O DIA EM QUE O CRIADOR DO MODERNO COLUNISMO SOCIAL ENGANOU A RAINHA DA INGLATERRA NO MARACANÃ !
Quem foi o único brasileiro que teve o privilégio de trocar cochichos com a Rainha da Inglaterra ? (aos que duvidam de tal façanha,recomenda-se que consultem nos arquivos públicos o exemplar do jornal Última Hora do dia onze de novembro de 1968,uma segunda-feira : uma seqüência de três fotos,publicadas com destaque na primeira página,registra a façanha).
Quem foi o visitante curioso que o dramaturgo Tennesse Williams,autor do clássico “Um Bonde Chamado Desejo”, conduziu até um quarto todo vermelho,numa mansão em Nova Iorque,não se sabe com que intenções ?
Quem foi o jornalista atrevido que,aos vinte e dois anos de idade,criou,nas páginas do Diário Carioca,no já remotíssimo ano de 1945,”a primeira coluna social moderna do jornalismo brasileiro”,como bem diz o verbete dedicado a ele na mini-enciclopédia “Ipanema de A a Z” ? Antes,a chamada “crônica social” era entulhada de registros empolados de jantares,viagens e outros acontecimentos menos votados.A partir do Diário Carioca,a coluna social ganhou vivacidade : passou a registrar,em notas curtas,grandes negócios,casos de amor,conchavos políticos. O modelo não se esgotou até hoje.
O único brasileiro que falou ao pé do ouvido da Rainha Elizabeth,o repórter curioso que testemunhou a paisagem vermelha do quarto de Tennesse Williams e o jornalista atrevido que lançou,no Brasil,a base do colunismo moderno são um homem só : Manoel Bernardez Muller.
Aos pouco familiarizados com a biografia do jornalismo brasileiro,diga-se que ele ficou famoso como Maneco Muller. Se,ainda assim,o nome soar estranho,o que é improvável,acrescente-se que Maneco Muller tornou-se célebre sob um pseudônimo : Jacinto de Thormes (nome roubado de um personagem do romance de Eça de Queiroz ”A Cidade e as Serras “).
Depois de aceitar de bom grado o pseudônimo que lhe foi sugerido pelo jornalista Prudente de Morais,Neto - um dos grandões do Diário Carioca -, Maneco Muller dedicou-se ao trabalho de criar,sob a marca Jacinto de Thormes,um personagem que o acompanharia,como uma sombra,por toda a vida. Aos olhos do público,Jacinto de Thormes era um homem sofisticado que aparecia fumando um imponente cachimbo,com ares de lorde inglês,nas “fotos oficiais” que ornavam suas colunas.
Confessava-se usuário de um pijama listrado que ficou famoso - sinal de que cultuava a elegância até na hora de dormir.Pronunciava nomes estrangeiros com sotaque britânico.Tinha um cão chamado William Shakespeare Júnior,personagem (real) de suas andanças. O cão chegou a merecer foto de página inteira numa revista de moda, em que aparecia usando um boné que cairia bem numa partida de críquete numa tarde de verão nos arredores de Wimbledon. O fato de criar uma celebridade canina dá a dimensão do poder de fogo de Jacinto de Thormes .
Além de circular nas “altas rodas”,Jacinto de Thormes era um infatigável fabricante das Listas das Dez Mais Elegantes. Criou um modismo. As Listas passaram a ser publicadas em todo o País,em versões adaptadas ao gosto dos cronistas locais – os Jacinto de Thormes que se multiplicavam nas províncias. Igualmente,lançou a expressão “colunável”. Por merecimento,Jacinto de Thormes entrou para a seleta confraria dos jornalistas que são notícia.Virou um “colunável” clássico.
Aposentado depois abandonar as colunas sociais para se dedicar à crônica esportiva (o futebol é uma de suas paixões),Jacinto de Thormes sumiu de circulação.
Por onde andaria,hoje,o cronista dos Anos Dourados ? O que estaria pensando,neste começo de século,o escriba que documentou em suas colunas os tempos em que o Rio de Janeiro era um território idílico,nos idos da década de cinquenta ? Que sentimentos teria Jacinto de Thormes diante da uma sociedade povoada por novos ricos,os “emergentes” que,dentro ou fora da Barra da Tijuca,fazem questão de exibir suas posses nas revistas de celebridades ? Que confidências ele teria a fazer,hoje,sobre cenas indiscretas que não publicou,na época,por pudor ou excesso de zelo ?
O Jacinto de Thormes da vida real – o cidadão carioca Maneco Muller – confessa-se surpreso por ter sido procurado para uma entrevista. Porque é um personagem tecnicamente fora de combate. O encontro fica marcado para o apartamento da filha. Chega britanicamente no horário marcado. A devoção à pontualidade pode ser herança inconsciente dos anos em que viveu sob a tutela de uma governanta inglesa. Maneco Muller é bem nascido. Vem de uma família de diplomatas. A governanta entrou em cena porque os pais de Maneco se separaram quando ele tinha apenas três meses de idade. A mãe partiu para a Europa,em companhia de um marquês. Coube à governanta a tarefa de zelar pelo menino.
Nosso personagem aparece para a entrevista elegantemente metido num blaser azul-marinho,camisa social abotoada nos punhos,calça cinza. Vai fazer setenta e oito anos em breve. É avô de quatro meninas. Orgulha-se de se manter em forma : “Não tenho barriga”. Há duas décadas,instalou no peito quatro pontes de safena que funcionam perfeitamente bem. Quando desce do táxi, é personagem de uma pequena trapalhada : toca a campainha do prédio vizinho ao da filha,para espanto do porteiro.Desfeita a confusão, engana-se de novo ao apertar o botão errado dentro do elevador. As miudezas do mundo aparentemente confundem o coração cosmopolita de Jacinto de Thormes.
Do alto do décimo-quarto andar deste prédio no Flamengo,zona sul do Rio,o quase octogenário Jacinto de Thormes contempla,deslumbrado,a paisagem. Só há um adjetivo para definir a vista : é “cinematográfica”.Nunca um lugar-comum caiu tão bem. Quantas mil vezes ele terá vasculhado com os olhos os contornos do morro do Pão de Açúcar ? Já perdeu a conta. Mas, ainda hoje,é capaz de soltar exclamações como “não existe nada parecido no mundo.Que vista,meu Deus do céu !”.
Primeira conclusão : trata-se de uma alma irrevogavelmente carioca.Segunda conclusão : qualquer outra generalização é perigosa. Porque Jacinto de Thormes é,como bem definiu a revista Vogue,um caso único,”um espécime em extinção,pertencente a uma fidalguia carioca,aquela elegância natural,autêntica,intrínseca”.
Quem apostar que o Jacinto de Thormes aposentado é hoje um dinossauro que vive ruminando nostalgia dos tempos em que o Rio era a capital da Corte se enganará redondamente.Porque,retirado da cena,ele vê com curiosidade a ascensão dos “emergentes”. Diz que,hoje,uma palavra resume tudo : velocidade. Acabou-se o tempo em que os sobrenomes de famílias tradicionais desfilavam pelas colunas. Hoje,gente que enriqueceu depressa brilha depressa nas colunas - mas desaparece depressa também. Neste mundo,Jacinto de Thormes se sentiria deslocado. Mas não faz as vezes de saudosista ranzinza.
O homem vai revisitar cenas inacreditáveis que viveu ao lado da Rainha da Inglaterra.Falará de Tennesse Williams. Descreverá o encontro que marcou com Gilberto Freyre porque queria saber quem chegaria primeiro à presidência da República no Brasil : um negro ou uma mulher.Fará uma radiografia dos novos tempos do soçaite.
Jacinto de Thormes volta a atacar.
Gravando !
GMN : Os nomes tradicionais das colunas sociais foram substituídos pelos chamados “emergentes” – os novos ricos que,no caso do Rio de Janeiro,moram na Barra da Tijuca. O que é que os emergentes despertam no senhor : enfado,asco ou curiosidade jornalística ?
MM : “Tenho uma idéia formada. Precisamos olhar essa questão não como um simples fato,mas como conseqüência da velocidade do que acontece hoje. Em Botafogo,existe uma padaria que exibe uma inscrição : Fundada em mil oitocentos e não sei quantos. A tradição dava prestígio,dava credibilidade.Mas acabou ! As pessoas precisam imaginar que uma “emergente” é fruto do momento que vivemos hoje,dominado pela velocidade.Como o mundo muda,numa grande velocidade,se a mesma pessoa aparecer duas ou três vezes numa revista,dirão : “Mas que chato ! De novo ? “.
GMN : Antes,valorizava-se a tradição.Hoje,o que é que se valoriza : é a riqueza rápida ?
MM : “O sucesso hoje é esse.A Corte acabou ! A diferença é essa : quem aparece hoje é gente que surge rapidamente e ganha dinheiro depressa.Não interessa o nome. O jogador de futebol que faz sucesso também vai para a Barra da Tijuca,porque,lá,ele compra,ele se faz,ele é importante.
Mas não sou contra.Porque as pessoas não têm culpa.Não sou o sujeito esnobe que diz “imagine você....”. Não!
A época atual pede que se faça tudo rápido,para durar pouco”.
GMN : Qual era a dúvida que o senhor quis tirar com Gilberto Freyre ?
MM :”Eu queria fazer alguma coisa diferente,além da coluna.Matérias que representassem alguma coisa.Procurei um banqueiro famoso.Mas o sujeito só falava de dinheiro e política.Não publiquei nada.Já Gilberto Freyre era o tipo da pessoa que sabia falar.Expansivo.Perguntei a ele: quem chegará primeiro à presidência da República - a mulher ou o negro ? Gilberto Freyre achou ótimo.Disse,primeiro,que “o brasileiro não é uma raça,muito menos uma sub-raça ou meia-raça,como os subantropólogos querem,mas,sim,uma meta-raça”.
Depois de muita habilidade e inteligências,acabou dizendo que o negro chegaria primeiro à Presidência”.
GMN : A Rainha Elizabeth desperta,à primeira vista,um sentimento de tédio,até entre os admiradores.O senhor –que teve o privilégio de conhecê-la como intérprete,na visita que ela fez ao Brasil em 1968,teve essa sensação também ?
MM : “A Rainha é uma funcionária pública perfeita.Um dos compromissos que ela cumpriu aqui foi ver,no Maracanã,um jogo da seleção de São Paulo,comandada por Pelé,contra a seleção do Rio,comandada por Gérson.Vi o jogo sentado ao lado da Rainha,perto do governador Negrão de Lima,que falava francês. Samuel Wayner me disse para aceitar o convite para ser intérprete da Rainha.O pessoal do Itamaraty,meus amigos,tinham me convidado.Você sabe que não se chama a Rainha de Sua Majestade,a não ser em cerimônia.Chama-se de “madam”.
Houve um problema : fizeram uma placa de bronze que seria inaugurada no Maracanã para marcar a visita da Rainha.Mas,quando fui ler,vi que a placa tinha um erro de português.Tiveram de correr para mudar.Horrível.Quase não dava tempo.Primeiro,a Rainha perguntou sobre as orquídeas que tinham sido distribuídas na Tribuna de Honra.Eu disse que as orquídeas tinham vindo da Amazônia.Fiz uma onda.Amazônia coisa nenhuma.Eram daqui mesmo”.
. GMN : O senhor achou que seria “rústico” citar a Amazônia ali,para a Rainha ?
MM : “A Rainha entendeu que as orquídeas tinham vindo da Amazônia,mas eu,na verdade,disse que elas eram de um gênero amazonense,o que não deixa de ser verdade.Mas não sei,não entendo nada de flores. A Rainha achou ótimo.A gente tem de fazer essas coisas : é gentileza.
De repente,ela me perguntou : “você não acha que esse jogo está um pouco lento ? “. Não é boba. Eu disse : “Madam,o que acontece é que o jogador que a senhora se acostumou a ver no estádio de Wembley são ingleses fortes e robustos,correm muito,são verdadeiros touros.O nosso jogador ,madam,é uma cobra.Aliás,chamamos de cobra o nosso grande o jogador. Porque ele de repente dá um bote”. A Rainha ficou me olhando impressionada. Para minha sorte,poucos minutos depois Pelé,que estava fingindo que o jogo não era com ele,de repente viu a brecha,gritou “dá”,driblou um,cortou o outro e quase fez um gol maravilhoso.A Rainha se virou pra mim e disse : “Isso é que é cobra ? “.Eu disse : “Yes,madam,precisely”.O que ela fez? Olhou para o Príncipe Philip e perguntou : “Você sabe qual é a diferença entre os nossos jogadores e os brasileiros ? “. Começou a contar ao marido a minha história,sem me pagar royalties”.
GMN : A Rainha lhe deu a impressão de sofrer de uma certa falta de brilho pessoal ?
MM : “A impressão que a Rainha dá é a de que é uma pessoa triste.Aquilo deve ser muito,muito chato”.
GMN : A Rainha,em situações,normais é inacessível aos jornalistas – inclusive os ingleses.A que o senhor atribui o fato de ter sido escolhido para atuar como intérprete ? Bastou a amizade com o pessoal do Itamarati ?
MM: “Eu era cronista esportivo. Falava inglês- bem ou mal. Era um sujeito que não ia cuspir no chão nem fazer nenhuma grosseria.
Antes do início do jogo, quando o juiz Armando Marques entrou,a torcida começou a gritar “bicha ! bicha ! bicha !”. A Rainha me perguntou o que era aquilo.Que história era aquela de “bicha” ? Eu disse que a torcida estava aplaudindo o juiz – que era muito popular no Brasil....
Você veja o que é uma profissional. Quando,depois do jogo,se encontrou com o juiz Armando Marques,a Rainha disse : “Gostei de ver sua popularidade...”.
Mas o Príncipe Philip soube o que queria dizer o coro da torcida,porque disseram a ele”.
GMN : Lygia Fagundes Telles diz que,quando esteve em São Paulo,o escritor William Faulkner abriu a janela do hotel e perguntou : “Isso aqui é Chicago ? “. Bêbado,ele não sabia nem onde estava. O álcool entrou também nos contatos que o senhor teve com escritores americanos como Truman Capote e Tennesse Williams ?
MM : “Não entrou outra coisa,além de álcool. A entrevista com Truman Capote eu nem cheguei a escrever.Para dizer a verdade,achei-o murcho,sem significação alguma. Fiquei com raiva.Decepcionado.Não dava para escrever nada. Eu também estava numa fase ruim.Não vou culpar os outros. Eu estava em Nova Iorque,pela revista O Cruzeiro. Fiz também entrevistas com Tennesse Williams e Salvador Dali. O verdadeiro Salvador Dali era Gala,a mulher que o dirigia em tudo. Houve uma cena que considero terrível : Salvador Dali sentou-se ao lado de uma senhora brasileira que estava em nosso grupo.Disse a ela : “Que mãos lindas ! Eu poderia pintar as suas mãos ? ”.A mulher ficou encantada. Quem não quer ? Dali ficou de telefonar. A secretária de Salvador Dali realmente ligou no dia seguinte : “O senhor Dali gostaria muito de marcar uma data.Por falar no assunto : gostaria de dizer que o preço é.....”.E falou em não sei quantos mil dólares.Que negócio terrível....
Já o Tennesse Williams me fascinava. Quando cheguei para a entrevista,encontrei cinqüenta milhões de pessoas.Gim puro.Um porre sem tamanho.Bebe-se muito em Nova Iorque. Quando essa gente se expande,não é brincadeira.A primeira coisa que Tenesse Williams fez comigo foi : “Deixe-me mostrar minha casa”. A gente nem conseguia ver a casa,em meio a tanta gente sentada por todo canto. Quando ele abriu o quarto,era tudo vermelho e dourado lá dentro.Por que o sujeito vai me mostrar um quarto onde não havia ninguém ? Para que me mostrar um lugar todo vermelho que,para ele, era a parte fundamental da casa ? Eu estou associando coisas. Não houve nenhuma insinuação.
Quando contei umas histórias,ele me perguntou : “Mas era sexo normal ou diferente ?”. Respondi que comigo era tudo normal.De repente,toca a campainha.Abre-se a porta.Aparece um rapaz lindo,bonitão,rosado,com uns dois metros de altura.Ficou parado.Visivelmente,não conhecia ninguém.Tennesse viu o rapaz de longe,correu até onde ele estava : “Mas o que é que você veio fazer aqui ? “. O rapaz estranhou : “Você não disse para vir ? “. E Tennesee : “É amanhã,seu burro !.Não vê que hoje a casa está cheia de gente?”.
GMN : Tarso de Castro escreveu : “O jornalismo se divide mais ou menos assim : no início,é uma conquista maravilhosa,uma briga para ver uma coisa que se escreveu sair no jornal.Depois,chega o tempo de ser o competente cara de jornal.Por esse tempo,há um dia em que se descobre que não temos nada de super-homens.Por fim,chega o tempo em que o cansaço se arrasta diante do fato de que,afinal,não éramos tão importantes”. Jacinto de Thormes viveu essas três estações ?
MM : “Quanto a ser importante ou não,é relativo.Porque,na época,eu fui importante,sim. Fui importante porque,para começar,não me levei a sério.Prudente de Morais,Neto me chamou para ser o que era antigamente “cronista social”. Era tudo muito francês – “tout en bleu”,”tout en rouge”. Eu achava aquilo uma frescura,mas,como precisava ganhar dinheiro,não pude recusar. Só não queria botar meu nome.Afinal,eu fazia esporte,freqüentava academia de boxe.Iam me chamar de sei lá o quê se me vissem falando de vestido. Digo : vou levar esse negócio na brincadeira.Preciso de um pseudônimo.Prudente de Morais disse :”Jacinto de Thormes !”
Eu não tinha lido ainda Eça de Queiroz. O que me impressionou,depois,é que o Jacinto de Thormes do romance de Eça de Queiroz “A Cidade e as Serras” é precisamente um camarada que vive em Paris mas permanece apegado ao lugarejo de onde veio. Já Eça de Queiroz viveu em Paris e em Londres.Não gostava de viver em Portugal.Era um sujeito esnobe,um grande escritor que escrevia numa língua que infelizmente não tinha a repercussão que ele gostaria que tivesse”.
GMN : O senhor é apontado como o criador da primeira coluna social moderna do jornalismo brasileiro.De onde surgiu esse estalo ? Você criou a coluna sob influência americana ?
MM : “O personagem que criei tinha um cachorro chamado William Shakespeare Júnior – que me acompanhava de verdade.Fomos a boates juntos.Era um cão muito educado. O personagem Jacinto de Thormes era uma maneira de me defender,porque o que eu queria era ser escritor.
O Rio de Janeiro era capital da República.Comecei a freqüentar o Senado e a Câmara dos Deputados,os homens de negócio.Passei a incluir esse mundo dentro das brincadeiras,as coisas mais suaves que eu fazia na coluna.A lista das dez mais elegantes era coisa americana. Mas as listas dos americanos não tinham a dimensão que as listas ganharam aqui no Brasil.Quando eu saía,as pessoas me paravam na rua para discutir a lista”.
GMN : A criação desse formato de coluna foi influência americana ?
MM : “Mas claro ! Eu lia sobretudo o New York Times e o Washington Post e –de vez em quando – os jornais de Los Angeles,porque traziam a cobertura de cinema. As colunas que me influenciaram eram publicadas por esses jornais.Mas eu não podia fazer igual. Tinha de adaptar. Porque nos Estados Unidos havia colunistas que tinham um poder terrível : derrubavam fábricas,derrubavam shows,derrubavam pessoas.
Aqui, fiz a brincadeira de inventar Jacinto de Thormes . As colunas americanas já tinham o formato de notas sincopadas.Devo dizer que o Rio de Janeiro tinha uma personalidade. Se estivessem no Rio,aqueles colunistas não escreveriam como escreviam nos Estados Unidos . O Rio era uma das cidades mais divertidas do mundo,como disse a revista Time. A cidade tinha,além da praia,os cassinos,os grandes shows e um lado que faço questão de citar : a cultura. Basta lembrar que Getúlio Vargas convidou Gustavo Capanema para ser ministro da Educação e Cultura. Capanema simplesmente pediu a Carlos Drummond de Andrade que fosse chefe de gabinete.
O Modernismo –que foi paulista- veio explodir no Rio. Todos os grandes escritores, os Portinari,os Villa-Lobos,não apenas atuavam no Rio : a gente convivia com eles. É a diferença.Não era o intelectual lá e o social aqui. Evidentemente,havia na sociedade coisas fúteis.Mas eles participavam das revistas,havia o costume de todos irem ao Municipal para ver balé,ver ópera”.
GMN : O senhor,que escolheu tantas elegantes,pode citar qual foi a figura mais deselegante que conheceu ? Qual é o
sinal de deselegância que mais incomoda você ?
MM : “Quando eu ia fazer a lista,eu levava em conta também a inteligência. O que me incomoda ? É a bonita e burra.Tenho horror a esse tipo de coisa.É a pessoa que se preocupa demais com a aparência,a ponto de não saber fazer outra coisa.Sempre digo : uma grande dama é sempre uma grande dama sem querer.De propósito,não é nunca ! Porque não conseguirá comprar elegância,não conseguirá adquirir essa qualidade fazendo divulgação de si mesmo.
Uma pessoa não elegante pode ter boas maneiras.É outra coisa.Pode ser educada.É outra coisa.Pode ser culta.É outra coisa.Mas elegância reúne quase que todas essas qualidades – inclusive cultura !”.
GMN : Qual foi a personalidade mais surpreendente que você conheceu ? Alguém que tenha surpreendido você no bom ou no mau sentido ?
MM : “Vou dizer : Ibrahim Sued. Começou como fotógrafo.Era um sujeito humilde,com pouca escolaridade.Conseguiu uma coisa formidável. Eu,que comecei dez anos antes de ele surgir no jornalismo,percebi que ele tinha um fato jornalístico incrível.Podia ser ignorante.Mas de burro não tinha nada.Um dia,olhou para minha biblioteca.Perguntou : “Diga-me uma coisa : para que serviram,na sua carreira,esses livros todos ? “.
Sob o ponto-de-vista de Ibrahim,era uma pergunta excelente. Uma vez,eu disse a ele : “Você fatura até erro de concordância”. Ele me respondeu : “Você sabe Português mas não fatura nada”.
Ibrahim tinha toda razão. Era um camarada surpreendente”.
GMN : Quem freqüenta a alta sociedade,como o senhor freqüentou,inevitavelmente ouve e vê segredos impublicáveis.Que segredo impublicável o senhor poderia contar hoje,tanto tempo depois ?
MM : “É difícil falar. São coisas tão grandes que os nomes vão acabar vindo à tona. Fatos verdadeiramente nacionais.Não quero fazer autobiografia,porque ou falo das coisas ou não falo.Não dá para contar pela metade.
Havia um presidente da República,casado com uma mulher muito bonita,que,um dia,saiu de carro com alguém.Os dois deviam ter bebido um pouco. O presidente tinha dado o automóvel novinho à moça. Os dois estavam usando o carro pela primeira vez.Imagine : um presidente e uma moça. Lá pelas tantas,ela disse : “Você sabe que eu acho esse carro uma porcaria ? “ . O presidente respondeu : “Então,bata aí”. A moça bateu numa árvore,com o presidente dentro. Quebrou o carro”.
GMN : Presidente casado com primeira-dama bonita só existiu um ....
MM : “Pelo amor de Deus ! Para que eu fui falar nesse troço !!!”.
GMN : Darcy Ribeiro dizia que a gente tem aqui no Brasil uma das elites mais cruéis do mundo.O senhor –que conviveu com nossa elite no que ela tem de bom e de ruim - assinaria embaixo desse julgamento ?
MM : “É preciso ver nossa história. Os ingleses que saíram para os Estados Unidos foram formar um lugar,um país.O patriotismo americano é impressionante.Vê-se bandeira por todo lado. Já os jesuítas vieram ao Brasil por uma questão de ordem. Os portugueses não vieram fundar nada.Vieram tirar o que era possível tirar,assim como os espanhóis.A diferença é essa : em vez de dar,tiraram.
Nós também não conseguimos tomar certas decisões nacionais que exigem personalidade. Falta igualmente uma unidade. São Paulo trabalha,o nortista emigra,a Bahia se diverte,o Rio Grande do Sul comanda,o Rio de Janeiro vive e Minas Gerais conspira.As diferenças podem até ser fantásticas.Mas não há no Brasil uma união de idéias – o que termina se tornando uma grande dificuldade brasileira.A elite brasileira não é uma só.São várias as elites.De vez em quando,são péssimas.Em áreas importantes sob o ponto de vista popular,como no futebol,por exemplo,a elite não pode ser pior do que é agora”.
GMN : Se Maneco Muller,fosse escrever hoje sobre Jacinto de Thormes,qual seria o primeiro parágrafo ?
MM : “Jacinto de Thormes foi uma farsa,um mentiroso,não era nada aquilo. Criou aquele negócio.O pior é que pegou.Todo mundo veio atrás.
Fico contente com o que fiz. Jacinto de Thormes carregou Maneco Muller nas costas. Mas sem Maneco Muller,seus erros,seus pecados,seus vícios e algumas qualidades,o Jacinto de Thormes não teria existido”.
GMN : O senhor considera o Jacinto de Thormes pai dos colunistas sociais que estão aí hoje ?
MM : “Não sei de pai nem mãe.Mas fui o primeiro”.
(2001)