a farda deu lugar a um paletó marrom,uma camisa amarela,uma gravata estampada. Poliglota que falava francês,espanhol,italiano,alemão,holandês e russo, Walters fazia questão de conduzir a conversa em português.

O forasteiro que tentasse arrancar de Walters segredos sobre os bastidores do movimento que tirou o presidente João Goulart do poder era brindado com uma frase de efeito. O cafute trazia no bolso do colete uma frase de efeito : dizia que um “coronel americano inexperiente em golpes de estado” (como ele se auto-intitulava) não teria grandes lições a dar a generais brasileiros razoavelmente habituados a derrubar presidentes.

Insisto. Walters abre um flanco . Mas é parcimonioso na hora de ceder a pressões de bisbilhoteiros profissionais. Tira uma cena do fundo do baú da memória : reconhece que meteu o bedelho em “assuntos internos” brasileiros durante um almoço com um militar , nos dias que se seguiram à quartelada de 1964. O militar – que, na lembrança de Walters, era Emílio Garrastazu Médici - deu-lhe uma notícia quentíssima : o ex-presidente Juscelino Kubitscheck iria ser cassado. Walters contra-argumentou : a repercussão da cassação seria desastrosa no exterior,porque,fora do Brasil,”Juscelino é a imagem de Brasília”. Mas a cassação,disse-lhe o militar de alta patente,estava “assinada”. Era irreversível. Lá estava o adido militar da embaixada americana exercendo plenamente a função extra-oficial de palpiteiro. Deve ter cumprido o papel em outras situações – que preferiu manter em segredo. Não se deve esquecer que Walters passou a vida manuseando segredos : chegou a ocupar,por anos a fio,o posto de vice-diretor-geral da CIA,depois de deixar o Brasil. Depois de ouvir o vozeirão do general descrever a história da cassação de JK, São Gutemberg,o Santo Protetor dos Repórteres,sopra no meu ouvido : “A história é boa,mas este general deve estar escondendo o jogo. Seja insistente. A insistência é a alma do negócio. Segredo só é a alma do negócio para empresários e generais. Para um repórter,a alma do negócio é outra . Avante, soldado desarmado !”.

Vou colhendo pequenas vitórias no campo de batalha verbal. O cafute faria outra concessão à minha insistência : diria que manteve segredo durante décadas sobre uma impressão que guardou do presidente João Goulart depois de uma audiência,no Rio de Janeiro,em companhia do então embaixador americano,Lincoln Gordon. Os dois – adido e embaixador – relataram ao presidente a gravidade da crise dos mísseis cubanos : fotos aéreas comprovavam que a União Soviética poderia usar Cuba
como base de lançamentos de mísseis contra os Estados Unidos. Goulart fez com a mão um gesto que Walters interpretou como uma indicação de apoio a uma rápida ação americana contra a ameaça soviética. Que ação seria esta ?
Walters diz que,no carro,na viagem de volta à embaixada,imaginou que o gesto de Goulart poderia ser traduzido como “bomba atômica”.

Fica o registro : informações importantes – sobre até onde iria o apoio de um presidente brasileiro a uma eventual reação americana contra a instalação de mísseis soviéticos em solo cubano – nem sempre são cristalinas,indiscutíveis,pétreas. Podem depender da interpretação de um simples gesto com a mão. Política pode ser mímica. Assim caminha a humanidade.

O general de pijama – ou de terno – reconhece que os Estados Unidos iriam, sim, fazer “alguma coisa” se a crise de 1964 descambasse para uma situação de guerra civil no Brasil. Bastaria que os soviéticos tentassem, por exemplo,”abastecer um dos lados em luta”.

Como não estava aqui em 1964 para ir passear no Maracanã, Walters tratou de reunir informações sobre a crise política brasileira. Diz-me que tinha “quase certeza” de que o movimento militar seria deflagrado no dia 31 de março de 1964. A suspeita era tanta que ele aconselhou o embaixador americano a cancelar de última hora uma viagem ao Recife para inauguração de casas populares construídas com dinheiro americano . Assim foi feito : o embaixador desistiu da viagem ao Recife. Goulart terminaria partindo para o exílio em Montevidéu, derrubado pelos militares.

Walters faria reminiscências pessoais sobre o amigo Castelo Branco. Os dois se conheceram nos campos de batalha na Itália,na Segunda Guerra. O primeiro militar a ocupar o poder depois do golpe de 64 chamou Walters para um almoço – a dois - no dia em que assumiu a Presidência da República. A deferência dá uma idéia da proximidade entre os dois. Quando Castelo deixou o governo, chamou Walters para um jantar. O adido faz uma pequena confissão : diz que ouviu Castelo Branco dizer que um dos problemas do Brasil eram os Presidentes que,depois de aboletados no Poder,relutam em entregar o cargo. O primeiro presidente da linhagem militar cumpriu o que disse : passou adiante o Poder – obviamente, a outro militar,o general Costa e Silva. O povo, como se sabe, não era chamado a opinar.

Quando estava na Guerra do Vietnam, Walters soube da morte de Castelo Branco,num acidente de avião. Não teve dúvida : ordenou ao capelão que rezasse uma missa pelo brasileiro,numa base militar, em meio ao conflito no sudeste asiático.

Termina a entrevista. O general desliza a bordo de uma cadeira de rodas pelos corredores da antiga sede do Ministério da Guerra. Cumpriu o ritual a que se habituara há décadas : concedeu a um repórter migalhas das toneladas de informações que armazenou numa memória freqüentemente citada como “prodigiosa”.

O sobrinho de Walters precisa da ajuda de dois soldados para tirar o homenzarrão da cadeira de rodas para o banco traseiro de um carro. O militar que povoa a galeria de personagens de 1964 como a face oculta do “imperialismo americano” despede-se com um aceno. Já escureceu no Rio.
A batalha verbal deixa pequenas escoriações no repórter – que, como sempre, sai de cena certo de que não conseguiu tudo o que queria. Recolho as armas : o gravador,a máquina fotográfica, o bloco de anotações. Bato em retirada. A fortaleza do general permanece tecnicamente intacta.

Dez dias depois, na segunda semana de fevereiro de 2002, o cafute, o cambito,o capeta,o coisa-ruim,o diacho,o esconjurado,o mequetrefe,o mofento,o tinhoso do imaginário de 1964 estava morto, num quarto do Good Samaritan Medical Center, em West Palm Beach, Flórida.

Tinha 85 anos de idade, quase dois metros de altura.

E uma montanha de segredos.

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(2004)

Posted by geneton at março 28, 2004 12:16 PM
   
   
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